sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Apesar do Batman

(Ele não era muito afeito à solução dialogada de crises)

Quando eu era criança (eu já fui criança, juro), lá nos anos 1960 e início dos 1970, na longínqua Ijuí, uma das coisas que mais gostava de fazer era assistir ao seriado “Batman e Robin”, exibido à tarde na TV Gaúcha. No horário certo, já feitos os temas de casa e estudado para a sabatina de ciências, eu preparava um sanduíche acompanhado de um copão de Toddy e rumava para a saleta onde morava nosso televisor Telefunken, com imagem em branco e preto, seletor de canais manual e botões para ajustar o brilho, o contraste, as linhas horizontais e as verticais (a imagem seeeeempre corria tresloucadamente bem na hora dos meus programas preferidos).
Ligava a tevê e ficava esperando o aparelho aquecer. Um pontinho de luz acendia bem no meio da tela ainda preta, indicação de que em breve o sinal surgiria e eu me largaria a acompanhar as aventuras dos meus super-heróis preferidos, a darem sopapos no Coringa, no Pinguim, no Charada. Vinha o sinal e lá ia eu, mais uma vez.
O interessante é que Batman e Robin eram personagens que solucionavam os problemas na base da violência, que ficava explícita não tanto pelos socos coreografados que desferiam de mentirinha nos atores-vilões, mas mais pelas onomatopeias (SOC, PLAU, CRUNCH) que explodiam na tela. Eles batiam e eu vibrava. Depois, assistia às cruéis perseguições empreendidas pelo gato Tom ao ratinho Jerry, um arremessando cadeiras na cabeça do outro ou fatiando o adversário em pedacinhos com motosserra. Outro dia, no mesmo canal (só havia um canal em Ijuí, naquelas primitivanças), via o Papa Léguas fazer o Coiote despencar de desfiladeiros e se esborrachar lá embaixo, ao som de seu jocoso “bip-bip”. O Dick Vigarista e o Tião Gavião raptavam a Penélope Charmosa, amarravam a loira e ameaçavam retalhá-la ao meio em uma serra-fita. Os Três Patetas davam murros na cabeça uns dos outros. E a gente ria, ria, ria.

O que me intriga é que nem por isso eu, minha irmã, meus primos, coleguinhas e amiguinhos, nos tornamos assassinos, parricidas, latrocidas, serial killers, psicopatas, sociopatas (ao menos, até onde eu tenha notícia). Talvez porque, apesar da violência observada na ficção, tivéssemos em casa e na escola uma educação presente e atenta de quem era responsável por nossa formação. Talvez nisso resida a chave simples para explicar muita coisa que vira notícia ruim nos dias de hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de agosto de 2013)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Tempos estranhos

O escritor francês Marcel Proust (1871-1922), no sétimo e último volume de sua saga psicológica “Em Busca do Tempo Perdido”, reflete em determinada altura a respeito das consequências nefastas que a Primeira Guerra Mundial exercia sobre os espíritos dos cidadãos de sua época. Espantava-se o personagem principal (na verdade, o alter-ego do próprio autor) com o fato de homens gentis, inteligentes, sensíveis e bem educados, que ele havia anteriormente conhecido nos salões requintados da sociedade parisiense, envolverem-se, no front, em assassinatos em massa, violências e atrocidades em geral.
De certa forma, Proust antecipava em suas páginas toda uma linha de debates e reflexões éticas e filosóficas que se imporiam décadas mais tarde ao findar da Segunda Guerra Mundial, que suplantou a Primeira na capacidade de incentivar a humanidade a produzir horrores. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das pensadoras que se debruçou sobre a questão, cunhando o termo “banalidade do mal” para designar o fenômeno que move pessoas corretas no dia-a-dia a se transformarem em verdadeiros monstros quando as condições sociais assim o permitem e/ou estimulam.
O fato é que nós, seres humanos, nutrimos uma forte tendência a nos deixarmos moldar pelo meio que nos envolve, aproveitando as situações de conflito e de falência das regras sociais para largarmo-nos alegremente à satisfação de nossos piores instintos, à fruição de toda a baixeza e vilania que parece insistir em permanecer à espreita de nossas índoles, por mais que aparentemente evoluamos em termos tecnológicos, científicos e filosóficos. Cidadãos do século 21 que somos, imaginamo-nos muito distantes e superiores aos nossos antepassados que queimavam feiticeiras em praça pública e exibiam o medonho espetáculo às suas crianças, ou aos senhores e senhoras de bem que adquiriam, mantinham e açoitavam escravos como sendo a coisa mais natural (e legal) do mundo (como de fato era, naquela época).
Trata-se, no entanto, de uma perniciosa ilusão. Seguimos sendo, individualmente (e coletivamente), seres com capacidade latente para agir de forma tão bárbara quanto os hunos, os godos, os nazistas e os conquistadores espanhóis. Basta que a oportunidade nos seja oferecida de bandeja. Tem sido difícil ultimamente fazer casar o termo “era civilizada” com os dias que estamos vivendo.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2013)

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Dia de cartão postal


Um doce e gélido espírito infantil nos invade quando acontece essa coisa de nevar. As pessoas saem às ruas com sorrisos largos a tomar-lhes a área dos rostos e lançam-se para fora do aconchego das casas sem dar bola ao frio de encarangar pinguim que rola na rua. Tudo para ver a neve, curtir a neve, produzir bolas de neve e jogar na namorada para vê-la dar gritinhos, fazer fotos para compartilhar com os amigos nordestinos pela rede social (eles lá, de calção e chinelo de dedo, morrendo de inveja de nós aqui, embalsamados em casacos e mantas), moldar desajeitados bonecos de neve com as crianças e fazer de conta que se está em Aspen.
Um espesso cobertor branco pairou ontem por sobre toda a cidade ao raiar do dia nessa nossa Caxias do Sul que, este ano, vem penando um inverno rigoroso como aqueles de nossa saudosa infância (nessas horas é que nos certificamos de que “saudosa” mesmo era a infância, mas não o rigor do inverno). Já de manhã cedinho a rua é invadida por vizinhos que desentocam para brincar e fotografar a paisagem de cartão postal europeu que se descortina no jardim de suas próprias casas. “Que belo presente”, me diz um desconhecido passante, em meio a um sorriso que mal aparece, ensanduichado entre a gola alta do blusão e as abas da touca a cobrir-lhe as orelhas.
Mais adiante, esquina abaixo, um automóvel para no meio-fio e despeja uma família completa que salta a construir bonecos de neve. Os dois que eu tentara fazer ainda na noite anterior, quando a nevasca se iniciara, jazem semimortos ao lado da cerca, meio derretidos, pendendo ambos para o mesmo lado. Coitados. Confesso que desde a origem eles pouco lembravam o formato clássico dos típicos bonecos de neve norte-americanos que vemos nos filmes, dada a minha incompetência (ou inexperiência) em produzi-los, haja vista a rara frequência de nevascas desse porte por aqui. Estavam mais era para anões estropiados de jardim e, se eu tivesse levado a cabo a intenção de construir sete deles, teria feito uma foto em meio à turma e postado na internet como “Marcos Frionando, o Branco de Neve e seus Sete Anões”, mas fui demovido da ideia por um providencial chamado para dentro porque eu iria acabar “pegando uma gripe daquelas”.

