sexta-feira, 28 de junho de 2013

Bala na cara

Esses dias quase perdi um amigo devido a um balaço que dei-lhe na cara. Mas calma, leitor, que já me explico, para que não me julgue mal ou pense que passei a escrever de trás das grades. O acontecido deu-se no centro da cidade quando, súbito, deparei com Argentino, amigo a quem não via há alguns meses. Chupava eu uma balinha refrescante no momento daquele alvissareiro encontro, em que a alegria da surpresa acionou em mim o ato reflexo de abrir os braços e botar-me a exclamar um caloroso “tudo bem?”, expressão que meu cérebro rapidamente elegera para abrir nossas conversações de esquina.
Como todos sabemos, a sílaba “tu”, parte inicial compositiva da palavra “tudo”, exige, para ser articulada, que a ponta da língua do sujeito falante arremeta com certa força contra a parede interna dos dois dentes frontais da arcada superior, para depois retornar ao meio do céu da boca de forma mais suave a fim de produzir o som da segunda e última sílaba: “do”. O problema é que a tal balinha, que rodopiava desgovernada pelos recantos de minha boca, resolveu intrometer-se entre a dita parede dos dentes e a ponta de minha língua justo no instante em que o “tu” era pronunciado, vindo a ser expelida com força considerável para fora de minha boca e a acertar desavergonhadamente uma das bochechas de meu amigo, que assim levou de mim o já confessado balaço na cara.
Amistoso como é, Argentino resignou-se a limpar a face com a manga da camisa e, prestativo, já se agachava para pinçar na calçada a serelepe balinha a fim de devolvê-la aos domínios de minha boca, o que de pronto agradeci e consegui demovê-lo da ideia não sem alguma dificuldade, chegando a desconfiar de que poderia haver no gesto dele uma certa intenção de vingança, mas acho que não. O fato é que rimos e fomos tomar um café no Bar da Esquina, onde nos pusemos a refletir sobre a verdade de que as palavras podem mesmo ferir as pessoas como se fossem balaços. Algumas são capazes de ferir na cara e outras, como cimitarras afiadas, podem dilacerar almas. “Precisamos estar habilitados a portar palavras, e sempre manuseá-las com cuidado”, ponderou Argentino. “Toda a razão tu tens, meu amigo”, respondi cautelosamente, agora sem balinhas na boca.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de junho de 2013)

domingo, 23 de junho de 2013

Apressado come cru

Chega a ser engraçado. Não sei se é só comigo, mas a sinaleira sempre fecha na minha vez de passar. A impressão que dá é de que os veículos à minha frente trafegam com morosidade deliberada só para cruzarem no último segundinho do verde e deixarem a mim ali, estaqueado. Especialmente quando estou com pressa ou atrasado. Nesses casos, soma-se também o fato de o fluxo de veículos estar mais intenso do que o normal, os engarrafamentos mais frequentes e lentos, a tranqueira toda jogando contra.
Também percebi um fenômeno semelhante em relação às filas. Nas praças de pedágio, a fila que escolho é sempre a mais lerda. Não importa o tamanho, invariavelmente aquela que escolho é a que mais demora para solucionar-se. Minha tendência é a de optar pela mais curta, e nem sempre (quase nunca, no meu caso) ela representa a mais ágil. O mesmo se aplica às filas de banco. Agora o padrão são as filas únicas, certo, é um procedimento mais lógico, mas a sensação que tenho é de que a fila trava a partir do momento em que me posiciono na rabeira dela, e os caixas demoram mais do que o usual para despachar os clientes e fazer a coisa andar. E isso tudo se dá sempre que estou morrendo de pressa.
O mesmo com o telefone celular. Ele fica ali no meu bolso o dia inteiro, me fazendo uma até simpática companhia muda. Só começa a tocar insistentemente justamente naqueles quinze minutos em que estou dirigindo e não posso atendê-lo, ou quando dei aquela fugidinha rápida ao banheiro ou quando estou em outra ligação no telefone convencional ou quando estou em reunião ou...
Mas o inverso também se dá, com frequência assustadora. Quando preciso falar com urgência com alguém, seu telefone está ocupado, ou fora de área, ou desligado, ou cai na caixa de mensagem. A internet demora demais para abrir o site de que necessito com urgência. O estacionamento dos locais em que preciso chegar está lotado. O frentista demora para perceber que estou ali precisando que abasteça meu carro.
O que há de errado comigo?
Nada, exceto a ansiedade gerada pela pressa e pelo estresse. Nada disso deixará de me acontecer, mas seguramente tudo isso deixará de me incomodar se eu exorcizar de dentro de mim a pressa. Um mundo melhor é mais fácil de ser alcançado quando começamos a construí-lo dentro de nós. Tô nessa.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de junho de 2013)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Uma crônica indigesta

