sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Entrando no clima


A constância da instabilidade climática é um dos mais importantes fatores de estímulo à agregação social existentes no mundo. Ter sempre à mão a opção de ingressar pelas veredas do clima em situações de iminente embaraço social é um poderoso instrumento a serviço da sociabilidade humana, sem o qual certamente estaríamos ainda relegados a condições bem mais bárbaras de convivência. Quantos amigos já não fizemos na vida simplesmente mergulhando de mãos dadas em vitupérios contra as chuvas e a umidade, ou deleitando-nos em uníssono pelo retorno do sol que volta a brilhar? A volubilidade das condições meteorológicas é um presente dos deuses na pavimentação de nossa evolução.
Semana passada mesmo, ao dividir um táxi com um estranho, encontrei nele uma comunhão incrível de opiniões, suscitadas por nossa mútua habilidade em desenvolver o tema. Foi assim:
- Bom dia!
- Sim, agora, sim, bom dia, né.
- Pois é, esquentou. Parece primavera.
- Prefiro assim.
- Eu também.
- Chega de chuva.
- Chega.
- Nem parece inverno. Hoje em dia, o frio começa mais tarde e se estende até o final do ano.
- O veranico de maio agora é em agosto.
- É. No meu tempo, verão era verão e inverno era inverno.
- E primavera era primavera.
- Está tudo mudado.
- Tudo.
- Que coisa.
- Bota coisa nisso!
- Bem, tchau, hein.
- Tchau, prazer em conhecê-lo.
- Idem.
Um bom sujeito, com certeza. Opiniões fortes, surpreendentes. Esquecemos de trocar cartões, mas, se o tempo ajudar, haveremos de nos encontrar novamente. Ah, como é bom fazer novos amigos! Bons tempos, esses.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27/08/2010)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Capítulo contra o mau-humor

Entre as mil e uma utilidades que proporcionam, livros também servem como
bálsamos para alegrar o espírito e invocar as propriedades terapêuticas do riso

Livros, como bem sabemos, são objetos versáteis aptos a proporcionar mil e duas utilidades a seus felizes proprietários. Os ingleses, por exemplo, aproveitam os de autoria de Paulo Coelho para servirem de calço a portas insistentemente empurradas por seus tradicionais fantasmas. Alguns livros podem ser muito úteis como instrumentos sempre ao alcance da mão para aniquilarmos insetos xeretas (em especial os de capa dura – os livros, não os insetos) ou como suportes para suarentos copos de cerveja a fim de não mancharmos a mesa da sala enquanto assistimos ao televisionamento das partidas de futebol de nosso time do coração. Quem nunca empilhou todos os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido” para subir e trocar uma lâmpada queimada na cozinha? Com mais um “Ulisses” de Joyce e “Os Sertões” do Euclides acrescidos ao topo da pilha, pode-se até pensar em alcançar o alçapão do sótão e ir lá em cima substituir a telha quebrada que produz a irritante goteira que molha o quarto justamente nos dias de chuva.
Mas eu, particularmente, titular desta coluna, coincidentemente prefiro utilizá-los para tão-somente um propósito: leio-os desavergonhadamente e depois guardo-os na estante e revisito-os com uma freqüência escandalosa. Com o passar dos anos e o acúmulo de experiência que naturalmente decorre do ato repetitivo desta prática, descobri também outro proveito que se pode extrair de alguns livros, a concorrerem com uma música dos Beatles, um lauto jantar, um inebriante vinho marsellan ou um desenho animado do Shrek: a melhora imediata do humor e do astral.
De uns tempos para cá, separei em um cantinho especial da estante um espaço onde guardo, sempre ao alcance da mão, as obras nas quais sei existirem passagens que, mesmo em eu as lendo pela trocentésima vez, me farão voltar a gargalhar, não só melhorando automaticamente meu estado de espírito como também me fazendo economizar o dinheiro que teria de dedicar às terapias num futuro próximo e sombrio. Assim, por exemplo, está lá a primeira parte do “Dom Quixote” (capa dura, edição do extinto Círculo do Livro, jamais utilizada para formar pilhas em substituição a escadas), com um marcador estrategicamente cravado à página 161, justamente no início do capítulo XX, quando o fiel escudeiro Sancho Pança decide animar seu amo narrando-lhe o que considera ser “a rainha das histórias”. A “habilidade” do personagem em narrar diverte o leitor na mesma medida em que exaspera o Quixote, transformado em personagem-ouvinte. Releio a passagem há anos, como que obedecendo a uma prescrição médica contra a instalação do mau-humor. Recomendo.
Seguindo na mesma esteira, guardo ali ao lado meu exemplar de “Sobre Heróis e Tumbas”, do argentino Ernesto Sábato, para revisitar com assiduidade o capítulo 11, em que o personagem principal, inebriado por um espírito irônico, trava uma hilariante discussão em um bar com uma dupla de amigas feministas. A mesma ironia e o humor refinadíssimo, que subitamente provocam incontroláveis acessos de riso, podem ser facilmente detectados nas linhas do italiano Ítalo Calvino em seu “Se Um Viajante Numa Noite de Inverno”, no capítulo “No Tapete de Folhas Iluminadas Pela Lua”. Desaconselho a ler estas passagens em lugares públicos, sob o risco de ser visto como um alienígena em plena Praça Dante.
Mas se quiser mesmo correr o risco, seguem ainda outras indicações: o conto “O Homem que Chamava Teresa”, também de Calvino, incluído na obra “Um General na Biblioteca”; e os contos do russo Anton Tchekhov “Sobrenome Cavalar” e “A Morte do Funcionário”. Leia, e não ria, se for capaz...
(Texto publicado na seção Planeta Livro, da revista Acontece, em junho de 2007)

