sexta-feira, 27 de setembro de 2013

No frigir dos ovos

Dia desses, flagrei-me sem ovos. Horrível isso, de ver-se desprovido de ovos. Abri a geladeira e a crua realidade se descortinava ali dentro: nem um ovinho sequer, nem mesmo um pequeninho de codorna, para salvar a pátria.
Esse tipo de situação é impensável na vida de um homem que se preze: estar sem ovos. Impede que você salve o jantar logo mais à noite, quando a esposa chega do trabalho, produzindo uma omelete (que ela devora faceira, chamando de fortaia), ou surpreendendo-a com panquecas recheadas de delícias, ou ainda, se a inspiração for do tamanho da fome, com um elegante crepe (mas quando você está sem ovos, até mesmo um singelo ovinho frito figura como a salvação da lavoura).
Isso não podia continuar assim, de forma alguma. Onde já se viu, ficar sem ovos! Suspendi a produção do trabalho que estava em curso, peguei o carro e fui até o mercadinho ali perto de casa, onde o casal de proprietários me conhece e a simpatia está na alma do negócio, motivo principal que os faz terem a mim como cliente, especialmente nesses momentos cruciais que exigem solução rápida. “Boa tarde, Seu Fulano, tem ovos?”, já entrei, perguntando. Diferentemente de mim, o dono do mercado tinha, sim, ovos, o que revelou-se um verdadeiro alento.
Fui lá no canto que ele me indicou com o dedo e pus-me a escolher belos ovos brancos de galinha, colocando cuidadosamente um por um no saquinho plástico, pois que ali os ovos são vendidos a granel e você pode comprar até números ímpares de ovos, ao invés das restritivas caixinhas de sempre, com seis ou 12. Eu queria cinco ovos, e fui pondo ali no saquinho, um ovo, dois ovos, três ovos, quatro pletch! O quarto ovo sei lá o que deu nele, mas aproveitou um segundo de distração minha e saltou do gancho de meus dedos com o qual eu o sustentava, rodopiando no ar e indo se estatelar contra seus demais irmãos que tranquilamente se acomodavam no fundo do saquinho.

Quebrei a ovaiada toda e fiquei ali, com cara de tacho vazio. Felizmente, o dono do mercadinho, revelando-se um expert em ovos e em fidelizar clientes, saiu de trás do balcão sorrindo, disse que aquilo não era nada, pegou para mim outros cinco ovos e acomodou-os intactos em outro saquinho, sem nem querer saber de me cobrar pela omelete instantânea que eu me pusera a fazer ali na sua venda. De noite, vocês tinham de ver o dó que me dava de quebrá-los para a fortaia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de setembro de 2013)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Ô de baixo!

Sempre me perguntava a razão que faz os trabalhadores da construção civil falarem tão alto uns com os outros ao longo dos dias em que estão envolvidos na tarefa de erguer novos edifícios e residências nessa nossa pujante Caxias do Sul, há anos transformada em um imenso canteiro de obras. Além do ruído intenso proveniente dos afazeres típicos decorrentes da construção (você não martela um tijolo de mansinho e nem corta chapas de aço com o poder silencioso de sua mente), existe a conversação entre os pedreiros e mestres-de-obras, invariavelmente entabulada aos brados retumbantes, a ecoarem por entre os ambientes de cimento ainda vazios de habitantes. Por quê?
Ora, basta pensar um pouco para decifrar o enigma. Eles falam alto para serem ouvidos uns pelos outros, ora. Como fazer Pedro, que está a erguer a parede de um banheiro no quinto andar, para se comunicar com Wellington, que passa massa corrida nas paredes do primeiro pavimento, pedindo a ele que, quando subir, traga junto a espátula dourada, se não for por meio da elevação do tom de voz às alturas? E como comentar dali do terraço os lances bola-murcha e bola-cheia dos jogos do final de semana quando o Robinson atulha o carrinho-de-mão com sacos de cimento lá no térreo, o Anderson descarrega a areia que chegou de caminhão ali na esquina e o Jeferson alinha uma parede no sétimo, senão aos gritos?
A construção inteira é o escritório deles. Estivessem todos ao mesmo tempo realizando tarefas na suíte do casal na cobertura, ninguém gritaria, mas não é assim que a coisa funciona. E querer que não se comuniquem justamente em nossa tão exaltada Era das Comunicações seria um contrassenso repressivo démodé, deixemos disso.

