sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Rumo à civilização

A gente só muda maus hábitos quando se conscientiza internamente de que de fato aquela postura não condiz mais com o perfil que você pretende ver em si mesmo. Você é inteligente, você se alfabetizou, você tem acesso à informação e você sabe que, por exemplo, fumar faz mal à saúde. As próprias embalagens trazem impresso o alerta, o que se configura em um quase surreal tiro no pé em termos de marketing. Em um mundo lógico, deveria bastar para afastar do produto todo consumidor que saiba extrair sentido do ajuntamento de letrinhas.
Mas apenas saber não basta para mudarmos. É preciso ocorrer aquele momento de iluminação interior que a psicologia gosta de chamar de “insight”, para que a mudança comece realmente a tomar forma. Sem isso, nenhuma campanha faz efeito, qualquer conselho sensato aterrissa de imediato no cesto de lixo de nossas raras boas intenções. E não significa que basta acontecer esse instante de compreensão para que a mudança se efetive de imediato. Largar um vício, abrandar um traço ruim de personalidade, adotar um novo hábito saudável são caminhos que exigirão esforço e perseverança e, como tudo, independem de mágica para virar realidade. Haverá suor, e sabemos disso.
Se é assim em se tratando de adotar uma nova postura individual, a equação fica ainda mais complexa quando se deseja empreender uma mudança profunda de comportamento na coletividade. Nesse quesito, a sociedade brasileira vivencia hoje um momento histórico e crucial que, vindo a bom termo, é capaz de elevá-la em alguns degraus importantes na escala da civilização. Promover o divórcio total entre álcool e direção é uma bandeira que começa aos poucos a ser empunhada pela sociedade, e só vai virar realidade quando a conscientização proposta pelo poder público, pelas leis e pela mídia passar a ser uma verdade viva no íntimo de cada cidadão.
Esta semana, um motorista alcoolizado, que dirigia em ziguezague pela BR-116, foi dedurado à Polícia Rodoviária via celular por outro condutor que seguia atrás. O ato de cidadania do motorista “dedo-duro” pode ter ajudado a salvar vidas e tirou um inconsequente das estradas. É o cidadão comum ajudando, no dia-a-dia, a que uma nova postura crie raízes. Só assim o quadro vai mudar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de novembro de 2011)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Zunido na memória



A gente quando vai ficando mais vivido (eu ainda tento evitar o termo “velho”), vai recordando com mais frequência os fatos da infância e traçando paralelos com a existência que moldamos para nós mesmos, no transcorrer desses anos todos. O comum é irmos amargando a boca e os sentimentos e passarmos a nos convencer de bobagens como “no meu tempo as coisas eram melhores”, como se o mundo fosse um eterno desenvoluir, teoria que não se sustenta frente a uma análise desvestida de saudosismo rancoroso por épocas que só permanecem vivas em nossas memórias.
Particularmente, desconfio um pouco da sanidade de minha interação pessoal com esse natural processo, uma vez que me surpreendo frequentemente recordando coisas que eu classificaria de, no mínimo, esdrúxulas, uma vez que fogem do conjunto aceitável normalmente composto pela saudade da máquina de escrever, do disco de vinil, da televisão a válvula, dos vizinhos reunidos nas calçadas à noite para conversar, dos Pedro e Paulo, das fogueiras de São João, do Maverick e assim por diante. Madrugada dessas, por exemplo, acordei recordando dos mosquiteiros de minha infância. As camas eram encimadas por ganchos que sustentavam perenemente aquelas redes recheadas por milhões de furinhos que permitiam a passagem do ar e deixavam do lado de fora a mosquitança que viria sugar nosso sangue e infernizar nossos ouvidos caso não existissem aqueles delicados escudos que as mães lançavam sobre os berços como véus a proteger e velar pela profundeza de nosso sono.
Eles foram caindo em desuso com o advento dos aparelhinhos elétricos que repelem os insetos, e os raros exemplares da espécie devem jazer esquecidos e rasgados no fundo de baús de velharias em casas de avós. Minha memória voltou no tempo aquela madrugada, induzida pelo zunir inesperado de um mosquito ao redor de meu ouvido, fenômeno que há muitos anos não me sucedia. Tenho certeza de que existem hoje menos mosquitos do que nos tempos de minha infância, e nunca pensei que a lembrança de um sempre tão detestado inseto me viria a servir de anfitrião para o saborear de doces lembranças. Despertei sorrindo ao escutar o zunido. Meu deus, como a gente muda...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de novembro de 2011)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Um karatê na panqueca