Ekhaterina Fernandova adentrou o salão exibindo na bandeja as primeiras tigelas de salada russa, o que funcionou como sinal para que, enfim, começasse o jantar dançante. Como malabaristas em invisíveis cordas bambas entrelaçadas no salão, dançávamos ao som de salsa e merengue equilibrando aos pares nossos pratos enqueijados com filés à parmegiana e agradecendo “thank you” aos garçons que se esgueiravam despejando as batatas inglesas por sobre os montículos aéreos e florestais de arroz arbóreo.
À nossa frente havia casais apressados que nitidamente comiam cru enquanto mal passavam ao lado os filés pelos quais sangrávamos de desejo. Estiquei o pescoço por cima da multidão e vislumbrei ao longe, entre o mar de cabeças de repolho, o brilhante dente de alho na boca de meu amigo. Ele exigia de Julienne o direito de salpicar, na retalhada salada, agora em junho o sal que ela insistia em só colocar a gosto.
Perseguido pela torre e pelo bispo, cruzou correndo por entre minhas pernas o frango xadrez, que acabou detido na porta da cozinha pelo golpe certeiro do maitre empunhando um peixe-espada. Cena bastante deprimente que fez somente o Chico balancear de tanto rir. Indignadas, algumas senhoras ergueram-se do banco em que há horas tomavam chá para obrigá-lo a consumir um pão que o diabo havia amassado e estava aziago.
Romeu e Julieta, apesar de bem-casados, não puderam entrar porque ele estava com a calça virada e ela tinha cara de Marta Rocha. “Isso aqui vai terminar em pizza”, gritou raivoso, xingando o brigadeiro. A galinha era caipirinha e já chegou trôpega, assustando quem comia funghi secchi e fungava molhado. O segurança era banana e não conseguiu segurar nem mesmo o pé do moleque.

O frei capuchinho bebericava café antes de passar o expresso e tentava pagar a conta com um xeque-mate. As canoinhas estavam furadas e ninguém conseguiu descascar o abacaxi. Babette reclamava que a torta viera salgada e o arroz estava doce. Apavorada com o que presenciava, minha esposa engoliu em seco e correu a dar o bolo enquanto eu nada mais pude fazer senão tomar jeito e sair à francesa daquele sonho indigesto.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de junho de 2013)

terça-feira, 11 de junho de 2013

Tristeza em Tapariu


Jimmy Rodrigues
A notícia da morte do jornalista Jimmy Rodrigues pegou de surpresa e entristeceu toda a vila de Tapariu, a Capital do Brócoli, a pequena cidade de colonização italiana incrustada em algum ponto da Serra Gaúcha. Não se falava em outra coisa em toda a Rua Rechercha, e foi a pauta de discussão entre o Epaminondas, o Francisquinho e o Professor Alcides, a pessoa mais ilustrada da vila, que recordavam a longa vida dedicada ao jornalismo, às crônicas e ao serviço público municipal do notável cidadão.
O Circo Sarrazani emudeceu com a tristeza do Palhaço Vira Cambotas e o Alcaide decretou luto oficial por três dias, recebendo apoio no ato até do Vereador Evandir. No Bar Bicha, na Pensão Familiar, na Casa de Pasto Prato de Ouro e no Bar da Esquina, localizado “bem no meio de uma das quadras laterais” da Praça do Fundador, todos recordavam a memória do saudoso repórter.
O Clube Invicto e o Arranca Toco Futebol Clube jogaram um amistoso em homenagem ao jornalista, e os correligionários do PUT (Partido União de Tapariu) e do PIC (Partido do Impávido Colosso) deixaram de lado as diferenças para prestar homenagem conjunta na Câmara de Vereadores, onde ele tinha sido funcionário durante anos. A rádio “A Voz de Tapariu” e o jornal “O Tapariuense” recordaram a biografia do seu ex-colaborador, autor de centenas de crônicas que refletiram a vida cotidiana da Serra Gaúcha, retratadas no cenário e nos personagens da fictícia Tapariu.

A verdadeira Caxias do Sul se une aos órfãos personagens concebidos pela imaginação do escritor e também imprime na memória a já saudosa lembrança de um de seus mais ilustres filhos. Uma prova desse talento eu tive o privilégio de conhecer ao selecionar e organizar as 100 crônicas de sua autoria que integram o livro “A Voz e a Palavra” (Editora Belas-Letras, 2008), que agora fica como um perene mostruário de seu estilo único e bem-humorado de retratar o cotidiano.(Texto publicado no jornal "Pioneiro" em 10 de junho de 2013)

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A questão postergada

Flagrante de Sir Parsifal cavalgando em busca do Santo Graal e do crescimento pessoal

