sexta-feira, 29 de abril de 2011

A fúria transgressora

Vou fazer uma confissão. Sou a favor das multas no trânsito. Transgrediu, tome-lhe multa. É educativo, e é a maneira mais eficaz de aplicar diretamente a consequência da lei ao transgressor. Não deseja ser multado? Simples: não transgrida, dirija dentro da lei, obedeça a sinalização. E ponto final. Não existe “fúria arrecadatória” por parte dos governos ou dos órgãos autuadores. O que existe, isso sim, é a “fúria transgressora” dos motoristas, que gostam de voar a 120 quilômetros por hora em pistas cuja velocidade máxima permitida é 80. Multa neles e pronto.
E não adianta ficar brabinho e reclamar. Não é nada injusto. As leis de trânsito existem com um único fim específico: proteger as vidas das pessoas e civilizar o trânsito. Não deve ser assim tão difícil de compreender. E quem transgride as leis estipuladas, coloca-se na posição de ameaça direta à segurança, à vida e à civilização do trânsito. O que fazer com essas pessoas? Multá-las, no mínimo dos mínimos. E dou de graça ainda um conselho: não adianta se queixar para o bispo. Aliás, não adianta se queixar. Reclame de si mesmo, de suas próprias atitudes, de sua própria incapacidade de transformar-se em cidadão civilizado. Passe a dirigir legal e as multas desaparecerão, como num passe de mágica. Deixe de ser uma besta quadrada, se nesses termos fica mais fácil de compreender a coisa.
Porque é ruim quando dói no bolso, né. Infelizmente, é só assim que se aprende. Foi assim que eu aprendi, muitos anos atrás. Fui multado. Pesou no bolso. Não gostei. Passei a observar as regras e isso acabou se tornando hábito. Igual à questão do uso obrigatório do cinto de segurança. Não o uso por medo de levar multa. Uso-o por questão de segurança, mesmo. Temo possíveis batidas, especialmente provocadas por terceiros imprevisíveis. E uso-o para ir daqui até ali na esquina. Uso-o sempre. Para minha própria segurança. Assim como não voo mais nas estradas, não para evitar as multas, mas para preservar-me da punição maior, que seria o estraçalhar-me numa árvore e engrossar as estatísticas cruéis da chacina no trânsito.
Nesse último feriadão de Páscoa, 11 mil veículos foram multados nas rodovias do Rio Grande do Sul. Há várias leituras a se fazer a partir da informação. Uma delas é calcular o valor astronômico arrecadado pelos órgãos autuadores. Outra, é detectar a existência de no mínimo 11 mil infratores atrás dos volantes gaúchos, sem falar em todos aqueles que não foram flagrados. Que perigo! Só espero que os valores arrecadados não sirvam para engrossar as denúncias de corrupção e malversação de dinheiro público que temos também lido na imprensa ultimamente. É preciso frear a fúria transgressora dos motoristas, mas também a fúria da rapinagem de quem se aproveita do aparato público. A paz nas estradas apresenta variados fronts onde as batalhas precisam ser travadas. Eu, de minha parte, vou tirando o pé...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 29 de abril de 2011)

domingo, 24 de abril de 2011

O demônio da intolerância

Houve uma época em minha vida em que estive repleto de certezas e razões. O período durou do final da adolescência até o início da idade adulta, fase em que descobri o engajamento político e passei a ver o mundo sob um determinado prisma ideológico, que enquadrava tudo dentro de sua própria lógica. Comigo estavam os que pensavam igual a mim, e contra mim estavam os que pensavam diferente. Bem assim, maniqueísta e fácil. Maniqueísta, fácil e, obviamente, obtuso e preconceituoso, que são o troco inevitável de quem decide adonar-se da razão. Para minha própria felicidade, demorei-me poucos anos nessa fase, e logo percebi que vivo melhor e mais feliz estando desprovido de certezas e de razões, e mais municiado da capacidade de maravilhar-me com o mundo, com as pessoas e com as formas inesgotáveis como elas expressam suas maneiras únicas de viver suas vidas.
A diversidade é a maior riqueza da humanidade, foi o que aprendi, no final das contas. E para poder apreciar a diversidade, é fundamental saber exercitar a tolerância. Mas é a ausência dela que faz o mundo ainda não ser um bom lugar para se viver. É na intolerância que reside a fonte de quase a totalidade dos males que assombram o planeta.
É a intolerância ao diferente que move o bullying nas escolas e forja desequilibrados que vão cobrar a fatura anos mais tarde na forma de chacinas. É a intolerância ao diferente que move piadinhas racistas que não doem na alma de quem as faz mas que dilaceram o espírito de quem delas é alvo. É a intolerância que inspira uma multidão de torcedores a oprimir com xingamentos o atleta homossexual que está na quadra disputando campeonato. Foi a intolerância levada ao extremo que consolidou o nazismo e o transformou em ordem vigente na culta Alemanha durante alguns anos.
Não podemos ser tolerantes com a intolerância. Se é na marra que o ser humano evolui, então que se avolumem os processos contra os atos de intolerância, movidos por vítimas corajosas. É preciso transformar o mundo em um lugar melhor para todos, nem que seja aos trancos. Afinal, para extirpar o nazismo, foi necessário fazer terra arrasada da Alemanha. A História sempre tem muito a ensinar.
(Publicado no jornal Pioneiro em 22 de abril de 2011)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Um alento aos leitores