Essas neves decenais nos aliviam momentaneamente os espíritos e descongelam a criança que, quando queremos, ainda guardamos escondidinha nos freezer de nossas almas. Devia nevar mais por essas plagas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de agosto de 2013)

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Deitado na maca

Ao contrário do que eu imaginava, começou pela minha cabeça. Sempre pensei que se começasse pelos pés, mas enfim, o estreante era eu, a profissional era ela, não me cabia discutir. Fechei os olhos e relaxei o corpo todo. A sala era climatizada, uma penumbra auxiliava a conferir uma aura de tranquilidade ao ambiente no qual restávamos apenas nós dois, eu completamente nu, apenas um fino lençol branco a me cobrir o corpo todo, no qual ia detectando as sensações, todas elas novas e surpreendentes.
Primeiro, foi o couro cabeludo, as têmporas, as orelhas. Seguiram-se as pálpebras, os músculos da face, o nariz, os lábios, até mesmo o queixo. Continuou pelo pescoço e pelo pomo de adão, quando então me senti de fato começar a relaxar, a perder a rigidez dos músculos todos, a ficar mais à vontade naquela situação, os olhos ainda cerrados, entregue ao comando experiente de quem parecia saber o que estava fazendo. Os ombros e os braços foram focados simultaneamente, e também o peito teve a sua vez, baixando para os cotovelos, a base das costelas, a barriga, o umbigo.
Tudo era feito com uma dose certa e equilibrada de calma, precisão e técnica, que revelava anos de conhecimento e prática empenhados ali naquele procedimento ao qual eu destinava a atenção total dos meus sentidos, de toda a minha capacidade de percepção, apesar do relaxamento e da tranquilidade que advinha da situação. E assim chegou a vez dos pulsos, das mãos (os braços estendidos ao longo do corpo) praticamente no mesmo instante em que o foco pairou na pélvis, no sexo, nas coxas,  seguindo em direção aos joelhos e às pernas.
“Está chegando ao fim”, imaginei eu, ao detectar os esforços todos direcionados, agora sim, aos meus tornozelos, aos calcanhares, pés e dedos. Desde o início até o final, o procedimento não demorou mais do que quinze minutos, o que me surpreendeu, pois imaginava que levaria bem mais tempo do que isso.
“Pode se levantar e se vestir”, disse-me a doutora, enquanto desligava o aparelho de tomografia computadorizada com seu feixe de luz e eu me erguia meio mole da maca em que há pouco vivenciara aquela nova experiência que, de alguma maneira ainda obscura, eu sabia que haveria de se transformar em crônica.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de agosto de 2013)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

De fora da festa

“De onde você menos espera, dali é que não sai nada mesmo”. A brilhante frase é de autoria de Apparício Torelly (1895 a 1971), o “Barão de Itararé”, jornalista criador do suplemento “A Manha”, que entrou para a história do jornalismo humorístico e crítico no Brasil por suas máximas repletas de humor, ironia e finas alfinetadas. O dito dele, com que abro a crônica de hoje, escrito há mais de meio século, ao invés de caducar com a passagem do tempo, me parece ter sua validade revigorada a cada dia que passa. Basta que olhemos à nossa volta.
Nosso entorno hoje é basicamente composto pelo sucesso das nulidades. A incompetência, o despreparo, o descomprometimento, o arrivismo, o jeitinho, a preguiça, a falta de zelo, a burrice, a mediocridade, o compadrio, a malandragem tomam conta de todos os setores da sociedade e vão moldando o perfil desse nosso país que, imaginam ainda alguns, é o “do futuro” e o “que vai para a frente”. Quem corre para o precipício também está indo para a frente e o futuro da mediocridade é a reprodução, a manutenção e o aprofundamento da própria mediocridade. Sob esse viés, concordo que sejamos o “país do futuro” (porém, dos néscios) e um “país que vai para a frente” (rumo às profundezas do abismo humano).
Passar o abacaxi adiante é o lema instaurado na cultura nacional e não me venham dizer que estou falando novidade aqui. “Não é comigo”, “não fui eu”, “não dá para fazer”, “a culpa não é minha” são as frases que escutamos a torto e a direito de quem tem uma tarefa a cumprir, mas se exime das consequências de sua falta de responsabilidade. “Minha parte eu fiz”, é o que nos dizem aqueles que obviamente não chegaram nem perto de sequer começar a fazer a parte que lhes cabia. Mas é assim que somos, nós, brasileirinhos, que precisamos que criem leis para multar quem joga lixo nas calçadas, coisa que no Japão não se faz não porque existam leis para isso (e elas não existem), mas porque cada cidadão lá habita um nível civilizatório inimaginável para a brucutança humana que se reproduz por estas nossas vergonhosas plagas.
O baile da mediocridade não tem hora para acabar, meus amigos. Trata-se de uma festa em que eternamente cabe mais um e a turma não para de chegar. De minha parte, só me resta fechar a porta, colocar tampões nos ouvidos e abrir um livro. Divirtam-se.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de agosto de 2013)

sábado, 24 de agosto de 2013

Isto é o real

A realidade, às vezes, se desbarranca em nosso colo de maneira agressiva, como que para nos chacoalhar, fazer acordar, enxergar direito as coisas à nossa frente que, normalmente, parece que evitamos perceber ou aceitar. São os chamados choques de percepção, ou insights, como gostam de dizer os psicólogos. Eu já vou mais no raso e digo “soco no estômago”, mesmo.
Pois tive um clarão assim noite dessas, enquanto participava de um evento cultural realizado no anfiteatro da Câmara de Vereadores. A palestrante convidada para aquela data, professora renomada na cidade, ao iniciar sua fala, emendou um esclarecimento aos organizadores que lhe haviam feito o convite. Pediu desculpas por não ter acatado a sugestão de mobilizar seus alunos de ensino médio para comparecerem ao evento e explicou as razões, resumidas em dois tópicos: trânsito e segurança.
Lúcida e previdente, a palestrante julgou arriscado mobilizar pais e alunos para o evento, levando-se em conta que, para tanto, obrigaria as famílias a, primeiro, enfrentarem o estresse e a imprudência vigentes em nosso trânsito urbano especialmente no período do final da tarde e início da noite. Depois, avaliou a questão da segurança, ou melhor, da falta dela, ou mais explicitamente, da violência mesmo à qual estamos expostos à noite, na hora do encerramento da atividade. Quem se sente seguro? Melhor, portanto, poupar os alunos e suas famílias de terem de se submeter a esses riscos.
Refleti, ponderei, concordei e me preocupei. De fato, quantas vezes eu mesmo não tenho optado por recusar convites para eventos, ou evitado planejar idas a restaurantes, shows, atrações diversas, visitas e passeios, levando em conta exatamente esses dois fatores que têm tornado quase impeditiva a vida tranquila em sociedade hoje, o trânsito e a insegurança? Dirigir virou um caos. Encontrar vaga para estacionar, uma gincana. Agregam-se a isso os riscos de ser assaltado nas sinaleiras, ter o veículo roubado, enfrentar um revólver empunhado contra você e os seus por um assaltante visivelmente alterado.
Ficar em casa passa a ser, na maioria das vezes, a programação mais recomendável. E nem mesmo encastelados estamos cem por cento seguros. No entanto, por imposição legal, seguimos sendo obrigados a sazonalmente votar naqueles que ganham suas vidas prometendo melhorar uma situação que só piora a olhos vistos. Valeu, professora. Caiu a ficha.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2013)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Elvis, quem?

Quem seria o cidadão de costeletas?

