sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Embarque na Praça Dante

Atenção senhores passageiros do voo 027 partindo de Caxias do Sul com destino às mais altas nuvens da literatura local, nacional e universal, favor dirigirem-se a partir desta sexta-feira ao portão de embarque da Praça Dante Alighieri. A decolagem está prevista para logo mais, às 18h30min, na plataforma do palco central da Feira do Livro de Caxias do Sul. Tenham em mãos seus cartões de embarque, constituídos pela vontade de ler, de vasculhar livros, de circular pelos estandes das livrarias, de encontrar pessoas, de bater papo com autores, de capturar autógrafos nas sessões de lançamento, de participar dos debates, de ler no Leiturário, de frequentar o café literário, de respirar cultura.
A previsão de duração de voo até o nosso destino, as paradisíacas praias do crescimento pessoal a partir da leitura, é de 17 dias, independentemente de sol ou chuva, uma vez que não existe mau tempo quando se trata de alçar a viagem da literatura. Sobrevoaremos ininterruptamente a Praça Dante, nos esforçando para proporcionar a todos os passageiros o melhor serviço de bordo capaz de agradar aos clientes de nossa companhia literária. No cardápio, oferecemos uma dieta de leitura farta, eclética e compatível com todos os gostos, da poesia à crônica, do romance à autoajuda, dos contos às fábulas, apta a alimentar os espíritos de todas as gentes.
Oferecemos às crianças que optam por nossos serviços um atendimento personalizado, com cabines especialmente projetadas para os seus interesses e gostos, bem como uma programação específica elaborada no sentido de fidelizá-las para sempre em nossa companhia e na dos livros. Em caso de turbulência, não se espantem: é apenas o tremor causado pela algazarra dos pequenos leitores correndo a bordo de nossa aeronave, entusiasmados com a diversidade de livros a seu dispor durante o passeio.
Não há distinções de classe em nossa aeronave, sendo permitido o acesso livre dos passageiros a todas as dependências existentes, criadas para o deleite de todos. Se a bagagem de mão forem livros, não há nenhum limite de peso por passageiro. Desapertem os cintos, circulem à vontade e uma ótima viagem a todos, sob os cuidados da comandante Luiza Motta e do patrono-piloto Marco de Menezes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de setembro de 2011)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Foi sempre assim?

Estou convicto de que a evolução é uma das mais significativas características que moldam a história da humanidade através das eras. Mais do que a mera evolução biológica, interessa-me a evolução social de nossa espécie, manifestada por meio do aprimoramento dos indivíduos em si, das regras das sociedades em que convivem e, por consequência, do próprio conceito de humanidade. A evolução é um processo contínuo e permanente de transformação, na busca por melhores condições de vida a todos.
O contrário desse processo é a inércia, a estagnação, que agem como forças poderosas regidas pelos interesses sempre de alguns poucos, no sentido de manter privilégios em detrimento do alargamento do bem comum. A evolução, portanto, não se dá de forma natural, mas, sim, decorre da determinação de indivíduos ou grupos de indivíduos que se municiam da coragem necessária para empreender as transformações que alteram o quadro vigente e alçam a história para novos e mais significativos patamares.
“Sempre foi desse jeito, as coisas sempre foram assim” é o falso argumento que sustenta a tentativa de manutenção de uma situação que começa a caducar frente a uma nova visão de mundo que se estabelece. Até o início do século 18, na Europa, por exemplo, a visão que se tinha de poder político era aquela que conferia aos reis o dom divino de governar. “Sempre fora assim”, até que começaram a entrar em cena as visões transformadoras do filósofo Jean-Jaques Rousseou, afirmando que o poder político emanava era do povo, e não de Deus.
Africanos foram capturados, feitos prisioneiros e trazidos ao Novo Mundo para serem escravos e servirem aos senhores brancos. “Sempre fora assim”, até que, enfim, o “assim” ficou inaceitável e foi mudado. Mulheres não tinham direito a voto, nem a voz, nem ao mercado de trabalho, como “sempre”. Até que o “sempre” foi questionado e transformado. Tudo o que “sempre foi assim” acaba chegando ao fim quando seus propósitos não atendem mais aos anseios de uma comunidade em constante processo de transformação. É preciso estar em sintonia com os novos tempos, para não correr o risco de ter a cabeça guilhotinada por defender arcaísmos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de setembro de 2011)

