sexta-feira, 29 de março de 2013

Ordens eram ordens


O engraçado é que não vi ninguém questionar, até agora, como é que ficou a cara de Deus com essa coisa de o papa simplesmente pedir as contas, descer do trono de São Pedro e abandonar a missão sagrada que, via de regra, deveria lhe ser vitalícia. Sei não, mas tenho a impressão de que alguma coisa mudou mesmo foi lá em cima, junto “ao Cara”, e não somente aqui embaixo, na organização secular da Santa Sé, e ninguém parece ter atentado a isso.
Porque assim, que eu me lembre, desde os tempos da catequese e lendo atentamente os trechos bíblicos que nos eram recomendados a fim de refletirmos sobre as mensagens ali contidas, não era muito seguro ficar querendo dar uma de teimoso e bater pé contra os desígnios de Deus, não. Não era bem assim receber o chamado dEle, ou escutar a Sua voz ordenando no deserto ou surgindo no cume das montanhas, e dizer “ó, Cara, assim, ó, comigo não, tá ligado?”, e sair de fininho para ir jogar bola no campinho. Não havia isso de recusar convite divino, até porque ficava implícito que não se tratavam de convites e, sim, de ordens. Ordens de Deus. E, depois de aceitas (que não havia outra escolha), era preciso ir até o fim, independentemente das consequências (que o diga aquele que nasceu em Belém).
Lembro, por exemplo, de Jonas que, de repente, foi sacudido pela voz de Deus ordenando que ele, justo ele, pô, viajasse até Nínive para instar seus habitantes, que pecavam muito, a se arrependerem porque senão a coisa iria ficar feia para eles. Jonas tentou passar o abacaxi e escapuliu para um barco que rumava ao alto mar, mas não teve choro nem vela. Deus o encontrou (“arrá, estás aí”!), produziu uma violenta tempestade marítima que jogou Jonas para fora da embarcação e ele foi engolido por uma baleia. Engolido por uma baleia, cara! E ficou lá dentro por três dias, até finalmente ceder à vontade de Deus (“tá, tá, eu vou a Nínive”) e ser expelido, sujo mas são e salvo, na praia (felizmente, perto de Nínive) e cumprir sua missão.
Nessa esteira, poderíamos citar os exemplos de Abraão, Noé, Moisés, Jó e muitos outros que viram de perto a contundência das vontades divinas. Felizmente para Ratzinger, alguma coisa parece ter mudado ali acima das nuvens, e quero crer que foi para melhor.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2013)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Barba e cabelo


Sentei-me na cadeira e, enquanto cobria meu peito com o fino avental azulzinho, o barbeiro foi perguntando, por detrás do dente de ouro e do bigode preto: “Vamos tirar o que está sobrando e deixar só o essencial?”. Assenti com a cabeça cabeluda, emendando que sim, era isso mesmo o que ele deveria fazer com meu cabelo, a exemplo dos escultores que, frente a um bloco bruto de pedra, extraem os excessos para que nela surja a figura decorrente de seu talento. “Isso, Senhor Barbeiro, seja também um artista capilar, um escultor de melenas, devolva-me um visual socialmente aceitável a partir de suas mãos de tesoura”.
Estabelecida a cordialidade, passamos à prática da conversação amiga sobre assuntos diversos, enquanto os golpes certeiros da tesoura iam reformatando a paisagem que me encimava a testa. Com a destreza de quem poda um arbusto, o barbeiro se transformava no jardineiro da minha cabeça, ocupado em extirpar o inço que ia caindo no chão na forma de chumaços de cabelos grisalhos que já não mais me pertenciam.
Mas apesar de falante, estava tomado por pensamentos melancólicos naquela tarde, o meu barbeiro. Refletia ele em voz alta para meus ouvidos alertas a respeito do futuro de sua profissão que, a ser ver, está com os dias contados. “Ninguém mais quer ser barbeiro. No máximo, viram cabeleireiros, o que não é a mesma coisa. O arremate, por exemplo. O cuidado com o arremate final de um cabelo, que o deixa realmente bem feito, esse só é feito pelos antigos barbeiros”, afirmou meu antigo barbeiro, com o que concordei em voz alta sem assentir com a cabeça, pois que é perigoso chacoalhar a cabeça quando ela está sob as tesouras e navalhas de um barbeiro, mesmo que antigo.
“E sabe quem foi o responsável por começar a diminuir a clientela dos barbeiros, décadas atrás?”, inquiriu. Não, eu não sabia. “Foi a lâmina Gillette G2. Com ela, os homens começaram a se barbear em casa, sem risco de se cortar, o que reduziu nosso movimento”, explicou. Não imaginava que aquele pequeno artefato de plástico causara tamanho desgosto em meu velho barbeiro. Eu, que sempre fiz a barba em casa, tenho sido cúmplice na extinção de um ofício. Fiquei de (agora poucos) cabelos em pé com a revelação. Não estranhem se me virem por aí barbudo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de março de 2013)

