sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Não era uma vez...


Há hoje uma onda de revisitação aos tradicionais contos de fadas, reformatados para atrair o gosto das novas gerações e renovar o apetite das velhas. Descobri que há uma sorte muito grande no fato de nenhum irmão Grimm desgarrado ou La Fontaine genérico ter decidido transformar a mim em protagonista dessas novas versões, pois que redundariam em fabulosos desastres. Vejamos:
- Marcão e o pé de feijão: Eu tenho medo de altura, sofro de vertigem, não conseguiria escalar sequer os primeiros três metros do feijoeiro gigante que nasceria no quintal do condomínio devido aos feijões mágicos atirados pela janela e ficaria pobre o resto da vida, pois não teria a chance de furtar do Gigante, que mora lá no topo, a galinha dos ovos de ouro.
- Cinderelo: Se eu tivesse de ir ao baile depois de lavar a louça e esfregar o chão do apartamento, na esperança de que meu pezinho tamanho 41 se encaixasse num sapatinho de cristal, não só a princesa casadoura dona do castelo ficaria para titia como eu permaneceria no formato abóbora, vegetando para sempre sobre meus surrados chinelões.
- Rapunzeldo: Minha esposa me ameaça com tamancadas sempre que meu cabelo fica um dedo mais comprido do que o socialmente aceitável para a imagem de um cronista, e me toca para a cadeira do barbeiro. Impensável conseguir um dia produzir as tranças que levariam ao bom desfecho da história.
- Bonezinho Vermelho: Adoro cestas repletas de guloseimas, como aquelas presenteadas no Natal e Ano-Novo. Alguém então acha que eu a levaria intacta à casa da Vovozinha? O Lobo Mau seria meu convidado para o piquenique, no qual nos empanturraríamos e cochicharíamos fofocas sobre o que dizem andar rolando na cabana da Branca-de-Neve e aquele septeto de anões.
- O Pequeno Sereio: Tenho medo de água, mal sei boiar ou fazer a rolha. Já me afogaria na primeira página e infestaria a fábula toda com cheiro de peixe morto.
- O Belo Adormecido: Um beijo na boca de alguém que está há anos dormindo sem nunca escovar os dentes? Quem se atreveria a enfrentar o bafão? Princesa nenhuma. Um sapo, talvez, mas aí eu passo.
Não, não... melhor permanecer mesmo na vida real, onde, no meu caso, ainda tenho maiores chances de viver feliz para sempre...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de janeiro de 2013)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Butiá na veia


(Quem diria que dessa frutinha é possível produzir um suco tão viciante?)

Você já tomou suco de butiá? Eu já, e viciei. Quem diria que aquela frutinha amarela, de carne fibrosa que gruda nos dentes igual manga, que marcou momentos de minha infância, iria reaparecer no meu leque de descobertas sensoriais décadas mais tarde, em minha idade já prá lá de adulta? Jamais imaginei butiá em forma de suco, e supunha que a última grande descoberta gustativa que me haveria de intrigar as papilas ficara por conta, três anos atrás, do picolé de melancia, que também é uma delícia inenarrável.
Mas agora me aparece o suco de butiá. É vendido em litrões de garrafas pet reaproveitadas, na Feira Livre de Ijuí, minha terra natal, onde apareço quando em vez para rever familiares e amigos e, agora, para me embebedar de litros e mais litros de suco de butiá. Ijuí também é famosa por produzir chope de primeira qualidade, afinal, é terra de alemães, mas ando tão ensandecido pelo sabor do suco de butiá que chego a esquecer o casco de cinco litros de chope na geladeira, para deliciar-me com as sensações proporcionadas pelo líquido doce e também amarelo do suco de butiá.
Ahhhhh, um copão de suco de butiá descendo geladinho pela garganta no calor de janeiro, não há o que pague. Tive de viver 46 anos para experimentar esse sabor, para mim, inusitado. Não sou mais o mesmo desde que experimentei suco de butiá. Ele acaba de desbancar para a segunda posição, em meu ranking pessoal de sucos, o de uva branca, que também conheci faz pouco tempo aqui na Serra e que tem sido minha primeiríssima opção de bebida em restaurantes e festas desde o benfazejo e louvável advento da Lei Seca no trânsito. Se forem analisar meu sangue, detectarão superdose de suco de butiá correndo em minhas veias nessa época do ano. Ou de suco de uva branca.
Fui a Ijuí festejar o Ano Novo e trouxe duas garrafas de suco de butiá. Não deu nem para a saída. Bebi tudo em apenas três dias e não sei o que fazer agora com a fissura. Ijuí dista 400 quilômetros daqui. Não dá para ir buscar mais a qualquer momento. Vou construir um Butiaduto ligando Ijuí a Caxias do Sul para aplacar minha sanha. Até que um novo sabor inusitado apareça no pedaço e me derrube os butiás do bolso. Sou mesmo bastante v(s)olúvel.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de janeiro de 2013)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A vertigem do passarinho