domingo, 18 de setembro de 2011

Miseri Coloni: 30 Anos de Palco



Meu mais novo livro, "Míseri Coloni: 30 Anos de Palco", será lançado, com sessão de autógrafos, na Sala de Autógrafos da 27ª Feira do Livro de Caxias do Sul, dia 1º de outubro (sábado), a partir das 17h, na Praça Dante Alighieri. Estão todos convidados.


O embrião para o surgimento de um dos mais importantes polos geradores de cultura e de resguardo das tradições regionais surgiu em Caxias do Sul durante um típico dia de chuva que acelerava o cotidiano no centro da cidade, no hoje distante ano de 1981. A partir de um encontro casual proporcionado por aquele cenário urbano, Arcangelo Zorzi Neto e Pedro Parenti tiveram a ideia de formar um grupo de teatro que resgatasse os costumes e a cultura dos descendentes de imigrantes italianos localizados na região da Serra Gaúcha, mantendo vivo o dialeto vêneto e levando a arte do palco a localidades interioranas que jamais haviam tido contato com essa forma de expressão artística.
Surgia ali o grupo teatral Miseri Coloni que, ao longo dessas últimas três décadas, ultrapassou os objetivos iniciais e estabeleceu-se como um foco produtor de arte de primeira qualidade, protagonizando um capítulo fundamental na história da cultura de Caxias do Sul, da região e do Rio Grande do Sul. Montagens como “Nanetto Pipetta”, “Quatrilio”, “De Là Del Mar” e outras encantaram plateias em capelas e salões paroquiais no interior bem como nos palcos urbanos de cidades gaúchas, de fora do Estado e até do exterior.
A trajetória do grupo, os detalhes de sua formação, a montagem de todos os espetáculos e saborosas histórias de bastidores são a tônica do livro “Miseri Coloni: 30 Anos de Palco”, escrito pelo jornalista e escritor Marcos Fernando Kirst, a partir de depoimentos de seus integrantes e de um profundo trabalho de pesquisa em documentos e recortes de jornais. A obra, com 248 páginas, foi aprovada pelo Financiarte e sai sob o selo da Editora Maneco, trazendo ainda ilustrações feitas pelo artista plástico Antonio Giacomin.