sábado, 21 de agosto de 2010

Juro que vi um vampiro

Engana-se quem pensa que a sedução gerada pelo mito do vampiro é um fenômeno característico do século 21, iniciado com a série de livros e filmes conhecida como “Crepúsculo”, que leva milhões de jovens às salas de cinema e (incrível) às prateleiras das livrarias. O interesse pelo universo dos dentuços remonta a culturas humanas ancestrais e ganha doses de revitalização em épocas distintas, por meios e motivações também distintas, sintonizando-se com a psiquê coletiva da humanidade. Senão, vejamos:
As antigas culturas grega, chinesa, arábica e caucasiana já conheciam as lendas girando em torno de seres que retornavam do mundo dos mortos para atormentar o mundo dos vivos, atacando e sugando suas almas. O conceito de vampiros especificamente sugadores de sangue criou forma mais evidente na Europa cristã a partir do século 12, e, a partir daí, é aquela coisa: quem conta um conto, aumenta um ponto. O conceito dos vampiros e o universo que os cerca vem sendo recriado a cada renovação da onda de interesse pelo assunto. Mas é importante prestar atenção, isso sim, para a mudança dos motivos do encantamento de cada geração pelo tema. Senão, vejamos mais uma vez:
Lá no início, nossos remotos ancestrais perdiam o sono por acreditarem realmente na existência dos mortos-vivos, e o interesse era despertado por um horror e medo genuínos. O advento das eras racionais relegou os chupadores de sangue ao mundo dos mitos retrabalhados pela ficção. Nessa fase, a sedução das massas pelos vampiros decorria do pretenso charme e poder de sedução que os monstrengos emanavam por trás de seus comportamentos duvidosos e egocentrados.
Durante o transcorrer do século 20, a ficção foi retrabalhando o tema, jamais esquecendo os componentes anteriores, mas enfatizando um ponto cada vez mais crucial: o aspecto da imortalidade. Existir durante cinco ou mais séculos, mantendo a juventude e a vitalidade, representa tudo o que nosso inconsciente coletivo deseja nesses tempos modernos de cirurgias plásticas, alimentação saudável e técnicas rejuvenescedoras.
A questão é que, nos dias de hoje, a retomada do interesse pelo vampiro se dá entre a juventude a partir de uma motivação no mínimo preocupante. Mais do que a apologia à imortalidade e aos superpoderes, o que desperta agora a curiosidade pelos mortos-vivos parece ser a liberdade total de ação de que eles desfrutam. Os vampiros retratados pela ficção moderna não vivem meramente à margem da sociedade, mas agem especialmente acima dela, além do bem e do mal.
Eles são seres que fazem o que querem na hora que querem, sem dar satisfações para ninguém, e possuem poderes para escapar ilesos das consequências de seus mais hediondos atos. Vampiros não pagam por seus crimes, seduzem quem bem entendem, eliminam seus desafetos, impõem suas vontades à força de seus poderes, furam as filas, jogam cascas de banana e bitocas de cigarro no chão, desrespeitam as leis de trânsito, bebem e dirigem, passeiam com pittbulls sem focinheira pelos parques, escutam música alto de madrugada, usam os outros para se dar bem etc.
Cuidado, olhe bem à sua volta. O mundo real está cada vez mais povoado por vampiros. Todos eles sugadores da convivência e da civilidade humanas. Até que uma estaca ou que raios de sol os detenham, sempre é bom lembrar...
(Crônica publicada no jornal farroupilhense Informante, em 20/08/2010)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A traição de Hermenilda