Os catastrofistas de plantão provavelmente entraram em pânico no início de março deste ano, ao depararem com as notícias sobre o pedido de concordata feito pela cadeia de livrarias norte-americana Borders, com o consequente fechamento de 200 lojas (das 650 que possui) em todo o território daquele país. “É o fim dos tempos da literatura”, exclamaram alguns; “é a prova de que a morte dos livros não tem mais volta”, gemeram outros; “eu disse, eu disse, eu disse”, repetiram os pessimistas. Mas isso é o que dá restringir-se a ler apenas os títulos das notícias. É igual a julgar conhecer os meandros da Montanha Mágica de Thomas Mann só devido ao título, e supor que se trata de uma saga juvenil em que um mago poderoso treina jovens adolescentes no topo de uma colina. As coisas não são bem assim, como bem sabem quem leu A Montanha Mágica e quem analisou com mais cuidado os meandros das notícias.
É verdade que o fechamento súbito de 200 pontos de venda de livros de uma rede de livrarias representa um baque e um enxugamento claro no setor, afetando o cotidiano de leitores nos Estados Unidos. Mas não representa, por si só, o início de um efeito dominó que resulte, em tempo recorde, no sumiço das livrarias físicas em favor das virtuais e no banimento ao limbo dos livros impressos e palpáveis. Conforme mostram as notícias sobre a concordata da Borders, o problema foi consequência direta de má gestão financeira (mal que acomete empresas de todos os setores da economia, sem distinções) e imobilidade estratégica para se posicionar frente às novas demandas do mundo moderno. Ao frigir dos ovos, a Borders acusava dívidas de U$ 1,29 bilhão contra um patrimônio de U$ 1,27 bilhão. Devia mais do que possuía, igual aos brasileiros que fazem financiamentos para comprar camionetes de luxo e apartamentos duplex, mas não têm dinheiro na poupança nem para comprar um cotonete. Entenderam? Mesmo assim, a rede segue ainda com 450 lojas nos Estados Unidos, o que não é exatamente “pouca coisa”.
Mas bastou para tirar o sono de quem pensa que os livros vão acabar. Calma. As coisas não são bem assim. Para equilibrar a balança entre más e boas notícias, e devolver a paz no sono dos amantes dos livros, vale dar atenção à notícia divulgada também em março pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), demonstrando que o mercado livreiro cresceu 9,6% no Brasil em 2010. Que tal essa? E sabe o que mais? A pesquisa, realizada anualmente no setor livreiro brasileiro pela ANL, demonstra também que 78,3% das livrarias no país pretendem fazer investimentos ao longo de 2011, que se concretizam na forma de capacitação profissional de seus funcionários, ampliações ou reformas nas lojas, mais tecnologia e abertura de novos pontos de venda. Bom, não? Isso sem falar no setor editorial brasileiro que segue firme e forte, com lançamentos de livros inundando as prateleiras a cada semana e editoras novas surgindo em todo o território nacional.
Se o livro vai desaparecer, aviso aos navegantes que não é para tão logo. Por enquanto, só me tiram mesmo o sono são os livros que desaparecem de minha estante quando os empresto e não me devolvem. Mas isso não é de hoje...
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, de Caxias do Sul, edição de abril de 2011)