sábado, 17 de setembro de 2011

De geração em geração

Adultos são malas. Todo adulto ou esqueceu que já foi criança e adolescente ou idealiza a sua própria infância e adolescência, querendo convencer a si mesmo de que, quando tinha aquelas idades, já era uma pessoa madura, consequente, refinada, perspicaz, mansa, obediente, culta e tudo o mais de bom que se possa imaginar. Fala sério. Se isso for verdade, então você de fato nunca foi criança e sua adolescência foi vivida em um colégio interno de freiras otomanas. Se não isso, só resta uma alternativa: está mentindo. Adulto mentiroso? Belo exemplo para as novas gerações, hein?
Veja a questão do cantor-mirim Justin Bieber, esse que vem ao Brasil em outubro e que deixa a molecada eletrizada de expectativa. Canso de escutar adultos malhando o menino, criticando o suposto mau gosto da gurizada e implicando com o cantor tachando-o de mero produto de mídia e marketing, desprovido de talento e de estofo artístico. Ora, pois, senão vejamos. Em primeiro lugar, a discussão relativa ao gosto musical de cada um não tem cabimento. Esperava-se o quê? Que a meninada fosse, aos 10, 12 anos de idade, fã incondicional de Beethoven, de Villa-Lobos, dos Beatles?
Aliás, falando em Beatles, só para recordar algumas coisinhas aos maladultos de plantão... Se hoje o grupo britânico é universalmente aceito como “clássico” do rock and roll, criador das mais belas canções pop que perduram em nossas mentes até a atualidade, é bom lembrar que, quando estouraram na mídia, no alvorecer da década de 60 do século passado, eles se constituíam em um fenômeno eminentemente adolescente. Quem comprava os discos, quem ia aos shows, quem gritava histericamente os nomes de John, Paul, George e Ringo, eram menininhas (e alguns meninos) de 12 a 15 anos, criando aquilo que entrou para a história como “beatlemania”. Adultos só passaram a prestar atenção na banda algum tempo depois, quando o som dos caras também começou a amadurecer. Hoje, porém, qualquer sessentão grisalho e barrigudo sacode o pezinho ao som de “Please, please me” e “I wanna hold your hand”, achando-se cidadão de bom gosto (eu incluso, apesar de apenas quarentão).
E tem mais. Deem graças a Deus (e aos marketeiros internacionais) por seus filhos, sobrinhos, netos, afilhados, priminhos pendurarem em seus quartos pôsteres de Justin Bieber, que não passa de fase passageira e se constitui, em última instância, em entretenimento sadio. E rezem para que, quando se tornarem adultos, não troquem as imagens dele enquanto ídolo por cartazes de Fernandinho Beira-Mar ou de políticos como aqueles que dizem estarem se lixando para a opinião pública, só para citar algumas podridões que infestam a sociedade.
A que ponto de maturidade cheguei... defendendo Justin Bieber... Realmente, acho que não tive infância...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 16 de setembro de 2011)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Herança psíquica

Como é a primeira vez que os atentados terroristas ao World Trade Center completam dez anos (e seguramente será a única), julguei cabível seguir com algumas reflexões a que dei início na semana passada, quando recordava o clima sombrio de expectativa apocalíptica que se apoderou de boa parte do mundo nos dias subsequentes ao fato e que acabaram marcando a psiquê coletiva deste início de novo século. Como eu era editor de Mundo no Pioneiro à época do 11 de setembro de 2001 e coordenei a cobertura feita pelo jornal, guardei, naturalmente, a título de recordação, exemplares das primeiras edições especiais cobrindo os fatos.
Hoje, passado esse tempo, aquelas páginas falam muito sobre como o mundo mudou em apenas uma década. A edição do dia 12 de setembro trazia, em 14 páginas, os fatos ainda em boa parte desconexos que atordoavam o planeta e sabíamos que entravam para a história da humanidade. Já a edição de 13 de setembro, mancheteada como “O dia seguinte”, trazia os rescaldos iniciais dos atentados e começava a apontar suspeitos e possíveis reações de retaliação por parte dos norte-americanos, aprofundando a sensação de catástrofe iminente que tomava o mundo.
Mas o que me chamou a atenção, folheando essa última edição em específico, foi o anúncio da Lojas Arno publicado na página 5 do jornal, exibindo os preços imperdíveis dos artigos mais procurados na época. Entre eles, me detive em uma máquina de escrever elétrica Olivetti Práxis, com memória de 7 mil caracteres e inserção automática de papel. Ainda vendia-se máquinas de escrever em 2001! Quanta coisa mudou em dez anos: as Torres Gêmeas não existem mais; a Lojas Arno foi vendida e máquinas de escrever só despertam o interesse de arqueólogos da tecnologia.
Dia desses viajei ao exterior. Na ida, tive de tirar até o cinto das calças e segurá-la com as mãos para ser aprovado pelo detector de metais no aeroporto. Na volta, tive de deixar de presente na alfândega um vidrinho de licor que trazia de lembrança e esqueci na bagagem de mão. Desde 11 de setembro de 2001, até eu posso ser um terrorista. E isso que, até agora, só assassinei minhas antigas máquinas de escrever...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de setembro de 2011)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A renovação de um deleite