(Trio de senhoras na hora do chá, enquanto degustam torradinhas e criticam minhas crônicas)


Tirei do sério mais uma vez aquele grupo de distintas senhoras que me lê com assiduidade e que, tempos atrás, oficializou reclamação referente a meu estilo de escrita de tirar o fôlego devido à extensão impiedosa de alguns dos períodos que componho quando escrevo estas crônicas, nos quais acabo sendo irritantemente parcimonioso com o uso das pausas advindas das benfazejas vírgulas. A exemplo desta última frase, como podem ver, elas estavam cobertas de razão, pelo que, aliás, procuro não mais me estender tanto, o que nem sempre consigo, como também esta segunda e interminável construção frasal se esforça em comprovar, sem falar que esta, bem mais rica em vírgulas do que a anterior, em nada ajudou na intenção de proporcionar uma leitura menos asfixiante.
Desta vez, a reclamação dessas minhas fiéis leitoras aponta contra o hábito nem sempre explícito que tenho de tascar nos meus textos termos, expressões e vocábulos de difícil compreensão, dando não só a impressão de que possuo a ignóbil intenção de pavonear meus supostos dotes literários como, pior do que isso, obrigo-as a abandonar as confortáveis poltronas nas quais se abancam para degustar minhas crônicas com chás e torradas para dirigirem-se às estantes em busca dos pesados dicionários que lhes auxiliarão a desvendar as minhas más intenções literais. (Pausa para retomarmos as forças após este último maratonístico período).
Recompostos, sigamos, com as sobreviventes que houver. O que indignou agora esse grupo de fiéis leitoras foi a minha crônica de semanas atrás, que, segundo elas, já começava mal, com o despudorado uso da palavra “desagravo” logo no título. “Acho que devemos dar outro puxão de orelhas nesse rapaz”, disse uma delas, entornando a xícara de chá. “Vamos escrever para ele, reclamando”, propôs a que se chamava Hermenilda, mastigando uma torradinha. “Usaremos palavras difíceis e num estilo asfixiante, para ele ver o que é bom para a tosse”, ameaçou a terceira, tossindo. “Ele não encontrará ninguém que o desagrave”, emendou Hermenilda. Quero crer que ela foi vista pelas outras como traidora ao usar o hermético termo. Ela não sabe, mas desagravou-me.