Noite dessas, enquanto fazia umas panquecas na cozinha, peguei de canto de ouvido uma declaração de um menino de uns dez anos de idade que concedia entrevista a uma repórter de televisão sobre a importância da prática de esportes na formação do caráter da gurizada. “Depois que passei a praticar karatê, minhas notas na escola melhoraram muito”, disse o moleque. “Miau”, exclamou, no instante seguinte, Bioy, o gato que vive lá em casa, parado ao meu lado, olhando-me com aquele enorme par de olhos verdes que ele arregala sempre que está matutando algo.
“Pois é”, pensei eu, induzido pelo questionamento proposto pelo gato panquequeiro. “Esperto, esse garoto”, prossegui, enquanto tentava fazer a panqueca saltar na frigideira e arremessava sem querer a massa ainda molenga contra a parede sul da cozinha. “Aprendeu karatê e agora, instantaneamente, obtém boas notas no boletim. Vai ver que ameaça os professores. Ou obriga os coleguinhas que sentam nas cercanias a lhe passarem cola”, imaginei, raspando a ex-panqueca da parede com uma espátula e evitando com o pé a aproximação do gato, que já farejava as migalhas se espalhando pelo chão. Afinal, agora, ele sabe karatê. Amanhã ou depois, vai ser sempre escolhido para jogar no melhor time na hora do recreio, vai receber refrigerante e chokito de presente de toda a galera na hora da merenda, vai ganhar picolé de melancia dos primos no shopping, não vai mais precisar arrumar a cama de manhã quando levanta. Agora, ele luta karatê. Cuidado com ele!
Óbvio que tudo aquilo não passava de elucubração politicamente incorreta minha, derivada das influências mentais maléficas do gato que pretendia justamente me distrair do trabalho com as panquecas que, agora, aos cacos no chão, lhe refestelavam os bigodes. É óbvio que o menininho estava satisfeito e orgulhoso por ter conseguido reorientar seu comportamento a partir da prática do esporte, eu é quem estava desvirtuando o foco da coisa toda. Afinal, gostamos muito, nós, humanos, de rapidamente desvirtuar as boas coisas que nos chegam ao conhecimento. E, logo depois, colocar a culpa em quem não pode se defender. Menos nocivo seria aprender direito a fazer panquecas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de novembro de 2011)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Súbito ataque lírico

Despertei meio sentimental, intoxicado pelo pólen da primavera que, quando a chuva não despenca, parece de fato existir por alguns períodos nessa nossa região serrana de clima insistentemente invernoso, a despeito do que tentam sugerir as folhinhas do calendário. Decidi então produzir uma crônica lírica e poética, para aproveitar ao máximo o estado de espírito enlevado que se apossava de minh’alma, o que bem sabemos não é sempre que acontece. Problema é que havia algumas pedras no meio das linhas.
A primeira delas é a que insiste em me lembrar que eu não sou poeta e que essa coisa de lirismo n’alma, apesar do apóstrofo que sempre fica poeticamente bem colocado em construções frasais que se pretendem sensíveis, se não for trabalhada com competência e talento, soa forçado e coloca por terra toda a tentativa. Problema dois é que acordei também acossado por uma ponta de teimosia, e segui insistindo em tentar tirar do forno das ideias uma crônica lírica para homenagear a primavera.
O caminho das entrelinhas prosseguia povoado por pedregulhos que teimavam em me mostrar que, por mais fingidor que se pretenda o pseudopoeta, se ele se bota a fingir completamente como propõe o lusitano afamado, sentirá deveras a dor que finge sentir e estatelar-se-a (será essa forma poética?) de fuças em meio a seu Tejo de incompetências literais. Era o que me estava acontecendo e, antes de murchar por completo, recorri ao dicionário em busca de termos poéticos e líricos que eu poderia espalhar pelo texto, a fim de pelo menos me aproximar de meu objetivo. Com a pinça de minha sensibilidade aleatória, pesquei de lá termos como “tanger”, “desvelo”, “alvura”, “conjuras” e “arquejos”, porém, não soube como aplicá-los de maneira que soasse lindo.
Nem a releitura rápida de meus poetas preferidos, como Pessoa, Drummond, Medeiros, Menezes, Quintana, Vanessa, Dall’Alba, Oscar, Manuel Maria e outros, foi capaz de fazer sobre mim brilhar a luz do Belo. Resignei-me, enfim, a somente respirar e sentir a Poesia que eu detectava em volta, recolhendo minhas incompetências para dentro de mim mesmo e aprendendo que Arte também se faz apenas existindo, sem ter de gerar poluição criativa. Todos agradecem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de novembro de 2011)