sexta-feira, 15 de março de 2013

A bigorna chorona

No interior do interior de Criúva, a estrada de chão batido conduz a uma ferraria, dessas estacionadas na esquina do tempo, onde as ferraduras para cavalo, os cravos e os marcadores de gado ainda são forjados a duros golpes de martelo sobre o ferro em brasa. Madeiras ancestrais deram forma às tábuas que escoram o galpão ao singrar das gerações e o chão em terra acolhe a chuva de suor do ferreiro quando maneja o pesado martelo, nos momentos em que incorpora, sem saber, o aspecto mais característico de Thor, o deus do trovão, sobre a impassível e inabalável bigorna, sua companheira fiel de labuta naquelas escondiduras.
O octogenário ferreiro, aparentando saúde também de ferro, ciceroneia o passeio dos curiosos da cidade chegados de surpresa. Mas é só na hora das despedidas que ele nos apresenta o que ali há de mais curioso: a bigorna que prevê chuva, uma bigorna meteorológica. O homem não jura, porque não precisa jurar, já que a verdade sai em forma de palavras pela sua boca que fala. Ele apenas afirma. Mostra e afirma que a bigorna, esta aqui, e não aquela lá, fica úmida a ponto de escorrer água sempre que o tempo está para chuva. Quando a bigorna chora, o céu chove. Não tem erro. Chora a bigorna, chove, no máximo, dois dias depois. Aquela bigorna ali, e não a outra. A outra deve possuir habilidades mudas e secretas que ainda não foram descobertas, mas esta aqui chora quando chove.
A bigorna estava seca e impassível naquele dia de nossa visita. Não choveria, portanto, tão cedo, presumi. E de fato, o tempo permaneceu firme a semana toda. Mas eu queria ver a bigorna chorando e acompanhei a previsão da meteorologia atentamente, até o dia em que, pelo rádio, soube que haveria chuva dali a dois dias. Toquei-me para a ferraria em Criúva, a fim de ver a bigorna chorando. Cheguei lá, e nada. Bigorna seca e quieta. Fui-me embora desconfiando de lorota e de conversa de ferreiro-pescador, porém, ao contrário da previsão da meteorologia, não houve chuva alguma, o tempo seguiu firme e seco semana adentro. Afinal, só chove quando a bigorna chora. Peguei o telefone do ferreiro e, a partir de agora, não faço mais caso da previsão do tempo. Quando quero saber de chuva, ligo para Criúva.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de março de 2013)