Eu sou do tempo em que as redações de jornais, repletas de máquinas de escrever, aparelhos de fax e de telex e telefones barulhentos, faziam com que a jornalistada passasse falando alto entre si, com os editores, com os revisores, com os diagramadores e repórteres, e estes com suas fontes, e mesmo assim escrevíamos e nos concentrávamos. A informatização e o advento dos fones de ouvido transformaram as redações em ambientes sisudos, silenciosos e insípidos, iguais a salas de espera. Espero que jamais o mesmo aconteça nos canteiros de obras, nos quais a vida humana ainda se faz notar por meio da palavra. Em alto e bom som.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de setembro de 2013)

domingo, 15 de setembro de 2013

Sinuca tecnológica

Tá, e agora? O leitor de textos de meu computador desconfigurou, não consigo abrir os arquivos já escritos e tampouco produzir textos novos. E não são poucos os textos antigos que preciso abrir para pesquisar ou para dar sequência ao trabalho, e também não são poucos aqueles que preciso escrever hoje para atender às demandas de meu ofício, como esta crônica aqui do Pioneiro. O que se faz numa hora dessas?
Primeiro, grita-se. Pode ser mentalmente, mesmo, afinal, não vale a pena passar recibo de louco a toda a vizinhança e atormentar a esposa que lê tranquila o jornal no andar de baixo. Grita-se contra a tecnologia moderna, contra a invasão da informática no nosso cotidiano, contra a ditadura dos computadores, contra os políticos corruptos (que sempre é saudável aproveitar para, já que se está gritando mesmo, incluir os políticos corruptos na jogada), contra a alta do preço do tomate e os buracos nas estradas.
Desferidos os devidos gritos mentais, pode-se passar para a fase dois, que é a postura da vítima. “Por que isso acontece comigo? Por que eu? Por que justo hoje? Eu não mereço. Tenho tanta coisa para fazer”. Depois, recomenda-se entrar logo na etapa da nostalgia pelos velhos tempos, para aplacar um pouco o espírito. Lembrar das velhas e boas máquinas de escrever (alternativa disponível apenas para quem tem mais de 35 anos de idade), que, quando davam xabu, bastava trocar o rolo de fita e seguir esmurrando as teclas e parindo textos e mais textos.

Como nada disso resolve coisa alguma, passadas todas essas etapas, o melhor é chamar um técnico (recomendável), ou fuçar no computador para tentar resolver a coisa por conta (alto risco) ou escrever tudo a mão e enviar por pombo-correio para a redação do Pioneiro (funcionou, não?). Porém, desesperar, jamais.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de setembro de 2013)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Beijo nas Alturas


Entro no elevador no subsolo das garagens, preparado para um longo trajeto até o décimo-primeiro andar. Não durará mais do que 40 segundos, eu sei, mas sabe como são esses elevadores: cubículos estreitos, lacrados, desagradáveis, parece que concebidos justamente para que não despertem em ninguém a mais remota intenção de permanecer ali dentro uma fração de segundo sequer além do necessário. Por isso, a vontade, sempre, de que a viagem seja curta, sem paradas no meio do caminho.
Mas pronto. É só pensar nisso que o danado estaciona já no térreo, para receber vizinhos rumo a seus aposentos. As portas então se abrem e revelam as identidades de quem me fará companhia ao longo dos próximos instantes: trata-se daquele jovem casal do sexto andar, acompanhado pelo filhinho de cerca de dois anos de idade, que entra alegremente acavalado sobre o pescoço do pai. “Oi, como vão” daqui; “olá, tudo bem” de lá e eles vão entrando, ela com as sacolas de compras, ele fazendo malabarismos com o garoto, que lhe escala o corpo a ponto de ficar de cabeça para baixo um instante, a dar gargalhadas, eu segurando a porta aberta enquanto eles se acomodam, e vamos em frente.
O elevador retoma seu movimento metálico para cima, a suavidade intercalada com alguns estalos sempre perturbadores, e o silêncio entre os adultos se instala como de praxe nesses ambientes, apenas quebrado pela festa que o menino faz com o pai. Recebe mordidinhas na barriga e gargalha, olhando para mim em busca de um sorriso conivente que sua inocência induz a almejar. Sorrio-lhe de volta, embalado pela sua alegria infantil e desmedida. Desnecessário haver medidas para a alegria quando se é criança feliz em família, voltando para casa à noite com os pais, brincando dentro de um elevador na presença de um estranho.
A caixa semovente estaciona no sexto andar e abrem-se automaticamente as automáticas portas, convidando-os a saírem. Ela sai primeiro, com as sacolas, seguida pelo marido, que se despede de mim com um “boa noite” e diz ao filho: “dá tchau para o titio”. Ato contínuo, o menino leva a mãozinha à boca, tasca um beijo e o atira para mim, acertando em cheio minha alma, que não resiste e se debulha em uma gargalhada infantil como há tempos eu não dava. Espontaneidade de criança é coisa altamente contagiosa.
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de setembro de 2013)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Marte é logo ali