À medida que a ciência e a medicina avançam, suas conquistas vão proporcionando uma melhor qualidade de vida para a humanidade. Isso é ponto pacífico, inquestionável. A oftalmologia consegue hoje libertar o míope do uso de óculos; a dor de cabeça pode ser eliminada com uma drágea de ácido acetilsalicílico; a anestesia é um bálsamo nas cirurgias; o diagnóstico para detectar e prevenir doenças avança em todos os campos; até a gripe passa a ser combatida com vacinas. Uma era de maravilhas, já exclamaria a Miranda filha de Próspero se saísse de sua ilha, mas isso já é outra história.
Mas no meio do turbilhão de notícias sobre novidades e avanços nas pesquisas médicas que nos chegam, algumas beiram o estapafúrdio, geram desconfiança e fazem pensar. Exemplo disso é a que chega de um instituto de pesquisas sobre doenças cerebrais sediado em Chicago, Estados Unidos. Conforme os pesquisadores, é possível identificar sinais de início de uma espécie rara de demência aplicando aos pacientes um teste no qual pede-se para que identifiquem os rostos de celebridades mundiais. Não conseguir perceber que a foto à sua frente é de Elvis Presley, Albert Einstein ou John Lennon serviria de alerta e de indício de que a doença pode estar a se manifestar no sujeito.
Mas peraíumpouquinho, já me rebelaria eu, lá no instituto. E se o vivente simplesmente nunca tiver ouvido falar em Elvis Presley, aí, como é que fica a validade do tal do teste? Sim, porque é notório o fato de, poucos anos atrás, Bob Dylan ter saído a pé de noite do hotel em que estava hospedado, em uma cidade norte-americana, para dar uma volta sozinho, quando foi abordado com desconfiança por um jovem policial de 22 anos que nem fazia ideia de quem era aquela criatura com jeito de mendigo perambulando por ali àquela hora. Não sabia quem era Bob Dylan. Outro dia, assisti em um dos nossos canais de tevê locais um jovenzinho sendo entrevistado em estúdio e de repente, nem sei por que, o apresentador citou o famoso e saudoso palhaço “Carequinha” e o moçoilo riu do alto da soberba de sua alienação cultural: “Carequinha? Tão famoso que nunca ouvi falar...”. Ou seja, media o mundo com a régua de sua própria burrice.

Louvável o esforço em tentar criar formas de detectar a demência, doença terrível. Difícil será encontrar formas além do investimento em educação e cultura para combater a falta de interesse e a alienação de alguns.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de agosto de 2013)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Espiada pelo retrovisor

Que bonito que é quando você está em Paris circulando de táxi ou de carro alugado e de repente, lá na frente, vem se aproximando na paisagem a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo ou a Notre Dame. Mesma sensação de aproximação paulatina com o belo se dá em Buenos Aires em relação ao Obelisco fincado no meio da Avenida 9 de Julio. Coisa igual ocorre em diversas outras partes do mundo nas quais os belos cartões postais exibem-se majestosos aos olhares dos visitantes e mesmo dos habitantes, aos quais não negam as delícias visuais de suas formosuras nem aos transeuntes pedestres e tampouco aos motorizados.
Mas não em Caxias do Sul.
Desde que resido aqui (são 22 anos de habitança), incomoda-me o sentido do trânsito de veículos nas ruas Os 18 do Forte e Sinimbu, justamente por obrigarem a nós, motoristas, trafegarmos eternamente de costas ao visual arquitetônico de duas de nossas mais belas igrejas, respectivamente, a de Nossa Senhora de Lourdes e a de São Pelegrino. Sempre que circulo a pé por essas duas artérias vitais da cidade, divido minhas atenções entre os desníveis das calçadas e o admirar da paisagem que vai se embelezando com o aproximar dessas duas construções, cujas estéticas me encantam. São igrejas bonitas e mereceriam ocupar um destaque maior nos estímulos visuais a que somos submetidos durante os trajetos que nossas tarefas diárias impõem.
Especialmente nesses dias em que os engarrafamentos não têm mais hora específica para ocorrer, quando o trânsito lento dá a tônica do ritmo de nossos deslocamentos motorizados, imagino o bálsamo que seria ir se aproximando dos bairros Lourdes e São Pelegrino tendo no horizonte do para-brisas a visão desses dois templos de apelo turístico e de fé. Creio que esses cenários poderiam auxiliar como gatilhos para suscitar reflexões em nossos espíritos, desarmar nossa irritação e ansiedade cotidianas, aplacar os pensamentos, amansar momentos de nossas existências, trazer um dedo de poesia para dentro do carro, do ônibus, da van, do caminhão, da motocicleta. Humanizar-nos.

Não estou levantando a bandeira da inversão do sentido do trânsito em nosso centro. “Só me faltava essa”, vai pensar o Alceu. Sugiro apenas ao motorista aproveitar o sinal que fecha para dar uma espiadinha pelo espelho retrovisor. Às vezes, o que ficou para trás tem muito a oferecer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de agosto de 2013) 

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Do outro lado da rua

Tarde de domingo agradável, sem chuva, sem umidade, sem frio. Uma repentina folga das inclementes agruras climáticas que agosto vem impondo este ano. O sol dá umas espiadinhas pelos cantos das nuvens brancas, mostrando que ainda é amigo apesar de tudo e continua existindo, sim, mesmo que não tenha dado muito as caras ultimamente. A movimentação do meio-dia já se aplacou a essas horas de meia-tarde e a modorra dominical se impõe ao cotidiano de muitas famílias, que saboreiam cada uma a seu modo essas doces horas de nada ter de fazer, fazendo então as coisas que nessas horas se faz só por querer.
Da janela do escritório, no qual mesmo aos domingos escrevo livros, matérias jornalísticas e essas croniquetas, chega a mim a movimentação da rua e, do lado de lá da rua, estampa-se na paisagem a casa do vizinho. E lá está o vizinho, olha só, com o ar de domingo estampado no rosto e dando o ritmo de seus movimentos ao buscar para a varanda a cadeira de abrir, na qual se senta. Logo atrás segue a vizinha, com outra cadeira e uma cuia de chimarrão na mão. Nos rostos, óculos escuros, porque o sol, mesmo que tímido e bem-vindo, segue sendo o sol e é bom não facilitar.
Organizado o cenário, o vizinho, então, apoia em uma das pernas um livro e começa a ler. A julgar pela visão que tenho daqui, concluo que ele iniciou agora mesmo a leitura do livro, já que poucas são as páginas que ele sustenta abertas com a mão esquerda, permanecendo o grosso da obra a ser lida no outro lado, que a perna sustenta. Não posso ver pessoas lendo livros que sou invadido por uma agoniante sensação de curiosidade literária. Que será que lê o vizinho nessa tarde de domingo? Que autor lhe estará a capturar a atenção em uma tarde luminosa como essa? Se obra de ficção, qual o gênero? Um romance? Contos? Se não-ficção, qual o tema? Uma biografia? História? Um tratado científico?
Gosto quando leem livros perto de mim: num café, no ônibus, na sala de espera, na beira da praia, no banco da praça. Nesses raros momentos, invade-me uma sensação de pertencimento a uma irmandade anônima e silenciosa, da qual aquele leitor naquele instante se faz representante. Findou o domingo sem que eu soubesse o que lia o vizinho. Porém, fiquei sabendo que o vizinho lê, o que, cá para nós, é o que basta.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de agosto de 2013)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Para mim, costela

Costela. Costela e picanha. A costela, sempre bem passada, obviamente. Já a picanha pode vir ao ponto, ou bem passada, ou mal passada mesmo, que aceito de qualquer jeito, sempre com uma tirinha de gordura, que é para esfregar na farinha e proporcionar aquele sabor inigualável na boca. Para mim, esses dois cortes são os que justificam minhas idas frequentes a churrascarias, nas quais dou vazão ao instinto carnívoro que compõe a essência de meu ser e que me perdoem os vegetarianos porque agora é tarde e já não mudo mais, lamento (lamento?).
O fato é que, sempre que tomo lugar à mesa em uma churrascaria dessas de espeto corrido, de imediato identifico os garçons que prioritariamente desfilam pelo salão portando os espetos revestidos por costelas e picanhas e neles sintonizo meu radar-especial-de-monitorar-a-presença-de-garçons e fico ali, garfo numa mão, faca de serrinha na outra, sempre à espreita, semelhante à postura que meus ancestrais cro-magnons adotavam nas esquinas de suas cavernas à espera da passagem de algum tigre-dente-de-sabre mais boca aberta.
 Passa o garçom com a costela e eu plau, sim, quero! Passa o outro com a picanha e eu puxo-o pelo avental: “aqui, aqui”. E assim vou indo, almoço dominical adentro, ignorando premeditadamente os rabanetes, chuchus e cenouras que ornamentam o buffet de saladas disponível ali ao lado. E lá vou eu, adiante: costela, sim; salsichão, não, obrigado; picanha, sim; galeto, passo; costela, uhum; coraçãozinho, nã, nã, nã; abacaxi, o    quê???