sábado, 16 de abril de 2011

O conforto aos seus pés


Um passeio de Ferrari por uma autoestrada europeia; uma banheira de hidromassagem com sais após um dia de trabalho árduo; uma lareira acesa em uma noite de inverno serrana; uma massagem nos pés após uma caminhada; uma espreguiçadeira à beira da piscina; uma cabine de primeira classe em um cruzeiro transatlântico; um camarote vip em um show de rock; uma cama fofa com travesseiros fofos e cobertores quentinhos em um quarto climatizado. Tudo isso são situações que, em comum, possuem o fato de evocarem a sensação idílica de conforto. Mas nada, nenhuma delas, é capaz de superar o conforto e o aconchego proporcionados por um par de chinelos velhos. Sabe aquele chinelo que sua consciência (ou sua esposa, ou seu marido, ou sua mãe) já faz anos que manda meter lixo afora, mas você não tem coragem de fazê-lo por uma questão de apego emocional inexplicável? Aquele par de chinelos que você está proibido, pelas regras não escritas do bom-senso, de calçar quando chegam visitas? Pois é exatamente deles que estamos falando. Eles dormem ali, quietinhos, no sapateiro, dando as boas-vindas aos novos pares de calçados que você vai adquirindo com o passar do tempo (rosnando imperceptivelmente sempre que chega um novo chinelo, é óbvio), mas estão sempre prontos para atender ao seu chamado a qualquer momento. E esses momentos, você percebe agora, são mais frequentes do que gostaria de admitir. Os chinelos velhos, que calçam seus pés como luvas, são como um animalzinho de estimação: você os coloca e eles te seguem fielmente para onde quer que você vá. Se virar abruptamente a cabeça para trás, será capaz de flagrar o rabinho imaginário deles abanando em seus calcanhares, em renovada alegria. Deveriam existir fábricas de chinelos velhos, assim como desconfio existirem fábricas de móveis antigos, para suprir essa demanda por um artigo causador de tamanho conforto. Mas nada se igualará a um genuíno chinelo velho moldado no uso cotidiano de seus pés ao longo de boa parte de sua existência. Artigo de luxo, ao alcance dos pés de qualquer vivente que tenha a sensibilidade necessária para detectar os pequenos momentos de felicidade que silenciosamente o cercam. (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de abril de 2011)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Bilhões fazem pensar

Precisamos ser mais humildes em relação à importância que conferimos a nós mesmos enquanto seres individuais e enquanto espécie. Humildade significa consciência a respeito de seu real valor e significado perante a existência, e maior consciência representa libertação interior, tolerância e mais capacitação para aprimorar a convivência com nossos iguais. A humildade, analisando as coisas sob esse prisma, pode ser o mais eficaz instrumento de promoção da cidadania de que a civilização humana já dispôs. Fomentados especialmente pelas religiões e mesmo pelas conquistas científicas decorrentes do cultivo do pensamento lógico e cerebral, nós, seres humanos, temos a tendência de cultivar uma autoimagem estratosfericamente positiva a respeito de nós mesmos. Achamos que somos maravilhosos a ponto de sermos os donos do pedaço, e julgamos, entre outras coisas, ser plausível a crença de que ou somos imortais, ou viveremos em algum outro plano de existência após nossas mortes terrenas, ou reencarnaremos ou qualquer outra coisa semelhante que a divina providência (que só existe para atender às nossas vontades humanas, como bem sabemos) providencialmente providenciou para nós, esses seres tão fantásticos e indispensáveis que somos. Alta autoestima, dizem os psicólogos, não faz mal a ninguém. Porém, prepotência crônica pode levar à autodestruição. Vamos analisar uma coisinha, para fazer um pouco de água nesse canteiro de rosas filosófico em que nos embretamos. Segundo estimativas feitas pelo Population Reference Bureau, uma agência americana especializada em pesquisas relativas a questões populacionais, desde o surgimento da raça humana até os dias de hoje já viveram cerca de 107 bilhões de pessoas sobre a Terra. Usando-se como parâmetro a (super)população atual de humanos do planeta – cerca de 7 bilhões -, é fácil dimensionar que o número de indivíduos que já passeou por essas plagas é realmente enorme. Cabe tudo isso no céu, pergunto eu? 107 bilhões de pessoas se acotovelando lá entre as nuvens, engarrafando, sujando e tumultuando o paraíso? Nossa... é gente, hein? Sem falar que, desses 107 bilhões de seres, quantos deles deixaram algum sinal relativo à sua passagem pela vida? A mais absoluta maioria (99,999999%, talvez) nasceu, viveu, sofreu, sonhou e morreu sem imprimir nenhuma marca na história. Seus corpos viraram pó e sua lembrança virou fumaça. Dá no que pensar, não é mesmo? Para mim, isso tudo funciona como um bálsamo. Humildemente consciente de minha insignificância e de minha inegociável finitude, procuro aproveitar o milagre que me foi concedido e viver uma vida o mais plena possível, valorizando-a ao máximo e também a de meus semelhantes, companheiros de inexplicável aventura, respeitando-os de forma cidadã. Deveria bastar essa percepção para que o mundo fosse um lugar mais agradável e tolerante para vivermos essa tão curta, única e instigante experiência que é a vida. Se assim fosse, tenho convicção de que muita porcaria poderia ser evitada e banida de nossos noticiários. (Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 15 de abril de 2011)