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20/08/2010)

domingo, 15 de agosto de 2010

Vidas torradas

A imprensa traz a esdrúxula notícia sobre um homem de 60 anos de idade que morreu na Finlândia durante um campeonato de resistência em sauna. O duvidoso certame funciona assim: os inconsequentes (eu deveria dizer “competidores”?) encerram-se em uma sauna, ficam lá dentro suando bicas e os carrascos lá fora (eu deveria dizer “organizadores”?) vão aumentando a temperatura interna da sala, sob os apupos dos sádicos que assistem (eu deveria mesmo dizer “da torcida”?). Ganha quem resistir mais tempo à mais alta temperatura. Pois um masoquista-suicida russo (ou seria “esportista”?) não resistiu e morreu, obviamente, apresentando queimaduras de trigésimo-oitavo grau por todo o corpo. Fascinante, não é mesmo?
Sim, fascinante a extensão da estupidez humana e o desvalor com a própria vida, desvios comportamentais que não escolhem raça, credo, religião, classe social, nacionalidade e sequer idade. Ao mesmo tempo em que detectamos entre nossos familiares, amigos e conhecidos a força e a vontade de viver buscadas lá do fundo de suas almas, especialmente quando estão doentes ou avançados na idade, ficamos sabendo de ações doentias como a da notícia, em que as pessoas lidam com seus sopros vitais como se pudessem ser prontamente recarregados caso algo saia errado. Descobrem, pois, da pior (e mais óbvia) maneira possível, que isso é impossível.
A mesma postura do cidadão de 60 anos de idade (que, com sua vasta experiência, deveria estar dando exemplos aos mais jovens) que torrou a própria vida pode ser encontrada em quem pisa desvairadamente fundo no acelerador, em quem entorna litros de álcool e enfia-se a dirigir, em quem guarda arma em casa, naqueles que, enfim, das formas mais criativas ou tradicionais, pouco valor dão às suas vidas e às dos outros. O que move alguém a brincar com isso?
É a pergunta que me faço sempre que cometo a maior ousadia a que me permito em termos de esporte radical: andar de carrossel. Até a sala dos espelhos eu evito, temendo morrer de rir. Mas cada um é cada um, como já dizia meu finado avô. Detalhe: só morreu aos 90 anos e sempre apreciou uma boa sauna.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de agosto de 2010)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Detalhes literais de um mundo diferente

O Planeta Livro é um lugar que não existe fisicamente. Ele não tem território definido, tampouco suas fronteiras são fixas. Seu tamanho é imensurável e sua órbita é impossível de ser rastreada pelo mais potente dos telescópios. No entanto, sabem-se algumas coisas sobre ele. Sabe-se, por exemplo, que ele é habitado por todas as pessoas que possuem alguma espécie de relação com o objeto livro e com o ato da leitura. Sabe-se que seus domínios são mentais e seu território é visitado sempre que alguém abre um livro para ler, ou visualiza com curiosidade uma lombada numa livraria, ou percorre as estantes labirínticas de uma biblioteca, ou escreve um poema, ou monta uma barraca numa feira de livros, ou inscreve um inédito num concurso literário, ou lê em voz alta para uma criança, ou comenta uma obra bacana, ou recomenda um autor para um amigo, ou participa de um sarau e outras coisas dessa natureza.
Recensear o Planeta Livro é uma tarefa difícil, pois o ato precisa levar em conta o número de livros existentes no mundo (além dos não mais existentes, mas que um dia foram publicados, e todos aqueles escritos e ainda engavetados, mais os que por enquanto só existem na imaginação de seus autores); todos os escritores que já publicaram e aqueles que desejam publicar; todos os editores e os livreiros e todos todos todos todos todos os leitores de livros do mundo, vivos e mortos, porque, nos domínios do Planeta Livro, ninguém morre de verdade, mas passa para a posteridade. Mesmo assim, existem os momentos de luto no Planeta Livro, como quando uma livraria fecha as portas ou quando um escritor muito querido passa a desexistir no plano físico para habitar para sempre a posteridade, não mais escrevendo novos livros.
Foi o que aconteceu em junho deste ano, por exemplo, quando morreu o escritor português José Saramago, único Nobel de Literatura em língua portuguesa até o momento. A notícia de sua morte aos 87 anos de idade, em 18 de junho, comoveu todos os habitantes do Planeta Livro, porque tratava-se de um dos mais renomados escritores vivos e em atividade no mundo nos dias de hoje. Saramago era um clássico em vida, e é raro coexistir em um tempo em que figuras desse porte caminham junto com a gente sobre a Terra. Independentemente de concordar-se ou não com suas posturas filosóficas e políticas ou com sua constante queda-de-braço com a religião, Saramago encarnava o escritor profissional de talento e de mão cheia, que vivia da e para a literatura, abrilhantando os domínios do Planeta Livro com o seu inquestionável talento.
Eu estava ministrando um bate-papo sobre literatura e crônicas aos alunos da oitava série de uma escola municipal em Farroupilha naquela mesma manhã em que Saramago morria. Eu encarnava meu lado escritor em Farroupilha enquanto o escritor de verdade desencarnava nas Ilhas Canárias, do outro lado do Atlântico. Fiquei sabendo da notícia ao chegar em casa, no final da manhã. Surpreendi-me e enlutei-me. A surpresa se deu porque eu não esperava sua morte (e quem, afinal, a espera?), uma vez que a imagem que tinha de Saramago era a de um escritor velhinho plena e constantemente ativo, escrevendo, publicando e concedendo entrevistas. Não sabia que andava adoentado nos últimos anos. Afinal, recém havia dado à luz a “Caim”, seu agora derradeiro romance.
Já o luto se deu pela pena em saber que da pena e do talento dele não mais teremos novidades literárias, restando-nos ler aqueles títulos que ainda não lemos e depois dedicarmo-nos aos prazeres das descobertas das releituras, tarefas que, aliás, são plenamente gratificantes e inesgotáveis. A gente desenluta rápido no Planeta Livro, porque se sabe que ter o privilégio de habitá-lo significa ter o direito a um constante estado de alegria, aquela alegria que só o mundo dos livros e da leitura pode proporcionar, e que Saramago, junto a tantos outros, soube florir como o jardineiro das letras que era e que para sempre será, agora na eterna posteridade.
(Texto publicado na revista Acontece Sul de agosto de 2010, na seção Planeta Livro)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A Maçã Era a Lei