Mas em meio ao ritual carnívoro abate-se sobre mim sempre uma pena imensa dos garçons portadores dos espetos que refugo. O da ovelha, o do cupim, o do filé ao alho e óleo... Fica me parecendo que ninguém aceita aquilo que eles oferecem com tanta generosidade. A ovelha vem de lá de dentro tinindo no espeto, o garçom para na primeira mesa e todos recusam; na segunda, ninguém quer; na outra, sequer respondem... e lá vem ele, direto para o meu lado, logo eu, que espero mais picanha e costela, terei também de dizer “não”. A vida é feita de escolhas e de recusas. Estóicos, centrados e resolvidos, os garçons da ovelha e do cupim devem saber disso como ninguém. Admiro-os de boca cheia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de agosto de 2013)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Na boca do tubarão

O norte-americano Erik Norrie é um cidadão, no mínimo, singular. É difícil encontrar um adjetivo que melhor classifique aquilo que ele é. Poder-se-ia dizer que Erik Norrie possui superpoderes como o Hulk e tem o corpo fechado, pois nada o atinge. Ou isso, ou é odiado pela natureza, uma vez que, ao longo de seus 40 anos de idade, vem colecionando uma série de episódios bizarros nos quais foi vítima de acidentes terríveis que teriam despachado qualquer outro direto para o além. A morte ronda Erik Norrie, desfere golpes certeiros contra ele, mas não consegue enredá-lo. Por que será?
Vejamos. Sua mais recente peripécia mortal foi ter escapado vivo de um ataque de tubarão nas Bahamas, onde estava pescando com um arpão. Norrie conseguiu nadar para longe do faminto peixe que aperitivava sua perna, pediu socorro em terra e virou notícia, quando então relatou que não era a primeira vez que escapava da morte.
A primeira mesmo foi aos dez anos de idade, quando andava à toa na vida na Flórida, em meio a uma tempestade, e foi atingido por um raio que o lançou longe. Sobreviveu, como já sabemos, para, três anos mais tarde, ser picado por uma cobra, o que quase acarretou a perda de sua perna direita. Depois disso, já adulto, foi atacado duas vezes por macacos. Uma delas em Honduras, quando sua esposa, “por brincadeira”, conforme relata (aí tem), trancou-o na jaula de uma fêmea, que avançou contra ele. Por fim, passava férias na Amazônia, no Brasil, quando um macaco tupiniquim deu-lhe um soco na cabeça.

Foi só aí que passei a desconfiar do Erik Norrie. Ora, existe algo mais repleto de clichê preconceituoso e desinformado do que um norte-americano imaginar que ao vir para o Brasil correrá risco de vida porque será inevitavelmente atacado por macacos? Vai mentir para outro, Erik Norrie. Nós, brasileiros, somos muito mais competentes em colocar vidas em risco do que atiçando macacos contra turistas. Venha se internar em nossos serviços públicos de saúde, Erik Norrie. Venha dirigir em nossas estradas. Venha se colocar na mira dos assaltos com morte promovidos pela cadeia do tráfico e do vício. Venha beber leite adulterado com produtos cancerígenos. Quero ver o senhor enfrentar o cotidiano de um brasileiro por um ano inteirinho e aí, sim, sair ileso. Para nós, boca de tubarão e raio na cabeça são fichinhas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de agosto de 2013)

domingo, 18 de agosto de 2013

Sorvete na Sibéria

Todos me olharam como se eu fosse um ET. Sequer se deram ao trabalho de disfarçar o fato escancarado de que, frente à proposta que eu acabara de fazer ao grupo, nenhum deles mantinha ainda nenhuma dúvida de que eu não devia ser desse planeta mesmo. Na cara de Rosvinda pude ler estampado: “Deve ser é de outro plano astral, ou de outra dimensão, mas daqui da Terra é que ele não é”. O Deves e o Jardel seguramente pensavam coisas semelhantes ou piores, especialmente quando se tratava de pensar desabonanças a meu respeito.
E tudo isso apenas porque eu propusera aos amigos irmos comer sorvete no meio daquela tarde gelada de julho, décadas atrás, o vento minuano a soprar e transformar na passagem nossas orelhas em estalactites pendentes uma de cada lado de nossas cabeças estudantis. Sim, sorvete, ué, e por que não? Que tem a ver a temperatura ambiente com aquilo que nos desperta a fome e o desejo? Por que não posso saborear uma transbordante taça de sundae ou de banana split (os mais antigos pediam “balalaicas”), mesmo que os termômetros estejam marcando temperaturas siberianas? Que tem a ver a temperatura de minha boca, garganta, esôfago e estômago com as nuances do clima?
Afinal, não se toma café também nos meses de verão aqui em nosso eclético território? Sou proibido, então, de saborear uma feijoada em fevereiro? Sopa é só no inverno? Cerveja gelada apenas na praia? Vinho tinto somente de junho a agosto? Os esquimós não podem chupar picolé nunca na vida? Aos beduínos do deserto jamais lhes será permitido saborear uma garrafa de merlot acompanhada de um picante goulasch repleto de páprica? Que coisa mais sem graça!
Desgarrei da turma vituperando essas frases todas, dobrei a esquina, atravessei a avenida e fui-me sentar sozinho na lancheria mais badalada da cidade. Pedi a tal da banana split e um refrigerante “bem gelado”. Ninguém percebeu que eu tremia frio enquanto aguardava a chegada do pedido, pois naquela época eu usava um pala providencial. Quando chegou o sorvete, mandei ver, convicto que estava de minha personalíssima postura.

Depois faltei uma semana de aula devido a uma inominável dor de garganta que por pouco não me despachou em definitivo ao calor dos quintos dos... Mas desde então, não pauto minhas vontades e decisões pelo senso comum. E arco, claro, com as eventuais consequências.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2013)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Vamos abrir os olhos

Mas esses chineses já estão passando da conta. Alguém tem de tomar uma atitude e ir até lá dar um basta nisso tudo, antes que seja tarde demais. O Arnaldo César Coelho, por exemplo, poderia singrar os mares e desembainhar um cartão vermelho para eles, sinalizando “stop” em linguagem universal (se bem que, sendo a China um dos últimos redutos comunistas do planeta, a cor vermelha pode ter lá o mesmo significado que por aqui atribuímos ao verde, e o ato do nosso intrépido juiz poderia vir a ser interpretado como “sigam em frente; avante, camaradas” e o tiro sairia pela culatra).
A gota d´água que transbordou meu copo de tolerância para com a onda de invasões chinesas em todas as áreas da existência se deu agora, ao ler reportagem revelando que, espalhadas por lugares diferentes do vasto e inapreensível território chinês, estão construídas réplicas perfeitas, em tamanho natural, de diversos pontos turísticos característicos de outros países do mundo. Existe, por exemplo, uma Torre Eiffel clonada em um bairro que reproduz todo um arrondissement parisiense, na cidade chinesa de Hangzhou (eu vi as fotos!). Em Hefei (Hefei, na China, sabe?), reproduziram lasca por lasca, menir por menir, o sítio megalítico britânico de Stonehenge. Na província de Guandong, ao invés de visitar lojas de porcelana da Dinastia Ming, você vai se ver andando pelas ruas de toda uma cidade histórica austríaca, que ali está reconstruída paralelepípedo por paralelepípedo igual à original.
E não fica nisso. Passeando por lá atrás de detalhes culturais típicos da rica e milenar cultura chinesa, em qualquer canto, inesperadamente, você pode deparar com uma réplica da Casa Branca de Washington, ou com a Esfinge do Planalto de Gizé, ou com esculturas gregas atenienses e assim por diante. Em continuando assim, se ninguém tacar-lhes um paratiquieto, não tardará muito para que o turista desavisado dê de cara por lá com imitações do Monumento ao Imigrante, da Casa de Pedra, do Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, da Pipa-Pórtico de Bento Gonçalves e assim por diante.
Em represália, já encomendei um lote de pedras de basalto de Nova Prata e amanhã mesmo começo a erguer uma Muralha da China daqui de casa até Galópolis, projeto para arregalar os olhos de qualquer chinês clonador.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de agosto de 2013)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Oba, catapora!

