sexta-feira, 24 de maio de 2013

Um dia cinzento


Hoje acordei num daqueles dias em que me vejo meio pessimista em relação à humanidade, devido ao acúmulo de más notícias que me chegam por todos os lados, relativas a fatos escabrosos ocorridos em minha cidade, em meu estado, no país em que vivo, no planeta que habito. Sei que a culpa pelas notícias ruins não é da imprensa, que tem a obrigação profissional de divulgá-las, mas sim da própria humanidade, que parece   cada vez mais empenhada em produzi-las e protagonizá-las.
Corrupção, fraudes, estelionatos, violência, terrorismo, crimes brutais, trânsito assassino, egoísmo, trapaças, ganância, materialismo, individualismo, mentiras, brigas, ofensas... A sensação às vezes é de que a coisa saiu definitivamente de controle. Instaurou-se o “salve-se quem puder”. Angústia, medo, aflição, desesperança, abandono, são as sensações que me assolam em dias em que acordo assim. Sequer sou amigo do bispo, para ter o consolo de ir me queixar a ele.
Muitos foram os cineastas e escritores que, ao projetarem o futuro da humanidade em suas obras, sob o pano de fundo das evoluções tecnológicas, se dedicaram a antever o possível caos em que a sociedade corria o risco de mergulhar. Um caos de violência, de gangues armadas, de ausência de leis, de cidadania, de ética, de valores que permitem a civilizada e sadia convivência humana. Ao pensar nisso, dois títulos me vêm logo à mente: “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick, a partir da obra de Anthony Burguess; e “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott, inspirado em um texto de Philip K. Dick.
Basta rever as duas películas para ser possuído pela perturbadora impressão de que as sensações de angústia, medo, insegurança e claustrofobia geradas pelos filmes se equivalem cada vez mais aos sentimentos que nos acometem nos dias sombrios de hoje, ao sermos confrontados com a vilania humana que saiu dos cinemas e das ficções de horror para pular as cercas de nossos quintais e bater às nossas portas. Poucos anos atrás, perdíamos o sono temendo uma guerra atômica. Hoje, tememos é a explosão de violência e incivilidade que reside latente no íntimo de quem nos cruza ao lado.
Mas nem tudo é tão cinza. Amanhã posso acordar sintonizado em passarinhos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de maio de 2013)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Banhadinhos e sorridentes


Vamos, nós, brasileiros, sediar uma Copa do Mundo no ano que vem e uma Olimpíada daqui a três anos. Centenas de milhares de turistas de todas as partes do planeta virão ao nosso país, atraídos pela realização dos dois mais significativos eventos esportivos mundiais da atualidade. Especialmente em função da Copa, a movimentação pode até mesmo vir a respingar diretamente em municípios da Serra Gaúcha, postulantes a sediar o abrigo a alguma seleção estrangeira na primeira fase da competição.
Glup, que medo!
Somos, nós, brasileiros, na maioria dos casos, bastante conscientes e autocríticos de nossas falhas e limitações em vários (senão todos) aspectos estruturais e (especialmente) culturais que podem nos deixar de saia justa e nos fazer passar uma astronômica vergonha perante o mundo, desnudando as mazelas que historicamente nos afligem. Tenho visto pela mídia a preocupação de formadores de opinião com as questões relativas a esse problema, convocando todos nós, brasileiros, a assumirmos nossa parcela pessoal de responsabilidade perante esses eventos, colaborando para, pelo menos durante esses períodos, transformar o Brasil em uma nação palatável e remotamente civilizada.
Para isso, estamos sendo convidados desde já a passarmos a praticar desde singelos gestos do cotidiano, como não jogar lixo nas calçadas e dirigir com responsabilidade, até ações estruturais como aeroportos modernizados, estradas decentes, segurança nas ruas e assim por diante. Ou seja, da noite para o dia, somos conclamados a nos civilizarmos, a deixarmos a barbárie egoística e inconsequente que rege nosso comportamento no cotidiano para aparecermos limpinhos, penteadinhos e sorridentes aos nossos futuros visitantes.
Vai ser difícil, pois trata-se de uma questão (in)cultural nossa, mas concordo que vale a pena o esforço. Depois que eles se forem, podemos retornar alegres e aliviados ao nosso verdadeiro estado incivilizado de ser, regidos que somos pela não-cidadania e pelo conjugar de todos os esforços possíveis em proveito próprio, ralando-se a ética e as regras básicas de convivência. Depois, podemos voltar a ser brasileiros. A não ser que, por algum milagre, passemos a apreciar a fugaz experiência da civilidade. Afinal, tudo pode acontecer...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de maio de 2013)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Roda travada