Leio livros de literatura (ou seja, ficcionais) de maneira ininterrupta desde os dez anos de idade e fico estarrecido quando vejo depoimentos sustentando que esse tipo de leitura é perda de tempo. “Não perco tempo lendo historinhas”, já escutei alguém dizer. “Ao invés de ficar em casa lendo, prefiro sair para fora e viver”, disse outro, como se um coisa impedisse a outra.
Mesmo sabendo sair para fora e viver, e adorando as tais “historinhas”, minhas décadas de dedicação à leitura me têm proporcionado o recebimento de presentes inestimáveis sob o ponto de vista da compreensão da alma humana, o que, para mim, ao menos, se afigura como algo de vital importância e utilidade. Uma das “historinhas” que mais aprecio é a saga de Parsifal, o cavaleiro andante, descrita em livro ainda no século 13 pelo trovador alemão Wolfram von Eschenbach.
Numa versão livre de minha lavra, resumo a “historinha” assim: Parsifal vestiu sua armadura, pegou a espada, montou o cavalo e saiu ao mundo em busca do Santo Graal, o cálice sagrado no qual Cristo teria bebido o vinho na Santa Ceia. Em andanças repletas de aventuras, acaba deparando por acaso com o Castelo do Rei do Graal, onde é recebido na Corte. Porém, Parsifal percebe que o Rei está doente e, com sua doença, adoentado está o reino todo: a rainha, os vassalos, os animais, a natureza, tudo está doente. Jovem e inexperiente, Parsifal vê tudo aquilo e vai-se embora, mudo e calado.
Anos depois, um Parsifal mais maduro encontra-se novamente com o Castelo do Rei do Graal e entra. O Rei continua doente, bem como todo o seu reino. Dessa vez, no entanto, Parsifal faz a ele a pergunta: “Tio, o que te aflige?”. Ao levantar a questão que na visita anterior havia sido postergada, demonstrando preocupação, interesse e compaixão, imediatamente é restaurada a saúde do Rei e de todo o reino, e Parsifal recebe de presente o Santo Graal que tanto buscava. Tudo porque simplesmente fez a pergunta certa e estava disposto a ouvir.

O que aprendi com essa “historinha” é que, ao sairmos às vezes de nosso egoísmo autocentrado, nos dispondo a ouvir o outro com interesse, podemos estar redimindo o reino interior de alguém, com pouco esforço. Aprendi na literatura, com essas “historinhas”. Não acho que perdi tempo.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 7 de junho de 2013)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Reflexão copeira

Quando a Seleção Brasileira conquistou a Copa do Mundo no México, em 1970, eu estava a duas semanas de completar quatro anos de idade e meus maiores interesses giravam em torno de um Pato Donald de plástico em cujo bico eu fizera um furo a fim de alimentá-lo com restos de minha própria comida, o que fez o brinquedo passar a cheirar muito mal algum tempo depois e ser descartado no lixo.
Da Copa de 1974 eu recordo vivamente da partida final entre Holanda e Alemanha Ocidental porque era domingo, 7 de julho, véspera de meu aniversário, e havia festa lá em casa devido à data. Porém, todas as atenções dos homens adultos estavam voltadas ao televisor posicionado próximo à mesa com docinhos, refrigerante e o bolo de meus oito anos. A Alemanha sagrou-se bicampeã mundial e recordo de meu avô paterno festejando muito tudo aquilo e comentando a qualidade do jogador Beckenbauer.
Na de 1978, realizada na Argentina, eu já era mais grandinho, tinha consciência de ser gremista e sabia até os nomes de alguns jogadores não só do escrete nacional como também da seleção anfitriã, como Kempes, Luque e Passarela. Uma televisão era instalada na sala de aula para acompanharmos os jogos da Seleção Brasileira e foi ali que comecei a aprender a torcer, observando as reações de meus colegas.
A Copa de 1982 foi a primeira que acompanhei de fato. Decorei a escalação da Seleção, colei com Cola Tenaz em um álbum as figurinhas dos jogadores de todas as equipes e assisti a todas as partidas que pude. Sofri sozinho em casa a desclassificação da Seleção Canarinho sob o chute certeiro do italiano Paolo Rossi. Era uma tarde nublada de segunda-feira, e meu estado de espírito também se acinzentou com aquele resultado adverso. Foi a primeira vez em minha vida que o futebol estabeleceu comunicação direta com a minha alma e me integrei para sempre à imensa população mundial que sofre e festeja com as derrotas e as conquistas de seus times do coração.

Agora adulto, torço é para que, muito além do futebol, os brasileiros possam dar exemplos de cidadania ao sediarem ano que vem, uma Copa do Mundo, a ponto de podermos sair orgulhosos do evento, independentemente do resultado que nossa Seleção obtiver nos gramados.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de maio de 2013)