Uma das melhores coisas do mundo é pegar doença de criança quando se é criança. Muitas vezes nem chegava a ser doença: bastava um resfriado mais forte que trouxesse no pacote tosse, um risquinho de febre no termômetro, espirros de intumescer lenço de pano, dor na garganta e sonolência, que mães e avós, tias e irmãs mais velhas (nessas horas, zelosas) já tratavam de nos entrincheirar debaixo das cobertas, sob ordens expressas de não sairmos dali nem por decreto, o que nos púnhamos a cumprir sem pestanejar, especialmente por aquilo significar faltar às aulas de forma prá lá de justificada, o que, no fundo, era uma imensa satisfação.
Que eu me recorde, fora essas gripes sazonais, escapei de males maiores como coqueluche, sarampo e caxumba, que muito transtornaram vários de meus coleguinhas, mas capitulei na catapora. Um belo dia, minha pele inteira amanheceu pipocada de pequenas erupções circulares avermelhadas, desde o couro cabeludo até o último dedo do pé e, pimba, nada de aula para mim. Quarentena direto, devido ao alto poder de contágio daquela coisa. Meti o pijama listrado, arrebanhei a pilha de histórias em quadrinhos de que mais gostava, juntei alguns livros de Monteiro Lobato e da coleção juvenil da Ediouro e dirigi-me ao bunker em que minha cama se transformava nessas ocasiões, decidido a sair de lá somente pela força da cura.
No bidê ao lado da cabeceira, além dos remédios receitados pelo médico da família, minha mãe aquartelava os biscoitos de que eu mais gostava (Lanche Mirabel, a “Merendinha”), uma jarra de suco (pois que hidratação é vital numa hora dessas), um Danoninho (na época, só havia sabor morango) e barras de Chokito, Kri e Lollo. Minha irmã, rubra mas de inveja, colocava os cadernos na pasta e marchava à escola, torcendo para ser contagiada também por aquelas pintinhas que me transformavam em joaninha, para poder desfrutar das mesmas regalias com as quais me paparicavam. No que dependesse de mim, não melhorava nunca, porém, a evolução das brotoejas cataporais desmascarava qualquer manobra que eu quisesse inventar na tentativa de prolongar a situação e logo estava pronto para (raios!) retornar às aulas.
A infância é mesmo um presente de curta duração. Depois que se fica adulto, adoecer perde completamente a graça.


 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de agosto de 2013)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Todo o dia...

Existem tarefas domésticas das quais eu não gosto. Uma frase assim beira o pleonasmo, ou seja, uma redundância em si própria, uma vez que dificilmente existirão tarefas domésticas das quais se possa genuinamente gostar (entendendo-se por “tarefas domésticas” somente – e tão somente – aquelas referentes à prática da limpeza e dos serviços gerais que mantêm uma casa em ordem). Portanto, o mais correto seria iniciar este texto dizendo que existem tarefas domésticas das quais desgosto mais do que de outras. Assim sendo, comecemos daqui, leitor:
Existem tarefas domésticas das quais desgosto mais do que de outras (agora, sim, não precisamos de parênteses explicativos, mas eis que um já se infiltra aqui, parece até vicio). E não há muita explicação lógica ou racional para os gostares e os desgostares quando se trata da relação de determinada pessoa com a gama quase infinita de tarefas domésticas que podem existir. Eu, por exemplo, prefiro lavar louça a secar a louça. Considero o ato de secar a louça como uma desnecessária perda de energia e de desgaste de panos, uma vez que a louça, mais cedo ou mais tarde (dependendo da umidade relativa do ar daquele dia), acabará secando-se sozinha, sem que eu tenha de interferir nesse processo (a humanidade evolui continuamente e haverá de chegar o dia em que a louça lavar-se-á também por conta, quem viver verá, afinal fornos e gatos já atingiram o estágio de autolimpantes, basta seguir-lhes o exemplo).

Mas o que detesto mesmo é tirar a roupa da máquina de lavar e estendê-la nas cordinhas do varal na área de serviço. Não sei o motivo, mas odeio fazê-lo, me dá uma agonia, uma ânsia, aquelas roupas semiúmidas, o embaraço das cordas, os prendedores que me saltam das mãos como piruetas de gafanhotos... Pior é quando a esposa está por perto e grita de lá que é preciso chacoalhar as peças de roupas antes de prendê-las no varal, para que não sequem retorcidas. Eu não sei chacoalhar as roupas molhadas. Não tenho habilidade para isso e me embanano todo no processo. Chacoalho uma camisa e parece que estou perseguindo mosquitos, me torcendo todo... Minha esposa observa a cena e invariavelmente grita de lá de novo: “É para chacoalhar as roupas, não o traseiro”. Assim não dá. Prefiro limpar o vaso. A cada um as atribuições que seu talento permite.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de agosto de 2013)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Carta a São Pedro

Prezado senhor São Pedro:
Considerando que os meses de frio na região conhecida como Serra Gaúcha costumam se antecipar à chegada oficial do Inverno e se estender até depois de encerrado o prazo de validade dessa sazonal estação climática, fazendo-nos tiritar por cerca de oito dos 12 meses do ano;
Considerando que temperaturas desavergonhadamente baixas desestimulam a prática de esportes ao ar livre e também a prática de atividades quaisquer que sejam indoor, a não ser as relativas ao bate-queixo defronte às lareiras e aos fogões a lenha, quando muito o mergulho para baixo das montanhas de cobertores ainda cedo da noite sem mais nada querer de nada, colocando em risco até mesmo a manutenção da densidade demográfica serrana de que tanto nos orgulhamos, correndo riscos de extinção de toda uma cultura;
Considerando que até mesmo outras regiões como Santa Catarina e Paraná andam ultimamente anfitrionando a manifestação do fenômeno meteorológico conhecido como “neve”, que até então figurava como exclusividade das paisagens gaúchas e, entre elas, especialmente nas dos gaúchos destemidamente residentes na Serra, esvaziando para outras plagas o frio atordoante que até então os alegres turistas de longe só encontravam aqui entre nosotros;
Vimos nós, abaixo-assinados, reivindicar que os frios escorchantes - que nos encarangam as espinhas e gelam as almas até mesmo de quem não crê nelas - passem a ser optativos para cada habitante desta região serrana do Rio Grande do Sul. Que o senhor permita e exercite na prática a pluralidade climatológica individual, em que cada cidadão tenha o direito de vivenciar no inverno a temperatura que melhor aprouver à sua própria saúde, ao seu próprio bem-estar, ao seu pessoal e intransferível conceito individual de “frio” e de “inverno” (para mim, por exemplo, invernos poderiam estabilizar no meu entorno físico em temperaturas amenas que variem entre 15 e 20 graus centigrados, estamos combinados?).
Em sendo assim, agradecemos desde já a atenção dispensada e subscrevemo-nos, deixando-lhe as mais quentes, acolhedoras e aconchegantes manifestações de nossa estima e apreço, na certeza de que o senhor será sensível (e nãoinclemente) ao nosso apelo.