Se a primeira impressão é a que fica, o mesmo se dá com as sensações. O contato primordial com algo que nos confere prazer vem carregado de tamanha força psíquica que nos fica impressa a sensação na alma de tal maneira que, no transcorrer de nossas existências, passamos em vão tentando resgatar com a repetição do ato, sempre sem sucesso.
O sabor do chocolate, por exemplo. Houve alguma vez, lá na longínqua infância, em que nossas papilas gustativas tiveram pela primeiríssima vez a alegria de se verem confrontadas com o gosto e o sabor apaixonante de uma barra de chocolate, amorosamente ofertada por algum de nossos parentes. Lambuzamo-nos as mãos e a boca em uma sessão de alegria infantil frente ao maravilhamento que aquela sensação primordial provocava em todos os nossos sentidos, descobrindo um deleite até então jamais vivenciado. Dali para adiante, sempre que rasgamos o invólucro de algum chocolate qualquer, inconscientemente estamos tentando repetir em nossos sentidos a mesma explosão de prazer que ocorreu naquela vez primeira, mas esse efeito jamais será repetido em igual intensidade. Nossa busca, no entanto, é incessante, e passamos a vida a comer chocolates, degustar vinhos, fazer amor, escutar (e reescutar milhares de vezes) a mesma música, praticar os mesmos atos.
O escritor francês Philippe Delerm publicou um livrinho intitulado “O primeiro gole da cerveja” (Editora Rocco), em que enfileira algumas dezenas de crônicas versando sobre a questão dos singelos prazeres que tornam nossas vidas mais deliciosas. E justamente o texto que dá título ao livro é o que se refere à sensação primeira de um prazer, no caso, o ato de saborear um copo de cerveja. Segundo Delerm, nenhum dos goles seguintes se equipara ao prazer do primeiro, fazendo eco à teoria que estou aqui defendendo.
Algumas vezes, no entanto, é possível acontecer um raro fenômeno de epifania, quando estamos a repetir pela milionésima vez um prazer já conhecido e, sem que esperemos, somos possuídos pela sensação explosiva e arrebatadora do novo. É a renovação do prazer, algo que ocorre uma vez em duzentos trilhões, conforme pesquisas recentes que eu gostaria que de fato existissem. Deu-se comigo anos atrás quando experimentei pela primeira vez um vinho chileno produzido com a uva carmenére, que me renovou a sensação de degustar algo realmente novo em termos de varietais viníferas. E dá-se comigo, na razão de uma vez a cada dez anos, no quesito da leitura.
Lá de vez em quando, em meio a tantos livros (e a tantos livros bons, importante ressaltar), ocorre de me cair em mãos a leitura de um texto que renova meu prazer primeiro de estar tendo o contato com um tecelão da genialidade da escrita. Que sensação deliciosa! Deu-se comigo cerca de dez anos atrás, quando li meu primeiro Ítalo Calvino (“As Cidades Invisíveis”), o que me obrigou a adquirir e ler de um fôlego só toda a sua obra. E deu-se agora, neste 2011, ao ler os dois únicos livros escritos pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), “Pedro Páramo” (romance de 1955) e “Chão em Chamas” (contos, de 1953). Estou extasiado. Amortecido pela inundação do prazer primeiro de uma sedutora leitura, como se nunca tivesse lido algo tão bom antes.
Bom mesmo é ter a certeza de que, prosseguindo nesse ritual de leituras incessantes, haverei de ainda ser brindado com a repetição da unicidade deste prazer ainda várias vezes ao longo da vida. É a recompensa pela dedicação à leitura, que sempre está à espreita dos leitores por vocação.
(Texto publicado na seção "Planeta Livro" da revista Acontece Sul, em setembro de 2011)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Quando o terror bateu à porta