domingo, 10 de abril de 2011

O valor das crônicas

Uma das funções de um bom cronista é lançar novas luzes sobre assuntos que estão na pauta do dia das pessoas, auxiliando-as a refletir a partir de um outro viés. Poderíamos dizer que nossa função é descortinar o novo, desbravar nuances, surpreender pelo inusitado, causar espanto, suscitar a reflexão, melhorar o mundo, apaziguar os lares, promover a paz, sermos amigos da natureza e... opa, me empolguei. Acontece, às vezes. Desculpem. Mas vejam bem: alguém aí já percebeu um troço que eu notei dia desses, quando a tevê estava ligada na hora da novela? Não? Pois então, aí é que está, vou revelar um novo viés, trazer o inusitado para o debate, gerar discussão, surpreender e coisa e tal. Especialmente porque, em se tratando de novelas televisivas, a audiência da crônica seguramente sobe às alturas. Então, é o seguinte: vocês já perceberam que todos os personagens das novelas, sejam eles ricos ou pobres, mocinhos ou vilões, abobados da enchente ou espertinhos, altos ou baixos, belos ou feios, residem todos (mas todos todos todos todos) em casas cujas portas dão diretamente para a rua? Em casas totalmente inseguras, sem grades, sem portões, sem muros protetores e, quando em condomínios, ainda sem porteiros eletrônicos e sem guardas privados? E mais: nenhum deles (nenhunzinho sequer) tem grana para cravar um olho mágico na porta? Já notaram? Sim, porque, nas novelas, um dos momentos de maior tensão e espanto é quando alguém bate à porta da casa, ou toca a campainha, e o personagem que está dentro da residência nunca, mas nunquinha, sabe de quem se trata. E pior: ele sempre abre a porta, impulsivamente, e tcharannnn! Leva aquele baita susto! “Oh, é você, Agenor! Como me achou aqui?” Como é possível? Como é que Agenor chegou até a porta da casa da Roxane? Ele pulou o muro? Ele esfaqueou o vigia? Ele explodiu a caixa do porteiro eletrônico? Ele envenenou ou estrangulou os rótivândalos e os bradpittbullyngs que protegiam o quintal? Ele tem superpoderes espectrais? Não, leitores. É simples. É tudo ficção. Podem dormir apaziguados e aguardar por outra elucidativa crônica na semana que vem. (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de abril de 2011)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Despertar felino