Assinado: Gente da Serra Gaúcha (Marcos Fernando Kirst e os seguintes leitores:..............)
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de agosto de 2013)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Uma autodisputa

Foi numas férias dessas em que veraneávamos em alguma prainha de nosso litoral gaúcho, quando decidimos passar o dia em um desses parques aquáticos repletos de piscinas, escorregadores, crianças molhadas, senhoras de maiôs cintilantes, quiosques de lanches, brinquedos e mosquitos. A esposa, com sua peculiar alma de sereia, migrava de piscina para piscina, experimentando a térmica, a coberta, a fria ao ar ao livre, a das crianças, a maior, a menor, a funda, a com ondas, a rasa...
Já eu, aquela coisa de sempre, ocupava-me prioritariamente em perseguir, obstinado, a trajetória da sombra por entre árvores, bancos e quiosques, nos quais pudesse ler de forma razoavelmente confortável os livros, jornais e revistas que levara junto, obviamente que determinado a sair daquele parque, ao final do dia, tão seco quanto entrara, tão alvo quanto ao pular da cama de manhã cedo. Mas tudo mudou quando nos deparamos com a pista de kart. “Oba, uma pista de kart! Sempre quis andar de kart, e não tem ninguém! Só nós! Vamos lá!”, gritei, tão adolescentemente e tão entusiasmado que a esposa não teve como me privar da realização daquele desejo.
Fomos lá. Compramos os tíquetes que davam direito a três voltas na pista, colocamos os capacetes e sentamos cada um em seu respectivo kart, já ligados e dispostos lado a lado na posição de largada. À nossa frente, em pé entre os dois bólidos, o funcionário do parque explicava as regras da disputa: “Vocês só podem sair quando eu disser ‘já’”... e foi ele dizer aquele “já” explicativo que minha esposa não teve dúvidas: meteu fundo o pé e arrancou na minha frente, me deixando ali, abobado, olhando para o funcionário e vendo ela vencer já a segunda curva, voando as loiras tranças. “Bom, agora vai”, disse-me ele, tão pasmo quanto eu. Aí arranquei.
Ultrapassá-la se transformou em questão de honra e consegui fazê-lo ainda na metade da segunda volta, em um lance bem ousado que outro dia chamo Reginaldo Leme para me ajudar a detalhar aos leitores. O fato é que, apesar da queimada que ela deu na largada, venci a prova, ora bolas, o que é que ela estava pensando. Ruim mesmo é que ela achou a brincadeira sem graça. Não percebeu que saiu antes do que devia e que minha ultrapassagem fora uma prova de superação e habilidade. Deu de ombros para aquilo tudo e retornou para uma das piscinas. Eu havia disputado sozinho...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de agosto de 2013)

Argentino pensa longe

Fazia dias que eu não tinha mais sinais de vida de meu amigo Argentino, e isso, eu já sabia, às vezes é sinal de que ele pode estar aprontando. Conheço Argentino de longa data, desde os tempos da faculdade, quando descobríamos livros e autores em meio à fumaça dos bares cavernosos que frequentávamos, nos quais as garrafas vazias de cerveja eram capturadas em um golpe-surpresa pelo garçom Edson, enquanto descansávamos nossos olhares esgazeados no impassível perfil de Zuleika, na mesa ao lado. Argentino muito tempo na moita era sinal de ventania e a prudência e o bom-senso convidavam a agir.
Telefonei e nada. Mandei e-mail e silêncio virtual. Enviei torpedo e ele naufragou nas indevassáveis ondas da telefonia celular. Rondei o prédio em que mora e o zelador, apesar de me conhecer há anos, não me franqueou a entrada (a gente sempre se surpreende com a impressão que causa nas pessoas e descobre isso pelas formas mais inusitadas). Fiz campana defronte à repartição em que ele trabalha mas não o vi nem chegar nem sair. Interpelei uma sua colega e ela confirmou o que eu já previa: também não o via há dias, pois pedira transferência para Blumenau.
Fiquei intrigado na mesma medida em que me punha irritado. Ora, então! Fora embora e não me dissera nada. Senti-me traído, desdenhado, abandonado, ultrajado. Baita sacanagem, seu Argentino, bonito hein? Seguia eu dizendo a ele mentalmente, enquanto chegava em casa e retirava, da caixinha do correio, uma carta, enviada a mim, remetida por Argentino (Argentino adora escrever cartas e enviá-las pelo correio), diretamente de Blumenau. Subi correndo as escadas, entrei em casa, procurei estabanadamente meu pequeno punhal abridor de cartas, desisti de procurar o abridor de cartas (abridores de cartas se recusam a aparecer quando você os procura de forma estabanada) e rasguei o envelope com as mãos mesmo, botando-me a ler a missiva.
Já nas primeiras linhas ele explicava que decidira se mudar para Blumenau depois que lera uma reportagem informando que aquela é a cidade onde a população tem a maior expectativa de vida do país. Como Argentino planeja viver muito, tomou a decisão de aumentar suas chances de longevidade indo morar lá. Não me informou antes porque supunha que eu acharia aquilo tudo uma bobajada sem tamanho.

De fato, Argentino me conhece melhor do que eu a ele...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2013)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A noite da sardinha

“Tó, a janta hoje é apenas isso”, disse eu noite dessas, arremessando ao pratinho da esposa recém chegada do trabalho uma das duas unidades de sardinha que eu encontrara no interior da latinha que acabava de abrir. Eu estava exausto ao final daquele dia, o corpo moído, a mente esgotada, a alma flácida, o ânimo zerado. Em condições assim, sei por experiência própria, deve-se evitar botar-se a cozinhar. Corre-se o risco de o risoto sair murcho, os medalhões resultarem empedrados, a sopa mostrar-se turva, o caldo entornar, a lentilha flambar e a fome ficar crônica.
Sob essas condições anormais de temperatura e pressão, o melhor mesmo é partir para os enlatados, que oferecem solução rápida e fácil para uma demanda que, a bem da verdade, é básica e simples: saciar a fome. Minha esposa fitou desolada o magro pratinho adornado com aquela fatia gorducha e decapitada de peixinho em conserva e não falou nada, enquanto eu sentenciava: “Cada um faz como quer”. Virei as costas e pus-me a esmagar minha sardinha com o garfo, misturando na piscosa papa duas generosas colheradas de maionese e não demorei mais do que um minuto e meio para, sentado no sofá defronte à tevê, resolver aquilo tudo assistindo a um capítulo de “Saramandaia”.
A esposa, no entanto, seguia na cozinha, de onde me chegavam barulhos. “Mas que diabos está fazendo?”, pensei, lambendo o garfo ensardinhado. Logo surgiu ela, empunhando no prato um vistoso sanduíche, dentro do qual a antes solitária sardinha refestelava-se em meio a folhas de rúcula, pedacinhos de queijo gran padano picados, uma fatia de tomate, folhinhas decorativas de salsa, listras de catchup e mostarda, tudo aquilo prensado na sanduicheira, o que fazia exalar aquele aroma quentinho típico das gostosuras que estão prestes a nos acarinhar o estômago vazio.