domingo, 10 de março de 2013

Olhos de passarinho


Do topo de um prédio alto, muito alto, posicionado bem no coração central da cidade, um giro de 360 graus me proporciona uma visão ampla do avanço ininterrupto das crias da civilização sobre a hospitalidade ingênua da natureza, primitiva habitante dessa serra. A linha do horizonte, em seus quatro cantos, já está praticamente toda tocada pelo concreto das construções e pelo asfalto das rodovias, que levam, trazem e assentam os protagonistas diários da pujança coletiva que empurra a história para frente, tirando do meio do caminho as pedras e também as formigas, a relva, as flores, os ninhos dos pássaros e algumas formas antigas de ser gente.
Cá embaixo, uma demanda incomum me põe a perambular com olhar diferente pelas vias centrais lotadas de compromissos alheios, cotovelos apressados e buzinas intolerantes. Em meio ao burburinho das esquinas que tanto conheço, meu olhar procura hoje não o tempo certo do semáforo para cruzar a rua junto ao cardume, mas sim os vestígios de uma existência que insiste em manter-se viva por detrás das placas de propaganda e do cruzamento apressado dos ônibus carregando atrasos. A partir de então, cada passada abre um portal para um mundo que permanece alheio à urbanidade nossa de cada dia.
Nos fundos da casa espremida entre os dois prédios, o empresário aposentado, chapéu de palha na cabeça, cutuca a terra com a enxada, organizando sua horta repleta de ervas aromáticas. Na esquina entre os dois cruzamentos de todos os dias, surge um armazém com cheiro de história, em cujas prateleiras de madeira desfilam o fumo em corda, as caixas de palheiros, os coadores de pano para café, os fervedores de leite, as bacias de louça, os fluidos para isqueiro, as formas de alumínio para pão e bolo, a creolina, a pedra para limpar chapa de fogão a lenha, as ratoeiras, os serrotes, os bilboquês e os piões de madeira. Ao lado da sinaleira, na desbotada casa ancestral, a velha senhora cultiva gatos e mantém a solidão do lado de fora.
São pequenos oásis de resistência, dentro dos quais biografias pulsam sem pressa. Raros são os olhos que os enxergam e nem todas as passadas levam a eles. A credencial, meus caros, é ter olhos de passarinho.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de março de 2013)

sexta-feira, 1 de março de 2013

Sopros antigos


Aqueles eram tempos de joelhos e pés encardidos. As casas tinham pátios com gramados e terra e era comum haver num canto do quintal um montinho de areia sobrado de alguma reforma, no qual os gatos enterravam suas necessidades e nós depois brincávamos faceiros construindo estradinhas para o tráfego dos caminhões de plástico e dos tratores de madeira. Eu tinha carrinhos de chumbo e passava as tardes lustrando o chão de meu quarto com os joelhos, a criar cidades com quadras moldadas pela disposição ordenada de várias revistas, entre as quais surgiam ruas e esquinas imaginárias.
Quando vinham os amigos, jogávamos bola fazendo a parede do galpão de goleira ou voávamos de bicicleta sobre rampas erigidas com tijolos e tábuas. Caíamos muito e esfolávamos joelhos e cotovelos, que pareciam terem sido criados exatamente para isso. Depois, nossos adereços consistiam em band-aids e no vermelhidão do Mertiolate passado nas feridas, processo que ardia muito e era amenizado pelo sopro carinhoso e alentador de nossas mães, à noite.
Tínhamos de lavar os pés no bidezinho do banheiro antes de irmos para a cama, e havia hora certa para ir para a cama. Mas era comum ficarmos ainda muito tempo de olhos abertos na escuridão do quarto revivendo tintim por tintim as aventuras empreendidas ao longo daquelas intermináveis tardes de infância. Adormecíamos ao sabor do som distante das conversas dos adultos, submergindo assim em uma atmosfera de aconchego que vai se esvaindo com o avançar do tempo e o acúmulo dos aniversários.
Por mais que os escovássemos, os garrões dificilmente ficavam realmente limpos, pois não era fácil eliminar o acúmulo dos vestígios daquelas infâncias serelepes vivenciadas entre irmãos, primos, vizinhos e coleguinhas. Uma fina tampinha de pele mais tarde surgia sobre os machucados, ao cicatrizar, e os mais corajosos entre nós gostavam de se exibir arrancando-as lentamente como se não sentissem a dor aguda que penetrava na espinha dos outros que assistiam impressionados à cena.
Depois, com o tempo, a gente se transforma em adultos de pés limpos, joelhos lisos e cotovelos de reunião. Já aqueles que forem dotados de boa memória e gosto pela nostalgia, terão um pouco mais de sorte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de março de 2013)