Havíamos recém solucionado uma quarta parte da lista de compras no supermercado (adoro elaborar listas de compras de mercado), ali pela altura da seção do creme de leite (adoro creme de leite), quando uma das rodinhas da frente do carrinho de compras enguiçou (detesto carrinhos de compras). Na hora do rancho semanal, cabe a mim (entre outras tarefas) pilotar o carrinho (o que adoro fazer, quando ele não enguiça) enquanto minha esposa pirilampeia livre e saltitante por entre as gôndolas, comparando preços das mercadorias, verificando datas de validade, sopesando as vantagens e desvantagens existentes entre as diferentes marcas.
De minha parte, atenho-me a dirigir o carrinho com habilidade, desviando dos atravessados que atravancam os corredores, estacionando em lugares seguros que não atrapalhem o tráfego de compradores, organizando os produtos já selecionados para não misturar suco de pomelo (adoro suco de pomelo) com ração para gato (adoro meu gato), essas coisas. Mas toda essa idílica harmonia foi subitamente quebrada com o travar da tal rodinha, que imediatamente transformou meu ponderado carrinho em um bólido desgovernado por entre as gôndolas, a guinar tresloucadamente para a esquerda quando minha intenção era dobrar à direita e chocar-se contra a pilha de fraldas descartáveis (ufa que não era a dos vinhos chilenos) e a beliscar os calcanhares da senhorinha que ia à frente (em tempo: adoro vinhos chilenos e não tenho nada a declarar em relação a calcanhares de senhorinhas).
Eu macaqueava para um lado, usando todas as minhas forças e me contorcendo, e o carrinho creeeeeeeeec, volteava para o outro, rebeldíssimo. Minha mulher viu e começou a rir por entre gôndolas. Fomos assim até o final do périplo, na fila do caixa, quando ainda tive de dar uns últimos trancos no dito cujo. Foi quando ela não aguentou mais e explodiu em um riso contido, que se externava em lábios arreganhados, soluços e lágrimas a lhe rolarem pelas faces. Chorava ela de rir, enquanto, na fila ao lado, a senhorinha dos calcanhares esfolados me fulminava com olhares raivosos, pensando: “Além de barbeiro, faz a esposa chorar no mercado”. Aqui, não há parêntesis que remendem a situação.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de maio de 2013)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Um brinde ao frio