Eu, por mim, acordava sempre meia hora mais tarde. No meu horário de acordar, mesmo. Problema é que o gato de estimação que mora lá em casa tem um relógio biológico diferente do meu e não se contenta em dar início às suas atividades felinas matinais sozinho. Ele exige minha presença, minha participação ativa nas tarefas a que se propõe desde o raiar do sol. E, para isso, lança mão (ou lança patas, unhas e língua) a todos os expedientes que conhece para me despertar e me envolver em suas demandas. Minha esposa possui a bênção do sono profundo e ele sabe disso, o que o faz ignorá-la e direcionar seus esforços todos sobre mim. Eu, amaldiçoado com sono leve, não preciso de mais do que dois miados no ouvido, ou uma patada no focinho (quer dizer, no nariz), ou uma roçada de cabeça no joelho para me colocar plenamente desperto às seis e meia da manhã. E ele também sabe disso. O que ele não sabe é que não sou escravo de horários fixos predeterminados. Tenho minha própria agenda de compromissos, maleável, instável, cambiante, diferenciada. Sou meu próprio patrão. Não preciso me levantar às seis e meia. Posso pular da cama às sete, que é como programo meu cotidiano, para, assim, dar início aos meus trabalhos às oito e meia. Mas fazer o que, se a jornada de Bioy, o gato, começa às seis e meia, e ele decidiu que, para iniciá-la, precisa de mim a seu lado? E não adianta simplesmente acordar, virar para o lado e pelo menos permanecer na cama pela meia hora que, de direito, ainda me pertence. Impossível fazê-lo com um gato mordiscando os dedos do teu pé, ou miando em teu ouvido, ou trazendo na boca a conta de luz na esperança de que aquele papel se transforme em bolinha a ser jogada com ele. Não tem jeito, a única alternativa é saltar da cama e interagir com o bichano às seis e meia da manhã mesmo, para a alegria e felicidade dele. Meia hora depois (às sete em ponto, portanto), quando já estou irremediavelmente desperto, ele traidoramente se entrega ao mais felino e profundo dos sonos matinais no sofá da sala. Um sono de dar inveja. E de morrer de raiva. Ainda não o esganei e nem tenciono fazê-lo. O consolo é que começo a desconfiar de que sou uma boa alma... (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de abril de 2011)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Que dia é hoje

Sou insistentemente contra essa imposição mercantilista que o comércio força sobre as pessoas, transformando datas especiais em pretextos para a gastança. Natal não é mais um convite para a reunião em família e a reflexão sobre a saúde dos valores humanos que regem nossas vidas (se é que eles ainda existem). Páscoa deixou de ser um momento em que a reflexão interior também ganha espaço e mesmo a tradicional brincadeira de procura pelo ninho escondido pelo Coelhinho já se esfumaça na memória dos mais velhos. Aniversário, dia das mães, dia dos pais, dia do amigo, tudo virou pretexto para comprar presentes, como se essa fosse a única maneira aceitável na atualidade de demonstrar afeto, carinho, consideração, lembrança. Como se não bastasse, até o norte-americano Halloween (o dia das bruxas) já estamos importando, bem como o Valentine’s Day, que nem sei direito de que se trata e, por favor, não se preocupem em me explicar, que pouco se me dá. Tudo, claro, para amplificar o tilintar dos cobres nas caixas registradoras do comércio e da indústria. Para aquecer a economia. Para gerar empregos e coisa e tal. Tudo muito lindo, sou a favor de aquecer a economia e de gerar empregos e coisa e tal, e como é que poderia ser contra? O que me preocupa é a subserviência pacífica, o comportamento de boiada que nos habituamos a adotar frente ao estímulo mais raso, ante a mais leve convocação do sistema para que gastemos. Se eu não der um presente para a minha mãe no dia das mães, é sinal de que não amo a minha mãe como deveria, correto? Pois é. É isso aí, seu desalmado. Monstro. Insensível. Filho ingrato, mau, horroroso. Como é que dorme à noite? Levanta, vai lá, compre um presente (de preferência, bem caro) e escancare o tamanho de seu amor. Caso contrário, se ficar só no sentimento, só naquela coisa de coração, ninguém vai ver, né? Pois é. É isso aí. Existe algo mais discriminatório do que o Dia Internacional da Mulher? Reservar um dia entre os 365 do ano para reverenciar as mulheres é consolidar a visão discriminatória que a sociedade nutre sobre o gênero feminino. Homens e mulheres devem lutar por igualdade e não por discriminação. Quer ser romântico e amoroso, seja-o hoje, amanhã. Surpreenda. Ludibrie o sistema, os comerciantes, e encante a quem você ama por você mesmo, não por imposição, não por obediência ao calendário. “Eu amo muito a minha mulher no Dia da Mulher. É quando mando flores para ela”. Que amor, você... Mas nada contra presentear. Eu adoro dar e receber presentes. Mas tudo contra a obrigação e a mercantilização dos sentimentos. Tudo contra a cobrança e a deturpação do real sentido e da real dimensão das coisas. Alice, a do País das Maravilhas, ensinou a celebrar o Dia do Desaniversário, pois não? É uma alternativa a se pensar... Ah, hoje é primeiro de abril, dia dos bobos, da mentira, lembra? Será que é só hoje mesmo...? (Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 1 de abril de 2011)