Quando certo dia Guilherme Tell descansava sob a sombra de uma macieira, quis o destino que uma maçã lhe caísse na cabeça. Apesar de aparentemente insignificante, o acontecimento deixou Guilherme bastante intrigado. Segurou o fruto com a mão e pôs-se a pensar. Após alguns momentos de profunda reflexão, chegou à conclusão de que aquela maçã lhe caíra na cabeça por estar devidamente madura e julgou aquilo um sinal para que recomeçasse os seus treinos de pontaria. Guardou a maçã, correu para casa, pegou o arco e as flechas e chamou o seu filho, que no momento se distraía com um livro de Física, para que o ajudasse. O resto da história todos se lembram e muitos se perguntam, até hoje, de onde teria surgido aquela estranha obsessão do arqueiro por inutilizar toneladas de maçãs, flechando-as por sobre a cabeça de seu próprio filho.
Apesar de frustrada pela incompreensão, a macieira não desistiu. Afinal, não era a primeira vez que a sua tentativa de revelar ao Homem um segredo científico da maior importância era mal interpretado. Na verdade, ela já tentara fazê-lo desde o seu primeiro contato com a espécie humana, há muito, muito tempo. Mas, infelizmente, apareceu uma maldita serpente para estragar tudo. De qualquer forma, não teria dado certo mesmo, pois Adão, na época, parecia ainda mais preocupado com outros assuntos. Físicos, mas de outra ordem...
Uma nova oportunidade surgiu quando, anos depois, uma senhora, trabalhando num sítio, resolveu fazer uma pausa perto da macieira. Sem perder tempo, a histórica árvore pôs-se em ação. Largou o fruto e ele, como era de se esperar, lançou-se para baixo, acertando em cheio a mulher, uma quituteira famosa que, imediatamente, inventou a torta de maçã.
Indignada, cansada de tanta incompreensão, a macieira finalmente desistiu de tentar revelar ao homem o seu segredo, pelo qual fora justamente batizada, no Éden, de “Árvore da Sabedoria”. Tomada a decisão, a macieira, resignada, nunca mais bombardeou com seus frutos as cabeças daqueles que vinham ao encontro de sua sombra para descansar.
Foi assim durante muitos anos, até o dia em que nasceu um garoto chamado Newton. Cresceu e tornou-se um jovem problemático, cheio de dúvidas em relação a si próprio e à sua verdadeira vocação. Ele queria porque queria ser arqueiro, de tanto que gostava de atirar com arco-e-flecha. Seu maior ídolo era Guilherme Tell, que flechara uma maçã na cabeça de seu filho. Mas o pai de Newton o contrariava, dizendo-lhe que deveria ir para a Universidade, estudar e ficar rico e famoso, que o arco-e-flecha não dava dinheiro para ninguém e que, afinal de contas, ele atirava muito mal. Tentando provar o contrário, Newton inscreveu-se num concurso de tiro-ao-alvo. Treinou bastante, colhendo algumas maçãs e colocando-as na cabeça de seus amiguinhos, para flechá-las. Teve de cessar os treinos quando perdeu todos os seus amiguinhos, mas não desistiu de participar. Classificado em antepenúltimo lugar, Newton quebrou seu arco e foi curtir a fossa sob a sombra da famosa árvore. Ficou lá sentado durante horas e horas, e a macieira nada. Ela estava mesmo decidida a não voltar atrás em sua atitude de nunca mais se meter nos rumos da humanidade.
E estaríamos até hoje nos perguntando por que a droga da caneta cai no chão quando escorrega de nossos dedos suados, obrigando-nos a fazer as mais mirabolantes contorções na tentativa de catá-la, arranjando, assim, lamentáveis dores nas costas e na cabeça, que bate na mesa quando já estamos voltando, se não fosse aquele ventinho providencial que soprou naquele momento e derrubou a maçã na cabeça de Newton, tornando-o famoso como o seu pai queria.
Pena que a História e as lendas costumem omitir tais detalhes...
(Crônica premiada em primeiro lugar no Concurso Literário Felippe D’Oliveira, de Santa Maria – RS -, em 1990)