Só de olhar a gente já encaranga

A gente dizia que estava de renguear cusco, enquanto descascávamos bergamotas ao tênue sol do pós-meio-dia, na frente de casa, na Rua dos Viajantes. Em Ijuí também fazia frio pra cachorro nos meus tempos de adolescência, quando a família se reunia à noite em semicírculo defronte à lareira, as luzes apagadas e a sala iluminada apenas pelas labaredas que iam lentamente consumindo o toco de pau-ferro, que estralava de vez em quando, pontuando as histórias que o pai e a mãe alternavam para nos embalar aconchegos. Chegada a hora, chispávamos para as camas, já quentinhas com o peso das cobertas-de-penas ali dispostas à nossa espera.
Depois em Santa Maria, estudante universitário, o Vento Minuano nos atocaiando nas esquinas da Boca-do-Monte ou então correndo solto a nos gelar as orelhas pelos largos descampados entre os prédios do campus. Naquela época, o melhor escudo que eu tinha contra o frio era um pala que me acompanhou na maioria das aulas de Jornalismo e também nas assembleias universitárias e passeatas por Diretas Já. Uma época em que o chimarrão nos aquecia de dia e a sopa reforçada feita pela mãe do amigo Jaime esquentava o rescaldo das longas noites de discussões políticas e literárias.
Mas a paixão mesmo pelo inverno se consolidou em mim a partir da forte nevasca que atingiu Caxias do Sul e que ganhei de presente de aniversário no dia 8 de julho de 1994, apenas dois anos depois de eu ter me enraizado na cidade. Fiz boneco de neve, escorreguei na calçada, gelei a ponta do nariz e cristalizei um sorriso interno permanente que sempre se reapresenta quando os termômetros voltam a despencar por aqui. Na época, cheguei a preservar uma bola de neve intacta dentro do congelador, a fim de exibi-la aos parentes em suas visitas posteriores, dizendo: “Já viu neve? Tá aqui, ó”, o mais faceiro de todos.
Um sapeco de pinhão na chapa do fogão a lenha em Uvanova, um rocambole de cobertores quentinhos, uma sopa fumegante de agnoline, um banho escaldante antes de ir para a cama, uma feijoada daquelas, uma garrafa de bom vinho, o sol da manhã derretendo a geada, a fumaça das chaminés das casas na colônia, um cachecol enrolado no pescoço, um aperto de mão enluvada e o melhor de tudo: no sofá da sala à noite, a esposa e o gato aninhados em cada lado de meu colo, me aquecendo corpo, alma e coração. Prazeres que só o inverno é capaz de proporcionar. Tem coisa melhor?
(Texto publicado na reportagem especial sobre o frio no jornal Pioneiro, em 8 de maio de 2013)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Consumidor consumido


Muito além do amadorismo e ainda mais além da incompetência, parece-me que o maior problema que está a reger atualmente o setor dos prestadores de serviço reside na transferência de responsabilidades ao próprio consumidor. Ou seja: além de termos de pagar e de sermos muitas vezes mal atendidos, agora precisamos também arcar com os conhecimentos, as habilidades e até as ferramentas que deveriam ser inerentes à pessoa e/ou à empresa que está a prestar tal serviço (pelo qual você, consumidor, paga, reitere-se). O cenário é preocupante, pois consolida a tendência no mundo moderno de transferir as responsabilidades, passar adiante o abacaxi, fazer cada vez menos em troca de cada vez mais, conquistar o máximo viável por meio do menor esforço possível.
Para sustentar a tese, vamos aos exemplos práticos recentemente vivenciados pelo cronista/consumidor, a título de ilustração. Em Porto Alegre, peguei um táxi em um ponto, no bairro Menino Deus, e pedi ao motorista que me deixasse no centro, defronte ao Theatro São Pedro. Corrida rápida e simples, porém, após arrancar, o motorista afirmou não saber o caminho e pediu que eu o fosse conduzindo. Ora, fosse assim, usava eu meu próprio carro, ou, no melhor das hipóteses, dividiria com ele o custo da corrida, afinal, cabe a ele conhecer os trajetos ou utilizar o GPS (“não sei usar, senhor”). Lição: conhecer os detalhes dos trajetos ao pegar táxi em Porto Alegre.
Outro dia, chamei o desentupidor de ralos para vir à minha casa desentupir um ralo que entupido estava. Chegou, analisou a situação e pediu se eu dispunha de “um ferrinho comprido ou uma mangueira”, para ele executar o serviço. Aham. Lição: ao chamar prestadores de serviço, certificar-se de possuir em casa as ferramentas que cabem a ele utilizar para a execução da obra.
Ando com medo do que me espera ao ir a um restaurante e pedir um risoto de camarão. Terei de eu mesmo limpar os camarões na cozinha? Não deixarei de ir a restaurantes, mas, por segurança, pedirei singelos ovos fritos. Creio que me garanto em uma rodada de ovos fritos.
Mas a maior lição que fica é: a gente consome e nunca vê tudo.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de maio de 2013)