Minha boca encheu-se de água, para a alegria do último naco de sardinha que nela ainda flanava. Acostumada aos meus manjares diários de final de jornada, minha esposa não sucumbiu à minha desinspiração culinária frente ao cansaço daquela noite e produziu para ela uma atração culinária decorrente da criatividade. “Cada um faz como quer”, disse ela, usando a boca para fazer três coisas ao mesmo tempo (habilidade tipicamente feminina): falar, dar a primeira mordida e abrir um risinho irônico.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 9 de agosto de 2013)

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Coringa na manga

Já virou chacota na família de minha esposa a minha teima em não conseguir aprender as regras do jogo de bisca. Mais do que chacota, virou folclore em toda a cidade de Uvanova o fato de “o jornalista, o escritor” não ter jeito de meter na cachola as regrinhas de um dos jogos de cartas mais populares e tradicionais entre os descendentes de imigrantes italianos que povoam a Serra.
 “Mas que coisa, olha só, ele não aprende mesmo”, cochicham em alto e bom som entre si os tios e primos que se acotovelam ao redor da mesa do porão sobre a qual quatro de nós empunham as cartas e vamos jogando umas em cima das outras até que de repente um mais atilado arremata todo o monte de descartes gritando alguma coisa em italiano que eu obviamente não entendo, ao passo em que meu parceiro de dupla (o sogro, o cunhado, a tia, o primo) me fuzila com os olhos e de novo me repreende pela burrada que eu nem imagino como cometi, se na rodada anterior o ás de paus não valia nada e agora ele é o “cargueiro”, e tendo feito o que eu fiz ou deixado de fazer o que eu não fiz coloquei tudo a perder, porco cane!
Para sorte minha e para a manutenção da harmonia familiar, logo surge outro primo/tio/amigo/agregado disposto a assumir o meu lugar no jogo, com o que imediatamente concordam todos os demais jogadores e seguem a partida enquanto me consolo a um canto enchendo meu copo de vinho e mordendo um grostoli, atividades em que me saio bem melhor do que na bisca.
Eu não comento com ninguém, mas o fato é que, ali no cantinho, escorado em uma pipa, mergulhando grostoli no copo de vinho, reitero minha certeza de que esse jogo, a bem da verdade, não possui regra nenhuma. Cada um faz o que lhe dá na telha e os outros vão acompanhando até que um deles, mais rápido, faz uma jogada incisiva e grita “ganhei”, recolhendo as cartas e contando os pontos a seu bel prazer sob o olhar resignado dos demais, que farão a mesma coisa na rodada seguinte, sem que ninguém os conteste. Contestar seria correr o risco de receber uma reprimenda sobre as regras, que nunca vem porque na verdade ninguém as conhece, mas nenhum deles ousa admitir. A mim, o que falta é a manha e o vocabulário que me permitiriam enfrentá-los de igual para igual.

Assim, deixo-os irem jogando e eu é que não vou externar essa minha certeza. Vai que me proíbam o acesso ao vinho e aos grostolis e prá baúco eu também não sirvo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2013)

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Lupas a perigo

Sempre fico triste quando o tema em pauta é “profissões em vias de extinção”. Pensar no possível desaparecimento dos alfaiates, por exemplo, é algo que me mete em uma nostalgia profunda, mesmo tendo conhecido poucos alfaiates e raramente ter necessitado dos préstimos deles. Os sapateiros vão rareando porque o pessoal tem optado por comprar sapato novo e meter fora aquele no qual um preguinho bem pregado, uma colinha na sola e uma lustrada, poderiam deixá-lo como novo e pronto para nos acompanhar por outras várias milhas. Mesma coisa se dá em relação às costureiras, que saem de cena para dar lugar às estilistas de moda; e com os barbeiros, que bravamente ainda resistem ao avanço dos cabeleireiros.
E nada contra cabeleireiros e estilistas de moda. Trata-se da evolução da sociedade, que vai se transformando e legando ao passado atividades como o picolezeiro, o engraxate, os homens da carrocinha (para a alegria da cachorrada), o tintureiro, o afiador de facas ambulante, as mulheres da Avon que batiam de porta em porta, o encadernador de livros, o fabricante de bolinhas de gude, o vendedor de carapinha.
Tudo isso me dá a tristeza da sensação de perda. De perda sociológica, humana, urbana, poética, não sei explicar direito. É quando me acorre à mente outra profissão que pode estar com os dias contados e poucos estão se dando por conta. Trata-se daquela exercida por figuras famosas, da vida real ou ficcional, como Hercules Poirot, Ed Mort, o Grande Polegar, Sherlock Holmes, Mickey Mouse, Inspetor Clouseau, Bechara Jalkh, Jules Maigret, Bustos Domecq, Kojak, Auguste Dupin, Salsicha, Scooby-Doo, Dick Tracy, Dupont & Dupond, as Panteras Sabrina Duncan, Kelly Garrett e Jill Munroe e tantos outros.
Para quem ainda não matou a elementar charada, trata-se dos detetives, meu caro leitor. São eles que estão com os dias contados, correndo o risco de se tornarem obsoletos, com seus préstimos inúteis, em função do assentamento das tais redes sociais no cotidiano das pessoas. Quer saber onde anda fulano? O que ele anda fazendo? Com quem se relaciona? O que pensa? O que come? Aonde vai no verão? Para que um detetive? Basta uma conexão minimamente boa, um perfil na rede e um clique no mouse. Adeus lupas e cachimbos, afinal, ninguém mais faz questão de passar despercebido...


 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de agosto de 2013)

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Bon appétit, inimigo!

Abri o site da versão eletrônica daquele jornal que sempre leio e estava ali a chamada, ao pé da tela: “Cozinhe para seus inimigos”. Uma fotinho exibindo um prato fumegante com algum repasto certamente delicioso ilustrava o link, que dava acesso a uma das páginas de gastronomia que costumo visitar em busca de receitas que depois tento reproduzir em casa para a esposa, algumas vezes com relativo sucesso.
“Cozinhe para seus inimigos”... Tirei o olhar da tela e fiquei fitando o vazio, o queixo erguido, o olhar passeando pelos cantos do teto, de onde uma teia de aranha balouçava desdenhosamente, colocando em xeque minhas habilidades de faxineiro, uma vez que ontem mesmo eu metera a vassoura por ali e até então tudo ia bem, mas depois eu vejo isso. Mantive em suspenso minha intenção de clicar logo no link e conferir a matéria gastronômica brotada da surpreendente mente do jornalista que bolara aquela pauta inusitada, sugerindo convidar os inimigos para um banquete em sua casa, preparado por você, num gesto de papal e franciscana boa-vontade como jamais se ousara imaginar antes da mais recente visita do sumo pontífice ao nosso país.
“Pois sim”, fiquei matutando... “Cozinhar para meus inimigos”... A proposta soava como uma admoestação bíblica e imaginei Jesus Cristo convidando Pôncio Pilatos, Judas, Caifás, Satanás e outros vilões para cearem com ele um jantar fraterno regado a pão e vinho. Depois criei na mente a imagem de Barak Obama recebendo nos salões ovais da Casa Branca Saddam Hussein, Osama Bin Laden, Muamar Kadafi, o Aiatolá Khomeini e Fidel Castro para juntos destroçarem amigavelmente um peru de Dia de Ação de Graças, conclamando à paz mundial.
De minha parte, tive dificuldade em inventar inimigos para comigo apreciarem algo advindo de minhas panelas, e priorizei o enfoque de meus devaneios em direção ao cardápio que eu organizaria para a especial ocasião. Será que meus supostos inimigos apreciariam trufas gratinadas ao mel? Ou um gaspacho com mix de folhas verdes? Um suflê de cenouras? Um modesto ratatouille?
Súbito, saí do devaneio e pousei de novo o olhar sobre a chamada na tela, disposto a ler a matéria: “Cozinhe para seus amigos”. Epa! “Amigos”, não “inimigos”! Meus olhos haviam lido errado e a chamada, na verdade, era prá lá de trivial. E eu aqui, já cozinhando crônicas...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de agosto de 2013)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A bolsa e a vida