sábado, 7 de agosto de 2010

Saudades dos Trapalhões?


Você faz aquele gênero saudosista, que tem saudades dos antigos programas de tevê da sua infância, adolescência e juventude? Eu, sim. Vamos ver se, nesse quesito, temos algumas saudades em comum. Por exemplo: você tem saudades dos Trapalhões, aquele quarteto humorístico que apostava no humor simples e direto, formado por Didi, Dedé, Muçum e Zacarias? Sim? Bom, eu, não. Quer dizer, explico-me:
Saudades do quarteto formado por Didi, Dedé, Muçum e Zacarias eu tenho, sim, e quem é que viveu aquela geração que não tem? Mas dos Trapalhões não tenho saudades não, porque continuo tendo a oportunidade (vejam bem, eu não disse “tendo o prazer”) de vê-los em ação nos domingos pela manhã, em dias de corrida de Fórmula-1. Lá estão eles, fazendo suas trapalhadas há anos. Palhaços fantasiados de esportistas que, depois de muito me irritar porque eu tolamente os levava a sério no início, agora me fazem rir, porque finalmente percebi os palhaços que na realidade eles são. Passaram de “ás no volante” para “asnos volantes”.
Sim, porque eu sou do tempo em que os pilotos brasileiros integrantes do chamado Circo da Fórmula-1 nos enchiam de orgulho não só pelos títulos que conquistavam nas pistas, mas pela postura de verdadeiros esportistas e de verdadeiros campeões que eram. As biografias de Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna estão aí para quem quiser ver e relembrar. Depois da morte de Senna, acabou a metáfora contida na palavra “circo” e as aspas caíram fora, com a chegada em cena dos modernos Trapalhões.
Além de se submeterem feito fantoches às maquiavélicas e anti-desportivas práticas dos dirigentes, simulando acidentes na pista (prova de mau-caratismo de todos os envolvidos, a começar pelo piloto), nossos pilotos protagonizam anualmente façanhas dignas de filmes dos Três Patetas, inclusive com um dos brasileiros arremessando peças de seu carro, em treino, contra a cabeça de outro brasileiro que vem atrás e que o deixa fora do ar por alguns meses. Depois, em plena recuperação nas pistas, esse mesmo brasileiro faz igual ao anterior e se rende aos desmandos de sua própria equipe, abrindo passagem para um companheiro que vem atrás e que deve conquistar os pontos da vitória. Muita palhaçada. Quem ainda leva a sério? Quem ainda se digna a torcer de verdade? Melhor usar essas duas horas dominicais dormindo, mesmo.
Minhas saudades, portanto, remontam aos tempos em que eu ligava a tevê domingos pela manhã para assistir a verdadeiras competições de automobilismo, regidas pela sadia e verdadeira competitividade entre pilotos e equipes, nas quais nomes brasileiros brilhavam pela competência e pela postura. Um tempo que, pelo visto, morreu junto com Senna na curva Tamburello.
“O, tempora, o, mores”! “Oh, tempos, oh, costumes”, escandalizavam-se os romanos sempre que detectavam os aspectos cotidianos que escancaravam a decadência de sua cultura e de sua civilização. Em termos de decadência ética, moral e de competência, estamos de fato acelerando na reta final...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 06/08/2010)