Pois é, o pessoal agora quer ir morar em Marte. Uma empresa espacial holandesa abriu cadastro para elencar interessados do mundo inteiro em se transformarem em colonizadores de nosso vizinho planeta rubro. A ideia é organizarem expedições interplanetárias que levarão os cosmonautas até lá em uma viagem de sete meses de duração. E só de ida. Ou seja, vão e nunca mais voltam a pisar na Terra natal.
Mais ou menos parecido com a situação que viveram, mais de um século atrás, os imigrantes europeus que largaram suas vidas no Velho Continente, se enfiaram em navios por alto-mar em longas viagens e vieram colonizar a América, jamais voltando a contatar seus lugares de origem, em uma época em que não existiam facilidades como telefone, internet, celular, ipad, facebook, Skype, essas tralhas. De qualquer forma, aqueles imigrantes permaneceram na superfície de nosso planeta, por mais que tenham se deslocado. Já esses neo-migrantes almejam se tornar extraterrestres de carteirinha, os primeiros que teremos certeza de que existem. Ousados, não?
Se forem mesmo para lá, se tornarão ETs por adoção e finalmente passaremos a ter certeza de que haverá vida em outro planeta. Se inteligente, não sei, mas vida. E os filhos deles se transformarão nos primeiros marcianos de verdade. Quando a gente pensa que Marte (a julgar pelos dados enviados de lá pelas sondas lançadas por nós de cá) é uma terra inóspita, quente pra chuchu, desértica, sem água (há controvérsias), sem vegetação, sem vida animal, sem shopping centers, sem rede wi-fi, sem estádios de futebol, sem chuva e nem neve, sem novela das nove, sem Carol Portaluppi, sem farmácias... é de impressionar o fato de mais de 200 mil pessoas terem se inscrito como voluntárias (brasileiros, inclusive).

Bom, mas pensando bem, também vão escapar do trânsito engarrafento, dos buracos nas estradas (lá, crateras não são eufemismos), da corrupção generalizada, dos alarmes que disparam de madrugada, das narrações do Galvão Bueno, das filas nos supermercados... Fora uma que outra chuvinha de meteoros e a possibilidade de crescerem antenas e de se ficar verde (marcianices, sabes?), começo a achar que poderá mesmo haver mais ganhos do que perdas. Não fosse esse meu medo de alturas, até que me habilitava...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de setembro de 2013)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Tá, e a neve?


Encontrei parentes e amigos no final de semana passado em minha terra natal, Ijuí, distante 400 quilômetros de Caxias do Sul. A sensação do encontro eram as fotos e filminhos que fizemos aqui, pouco mais de duas semanas atrás, quando a Serra foi brindada com uma das mais significativas nevadas de sua história recente.
Os telhados branquinhos, as calçadas congeladas, as copas das árvores nas ruas parecendo um desfile de pinheiros de natal que só se vê em filmes europeus e norte-americanos. As pessoas encasacadas, enluvadas, entoucadas e enrodilhadas em cachecóis a construir bonecos de neve na frente de suas casas e a brincar no alvo presente da natureza, esquecendo o frio que nos encarangava as almas.
Pois é, isso tudo há tão pouco tempo, e já aparentemente tão distante em nossas memórias, especialmente nesses primeiros dias de setembro que agora nos empurram para o extremo oposto e nos fazem pensar em camelos cruzando o deserto do Saara debaixo de um sol esturricante. Olho para fora da janela e vejo um céu límpido, azul, pontilhado de raras nuvens. O termômetro da sala bate na casa dos 24 graus centígrados (positivos, né), e parece desconfortável ao lado da grossa jaqueta que ainda pende esquecida no encosto da poltrona, pronta para ser vestida a qualquer momento a fim de enfrentar o frio, a chuva, o vento, o inverno, que até ontem ainda nos fazia reclamar e escrever crônicas evocando a visita do sol. Eis ele aí, pois, a pedidos.
Saltamos de um frio de fazer gemer urso polar em uma semana para esses calores de derreter dromedário poucos dias depois, sem que haja tempo para uma transição paulatina que nos permita irmos saindo dumas e entrado noutras com mais vagar. Até o clima parece ter decidido entrar em sintonia com esses tempos modernos criados pela sociedade, nos quais a correria, a transição ultrarrápida, a impermanência das coisas se transforma em regra geral. Neve de madrugada, eclipse de lua com Vênus de noite, calores desertificantes logo ali adiante, chuva e mais chuva daqui a pouco... Todas as opções de clima, temperatura e pressão disponíveis no menu, a fim de satisfazer a todos os gostos. Até a meteorologia parece estar ingressando na era da customização de serviços.