Minha esposa para de repente no corredor do shopping e larga a mão da minha, ato que me deixa por alguns segundos andando e falando sozinho. Eu me viro e vejo-a ali, o olhar aparvalhado, a boca semiaberta, os ombros caídos, naquela típica postura de quem está surpreso a ponto de perder as forças. Ela me olha fixamente e balbucia: “repete o que você acabou de falar”.
(Intervenção providencial para evitar mal-entedidos: não, leitores, não se trata de ceninha de casal em público, muito pelo contrário, como já verão)
“Repete o que você acabou de dizer”, insiste ela, modificando apenas o verbo final da frase. Eu puxo da memória o fio da meada e profiro de novo, claro que não literalmente, aquilo que acabara de dizer, que fora algo como: “bah, amor, você não acha que está na hora de trocar essa sua bolsa? Essa aí está bem velhinha, parece um saco. Tem tantas bolsas bonitas circulando por aí, você merece uma melhorzinha, não acha? Quem sabe aproveitamos que estamos aqui e compramos outra?”. Foi algo meio assim.
Ela não podia acreditar que tinha ouvido aquilo sair de minha boca. Logo eu, sempre no mundo da lua (das luas de Júpiter, ressalte-se); logo eu, sempre desligado dessas coisas (e por “essas coisas” entenda-se todas aquelas coisas sobre as quais nós homens somos desligados e as mulheres sabem muito bem do que se tratam); logo eu, que sou capaz de passar 16 anos usando a mesma calça a não ser que haja uma mulher ao meu lado evitando diariamente que minha porção cro-magnon saia do armário e prepondere. Logo eu, tendo um ataque súbito de sensibilidade, percebendo que ela deveria trocar de bolsa! Por um momento ela temeu ter se enganado e trocado de marido.

Mas não, era eu mesmo, o que ela certificou apalpando meu ombro e meus bolsos, nos quais obviamente não havia dinheiro para concretizar a troca da tal bolsa, mas, arrá, havia o cartão de crédito! Aproveitei a perplexidade dela e puxei-a para dentro da loja de bolsas mais próxima. Só que era “aquela” loja, meu caro, “aquela”, sabe? Quem manda ser bem-intencionado mas desinformado (para não dizer burro mesmo) quanto ao preço “daquelas” bolsas? Saímos dali de mãos e bolsa velha abanando. Mas, a julgar pelo ar pensativo dela na volta para casa, com um meio-sorriso no rosto, acho que ganhei o dia como se tivesse mandado flores...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2013)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A frase mágica

Vem comigo, imagina a cena. Você está solteiro(a) e em busca de um(a) parceiro(a). Aí você encontra alguém que parece ser uma pessoa bacana, legal, atraente, simpática e mais aquela fila toda de atributos que convencem você a arriscar convidar a tal pessoa para um jantar, a fim de se conhecerem melhor e blá-blá-blá e bli-bli-bli e até, quem sabe, humm, pois bem, vamos ver no que vai dar. Ou não.
Aí você joga as fichas, faz o convite, escolhe um restaurante bacana e a pessoa topa no ato! Opa, bom sinal, a coisa começa promissora. Se você é homem, você se prontifica a pegá-la em casa; se é mulher, espera e aceita que ele o pegue. Se forem homens e mulheres descolados, vão cada um com seu carro e se encontram lá; se forem moderninhos, ele não tem nada contra que ela passe lá e o pegue e, se forem dois estudantes pés-rapados, cada um vai com seu camelo, como na canção aquela. E se forem dois homens, cada um faz como quiser, e, se forem duas mulheres, também, fica por conta de cada uma, que crônica e cronista são desprovidos de preconceitos.
Aí então você já está lá no tal restaurante (ou bar, boteco, lancheria, o que for, porque também ninguém precisa comprometer o salário do mês com essa nossa história aqui), na companhia da tal pessoa-tudo-de-bom, quando ela faz uma observação que o(a) deixa encantado(a). Ela (a pessoa) profere a frase que age como uma chave mágica para flechar o seu coração e fazer você se apaixonar perdidamente por ela (pela pessoa), que acaba de comprovar que é, sim, a pessoa da sua vida.

E o que ela diz? Ora, simples. Ela coloca os cotovelos sobre a mesa, entrecruza os dedos das duas mãos, apoia sobre elas o queixo e, em meio a um doce sorriso, olhando você direto nos olhos, a cabeça meio inclinada, profere: “Fale-me sobre você”. Ora, isso sim, é que é encantador. Ela quer que você discorra justamente sobre o assunto que você mais gosta de falar: você! Você mesmo! E, claro, você não perde a deixa e sai falando, falando, porque você isso, você aquilo, você aquela outra coisa... Ah, mas que pessoa maravilhosa essa, para ter ao seu lado, se tudo o que ela quiser é que você possa exibir a ela o quão interessante, maravilhoso, magnífico e cativante é você mesmo, não é mesmo? Que raridade! Não a deixe escapar! Fisgue essa pessoa e viva feliz para sempre. Você, né... 
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2013)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A árvore era eu

Você já passou pela experiência de ter de desempenhar o papel de árvore no teatrinho da escola? Eu já. Foi horrível. Eu tinha uns sete ou oito anos, estava nas primeiras séries do (então) primeiro grau e a professora inventou de organizar um teatrinho como forma de ajudar no processo de desinibição da gurizada. Eu, que era um bosque de timidez, acabei naturalmente escalado para ser uma das árvores da floresta encantada, papel que, aos olhos da profe e de toda a turma, parecia me cair como uma luva.
Como uma luva de ferro, diga-se de passagem, pois fui um desastre no papel de árvore do bosque encantado. Éramos umas dez ou doze árvores naquele bosque, afinal, era preciso haver papeis para toda a turma e nem todos podiam ser o Príncipe ou a Bela Adormecida (agora fico pensando que rumo será que tomou na vida o Anderson, a quem tocou o papel de sapo?). Só que justamente a minha árvore tinha de falar algumas frases, pois, sabe-se lá por que astúcias do destino, coube a mim encarnar a líder do arvoredo mágico.
E quem disse que, no dia da apresentação, eu conseguia lembrar a fala, que nada mais era do que algo do tipo “Siga por esta estrada de tijolinhos, ó Príncipe, e ao final dela encontrarás o que procura”. Até que me vinham à mente as imagens da estrada de tijolinhos que uma cartolina amarela estendida no chão da sala imitava e a necessidade de o Príncipe (na verdade, o Eudes) passar por ela, mas as palavras não me vinham. Fosse eu um ator nato, teria me desvencilhado da sinuca mandando a porcaria daquele príncipe andar logo pela cartolina e fim de papo, usando as minhas próprias palavras (“pisa ali na cartolina, ó, tchê, e te some”), mas não, eu me atinha à decoreba que, tal qual a tabuada do sete, teimava em trair a minha memória.
Débora, a coleguinha árvore mais próxima de mim, salvou a parada e a peça, dizendo as minhas falas, que ela decorara melhor do que eu. Morreu ali na casca a minha promissora carreira hollywoodiana. Isso que, naquela época, eu já trazia na bagagem o sucesso de algumas performances desinibidas feitas anos antes, no jardim da infância, ao lado de meu primo Guilherme, quando ambos entretínhamos colegas e “tias” imitando o Gordo e o Magro. Detalhe: eu fazia o Gordo. De fato, algo não estava encaixando desde o início nessa coisa de dramaturgia pro meu lado. Quem disse que o destino erra sempre?

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de agosto de 2013)