domingo, 1 de agosto de 2010

Desagravo à rabugice

(Na imagem acima, Catilina, à direita, sendo historicamente admoestado
por andar torrando a paciência de Roma inteira)

Esses dias de frio intenso que andam nos atacando neste inverno funcionam como um ótimo gatilho para a reflexão sobre assuntos variados durante o recolhimento aos rocamboles de cobertores e mantas a que nos submetemos no sofá da sala à noite, tiritando. O ato de bater os dentes intermitentemente ativa o cérebro e faz com que os neurônios se coloquem a funcionar por conta própria, surpreendendo-nos com ideias, pensamentos e conclusões sobre assuntos que não imaginávamos estarem transitando livres por dentro de nossas cabeças.
Foi assim que, numa noite siberiana dessas, fui atingido de súbito pela descoberta do motivo que faz com que as pessoas, à medida em que vão envelhecendo, costumem apresentar em comum (salvas as exceções) a característica de ficarem mais ranzinzas, rabugentas e intolerantes do que antes. Descobri que trata-se de um processo lento, gradual, irrestrito, contínuo e silencioso, que vai modificando o temperamento dos seres humanos e decorre de uma causa perfeitamente identificável: acúmulo de convivência com as piores características dos seres humanos.
A pessoa fica ranzinza, rabugenta e impaciente simplesmente porque passou tempo demais testemunhando ao seu redor a falta de educação, o desrespeito, o egoísmo, a truculência, a trapaça, o embrutecimento, as expressões da barbárie, a burrice, a deselegância, a rapinagem, a avidez, a incivilidade, o individualismo, a estupidez, a injustiça, o escárnio, a pilantragem, a violência e complete você mesmo a lista, que eu sei que é capaz. Paciência tem limite, a gente diz e ouve dizer, e esse limite parece que chega ao fim depois de tanto vermos triunfar as injustiças.
Nascemos e somos carregados, na origem, com uma dose determinada de paciência e tolerância a serem consumidas por nossos espíritos durante o transcurso das existências, ao lado de nossos desiguais semelhantes. Mas isso vai sendo consumido à medida em que a barbárie, que teima em não nos abandonar, se manifesta dia após dia, nas pequenas coisas do cotidiano até os fatos mais relevantes. E vamos cansando.
“Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?”, perguntava o orador Cícero em latim, mais de dois mil anos atrás, no senado romano, confrontando o conspirador (e colega senador) Catilina, que tramava contra César. Cícero indagava a Catilina até quando ele abusaria da paciência alheia. Nossos contemporâneos, compreensível e autorizadamente rabugentos, desejam saber até quando a paciência deles sofrerá com os abusos da falta de civilidade da maioria das gentes que os cercam. Qual é o momento em que a paciência com os defeitos humanos começa a se esvair? Qual é a dose de paciência que temos para com as mazelas protagonizadas por nossos semelhantes?
Para essas questões, ainda não tenho as respostas. Preciso tiritar mais um pouco...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30/07/2010)