Dez anos atrás, eu era editor de Mundo do jornal Pioneiro. Na manhã daquela terça-feira, 11 de setembro, eu estava em casa, me preparando para ir ao trabalho, quando meu vizinho e colega, o também jornalista Daniel Corrêa, então editor de Polícia, chamou-me junto à cerca, apavorado, dizendo para eu ligar a televisão que estava acontecendo algo estranho em Nova York. Liguei o aparelho e vi a inesquecível imagem de uma das torres do World Trade Center em chamas, com a informação de que um avião havia colidido contra ela. Corri para o jornal, a fim de solicitar um espaço especial para minha editoria, já prevendo que a notícia seria importante. Naquele momento, não imaginava ainda que estava presenciando um capítulo dos mais importantes da história do mundo moderno.
Chegando lá, os televisores da redação já estavam sintonizados nos canais que transmitiam as imagens e, sem perceber na hora, assisti ao vivo ao choque do segundo avião contra a segunda torre. Na hora, imaginei estar vendo a reprise da primeira colisão. Só depois percebi que a dimensão do que estava acontecendo não se enquadrava na seara das catástrofes acidentais e apontava para um ataque planejado. O que senti naquele momento, e nos dias seguintes, em que o cenário do que havia realmente ocorrido se clareava aos poucos, foi medo. Muito medo.
Tive um temor profundo, decorrente da possibilidade de estar presenciando o início de um catastrófico conflito mundial, nuclear e apocalíptico. A ansiedade gerada pelos anos de Guerra Fria já havia sido eliminada e um conflito atômico era assunto que fora varrido para debaixo dos tapetes. Agora, o sinal vermelho reacendia, rugindo alto. Lembro de, nos dias seguintes, ter levantado da cama e ficado a observar o sol nos amanheceres, imaginando que estávamos vivendo o prelúdio de uma guerra mundial que não se confirmou.
A Terceira Guerra Mundial não aconteceu, o mundo não acabou. Apenas ficou mais sombrio, e os efeitos da ressaca psíquica mundial causada pelo episódio se prolongam até os dias de hoje, com uma humanidade cada vez mais desconfiada e individualista. Tomara consigamos reverter o processo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de setembro de 2011)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Bichos papões

(O temperamento bufante do Lobo Mau comprometia minha paz de espírito na infância)