(No topo da árvore, no cimo do poste ou no meio da rua, casa de joão-de-barro é sempre casa de joão-de-barro)

O mundo muda constantemente desde que foi criado, colocando à prova os preconceitos, surpreendendo e encantando. Exemplo disso foi a notícia veiculada pelos jornais dia desses, acompanhada de foto, para não deixar dúvidas. O fato aconteceu em Tucunduva, na região noroeste do Rio Grande do Sul: um joão-de-barro construiu a sua tradicional casinha de lama e gravetos no chão de terra batida, no meio de uma estrada. Deve sofrer de vertigem o tal passarinho, mas seu medo de altura não lhe comprometeu a essência e, mesmo evitando o topo dos postes e o cimo das árvores, cumpriu a vocação de erigir um lar, ainda que ao rés do chão, e isso não o torna menos joão-de-barro do que os demais joões-de-barro que o circundam.
Não nos espantemos, pois, amanhã, quando nos chegarem notícias sobre o leão vegetariano que disputa mansamente com as zebras e as gazelas um lugar na savana para pastar a verde relva que garante a majestade de sua silhueta. Tampouco nos escandalizaremos ao saber do ex-bicho-preguiça que superou o sedentarismo de anos e hoje faz academia diariamente, objetivando participar da Corrida de São Silvestre. E que dizer da cobra-coral que abandonou o veneno e passou a aspergir perfume de rosas, virando forte candidata ao Prêmio Nobel da Paz? Não nos causará furor o caso do urubu que renegou a carniça para se tornar um renomado chef especialista em gastronomia asiática. Apreciaremos a bela história do pato que casou com a galinha por puro amor, depois de descobrirem o encanto de sua predileção compartilhada por suculentas minhocas aneladas.
O espaço para o preconceito perde terreno para a aceitação e a tolerância das diferenças nos dias de hoje, e quem se mantém apegado à imutabilidade das regras está fora de contexto. A diferença ganha espaço para se manifestar e exigir os direitos de existência e de permanência que justamente lhe competem, conquistando lugar ao sol. Em breve, inclusive, sequer os conceitos de “minorias” e “diferenças” farão mais sentido, dando lugar à plena e livre expressão dos seres. É o que ensina o singelo passarinho de Tucunduva. Então, atenção, imprudentes: no meio do caminho pode, sim, haver um ninho de joão-de-barro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de janeiro de 2013) 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O camarão desastrado



Noite dessas, chutei o balde na aula de gastronomia à qual apareço de vez em quando a fim de aprender alguns truques de cozinha e somar pontos em casa. Chutei literalmente, pois tive de me deslocar da bancada do canto da parede, na última fileira, onde sempre me posiciono para evitar pagar mico com a demonstração de minhas inabilidades paneleiras, para dar lugar a uma dupla que chegou atrasada e desejava fazer a aula junta, o que me obrigou a sair de minha zona de conforto e assumir o posto bem à frente, onde eu nunca havia estado.
No trajeto, transportando o potinho de camarões que me cabia para confeccionar os pratos da noite, não vi a lixeira de plástico posicionada no caminho e arremessei-a longe, em chute certeiro, aos pés de outros colegas, que me olharam desconfiados. A aula tinha início enquanto eu ainda trombava acocorado entre aventais alheios e balcões tentando recompor a lixeira, reposicionando-me mais vermelho do que os camarões que os colegas já começavam a saltear na frigideira.
Ansioso por entrar no ritmo da aula, perdi as explicações sobre a técnica de limpar as tripinhas dos camarões e parti direto ao plano b, que consiste em ignorar a presença das entranhas nos crustáceos e prepará-los assim mesmo, mas o acendedor da boca do fogão me sacaneava e as palavras do chef eram abafadas pelo insistente tlac-tlac-tlac dos estalos que eu desesperadamente produzia. Solidária, a colega ao lado na minha bancada me perguntou, enquanto os camarões dela borbulhavam lindamente dourados em dendê na frigideira que pilotava, se aquela “também” estava sendo a minha primeira vez ali. Fui honesto e respondi que não, já era a minha décima segunda aula, ao que ela empalideceu e passou a observar com o canto do olho a posição dos extintores de incêndio, agradecendo a Deus por não ter presenciado nenhuma de minhas participações anteriores.
Tudo isso porque saí repentinamente de minha zona de conforto. Em casa, meus camarões fazem sucesso, já que na minha cozinha eu transito até de olhos fechados. Mas é preciso mantê-los bem abertos sempre que somos obrigados a atuar fora de nossos aquários. Afinal, nem todos apreciam que lhes chutemos baldes às pernas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de janeiro de 2013)