Assim como são as coisas, são também as pessoas: quanto mais crescem, maiores ficam, pois não? Pois sim, e podemos inserir aí nesse balaio os nossos temores, que interessantemente também vão evoluindo (ou, ao menos, se modificando) com o passar do tempo. Vejam só:
Quando eu era ainda bem pequeninho, vivendo aquilo que chamam de tenra infância, recordo que meu medo primordial era do bicho-papão. Se eu não fizesse as coisas direito, diziam que o bicho-papão viria me pegar. Em meus devaneios, eu me via entornando o prato fundo de mingau e, ato contínuo, sendo pego pelo pé e arrancado à força da cadeirinha pela mão viscosa e verde do bicho-papão, que me arrastaria até debaixo da minha cama (de cuja escuridão eu sempre procurava me manter previdentemente afastado) e lá transformaria a mim mesmo em mingau para ser papado por ele e justificar assim o apelido. Muito de mingau empapei-me temendo o bicho-papão, ora vos conto.
Um pouco mais tarde, já crescidinho, me borrava de medo do Lobo Mau, aquele que atazanava a vida dos Três Porquinhos assoprando as casas deles até que caíssem (sofria de Síndrome de Katrina, aquele bicho bufante). Eu tinha uma coleção de disquinhos de vinil com histórias da Disney, e vivia repetindo o dos Três Porquinhos, mesmo ciente de que, sempre que entrasse em cena a voz do Lobo Mau dizendo “Eu bufo, eu sopro, até a casa despencar, e esses porcos eu vou agarrar”, eu arrepiaria as jovens penugens do pescoço de medo. Muito medo.
Depois, na pré-adolescência, passei a ficar com medo do demônio. Achava que ele viria entrar no meu corpo se eu fizesse coisas erradas, se cometesse pecados, se cultivasse pensamentos malvados, se dissesse nomes feios, se ficasse excitado imaginando estar perdido numa lagoa azul junto com a atriz Brooke Shields e ela nuazinha ao meu lado. Como era impossível não dizer nomes feios e não pensar nos seios da Brooke Shields, tinha certeza de que, a qualquer dobrada no corredor de casa, meu corpo seria possuído pelo demônio e não haveria Cristo que me salvasse. Mas depois vi a Lidia Brondi pelada na Playboy e não me aconteceu nada, e na sequencia vieram a Claudia Ohana (primeira versão, agreste), a Nádia Lippi, a Yoná Magalhães, e nada de ruim me aconteceu, muito antes pelo contrário, e mandei o demônio ir catar coquinhos.
Daí cresci, fiquei adulto e, sem perceber, exorcizei os temores imaginários sem fazer esforço para isso. Meu medo agora é outro, mas não menos apavorante. Tenho medo dos maus políticos. Um medo que me pelo. Medo que faz minhas grisalhas penugens da nuca arrepiarem sempre que vejo as maracutaias que eles aprontam, e as consequências diretas disso no dia-a-dia dos cidadãos, como a insegurança, a buraqueira nas estradas, o colapso da saúde pública etc etc. Sinceramente? Ai, que saudades do Lobo Mau...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 2 de setembro de 2011)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A utilidade do dedo

(Todos os meus dedões em ação, tentando domar a esperteza de meu telefone esperto)


Enfim, ingressei na era digital. E isso literalmente falando, porque quem me conduziu a esse novo status foi meu dedão da mão direita, que se revelou um expert em questões digitais. Agora pertenço à casta dos cidadãos planetários que utilizam o dedão para se comunicar com o mundo, dedilhando com ele as teclas do meu moderníssimo telefone celular. Ele, meu dedão, entrou em cena na condição de protagonista desde que ganhei um smartphone, que, como sugere o nome estrangeirado do aparelho, trata-se de um telefone celular esperto, cujos comandos respondem ao toque do dedo na tela (isso se chama touchscreen, ok?).
Sempre invejava a inserção tecnológica representada pela galera que manipulava seus celulares usando com destreza o dedão da própria mão que segura o aparelho. Orangotangos não conseguem fazer isso, e eu me sentia um orangotango. Mas agora desci das árvores e estou inserido via meu dedão, que, após 45 anos de existência, ganhou uma função a mais: colocar-me em contato com o hodierno mundo das comunicações.
Antes, meu dedão servia para poucas e simples funções, como produzir o sinal de “positivo” quando desejava mostrar satisfação com algo, ou de “negativo” para aplicar em situações contrárias. Ele também era fundamental para represar todos os demais dedos na posição de punho fechado sempre que eu me indignava com notícias políticas cabeludas. Agora, ele toca suavemente a tela de meu smartphone para abrir e-mails, tirar fotos, fazer ligações, navegar na internet etc. Refinou-se no uso, esse meu dedão.
Mas o problema é que ele continua sendo um grosso. Apesar de inserido tecnologicamente, segue sendo o grosso dedão que sempre foi, e insiste, devido à grossura que lhe é peculiar, em apertar duas ou três teclas ao mesmo tempo na delicada tela, causando-me constantes embaraços tecnológicos. Acabo telefonando para quem não quero, desligando o telefone na hora de aceitar uma chamada, apagando e-mail importante, desconfigurando o despertador e assim por diante. Tenho tentado colocar o dedinho nessas tarefas, mas as cãibras na mão têm me matado. Acho que não fui projetado anatomicamente para navegar com facilidade nesse admirável mundo novo digital...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de setembro de 2011)