Depois estranham quando uns tomam chimarrão em trajes de praia em plena neve. Por pouco, não fui um deles...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de setembro de 2013)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Reflexão eclipsada

Existem dois tipos de finais de semana: aqueles em que você só descansa e aqueles nos quais você se cansa. Em sendo finais de semana, claro que, em essência, são sempre prazerosos, mas o último enquadrou-se, para mim, na segunda categoria, uma vez que foi composto por uma agenda intensa de atividades que incluíam duas longas viagens de automóvel pelas nossas selvagens estradas, pouco sono, uma festa de aniversário, o revisitar de parentes, almoços e jantares compartilhados e assim por diante.
Fui conseguir baixar a bola, relaxar e descansar mesmo somente a partir do entardecer de domingo, quando enfim pude calçar as chinelas, lançar-me ao sofá da sala, esticar as pernas para cima do pufe e começar a folhear os jornais sabatinos e dominicais. Lá pelas tantas deparei com uma notinha que me chamou a atenção. Dali a poucos minutos, por volta das 19h, seria possível visualizar no céu, na altura do poente, um raro fenômeno astronômico: a lua eclipsaria, durante alguns minutos, o planeta Vênus, oferecendo um espetáculo bonito e único caso a noite estivesse bela e clara.
Larguei o jornal, ejetei-me do sofá e dirigi-me à janela da sala para constatar se a noite estava bela e clara. Pois estava, e arrebanhei a família para descermos do prédio e irmos para a calçada a fim de observar o eclipse diferente. Dito e feito, lá estava a lua, no formato crescente, uma unha de luz rasgando o escuro do céu, sendo tocada de leve em uma das pontas pelo brilho arredondado e intenso de Vênus, como um diamante a reluzir na superfície de uma aliança.
Em silêncio, ficamos contemplando aquilo, cada um imerso em seus próprios pensamentos e divagando seus conceitos de poesia, quando alguém me perguntou quantos planetas existiam no nosso sistema solar, além daquele Vênus que ali observávamos a distâncias astronômicas e da Terra, na qual pisávamos. Falei então dos oito planetas e da tristeza de os astrônomos terem, poucos anos atrás, demitido Plutão, o último da fila, da lista oficial de planetas, reclassificando-o como um reles planeta-anão.

Terminei o domingo entristecido pela sina de Plutão, que, para mim, segue integrando minha listagem clássica dos planetas de nosso sistema. Afinal, Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno já estavam acostumados com a vizinhança dele. A gente não deve se desfazer assim tão fácil de um amigo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de setembro de 2013)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O segredo das coisas

Há alguma coisa em certas coisas que faz com que essas coisas sejam coisas diferenciadas do restante das coisas. Se você se der ao trabalho de ler novamente a frase de abertura desta crônica, perceberá que, dessa vez, estou coberto de razão. Mas vou dar um exemplo para ser mais claro e consolidar essa minha teoria filosófica, fruto de anos de observação e reflexão.
Tomemos a questão dos pastéis. A princípio, tendemos a crer que pastéis são pastéis e pronto. Mudam os recheios, certo, especialmente nos dias de hoje, em que tudo parece ser válido para atender aos gostos da freguesia, por mais heréticos que possam ser (há pastéis de anchovas, acreditem), porém, para efeitos de demonstração aqui nesta crônica, quando falarmos em pastéis estaremos nos delimitado aos tradicionais acepipes empanturrados com um tradicional guisado mesmo, combinado? Então: os pastéis. Pastéis são pastéis, porém, você haverá de concordar em discordar comigo, dizendo: “sim, pastéis são pastéis, porém, os pastéis da Tia Rosvilda são os melhores do mundo”. Eu não conheço os pastéis feitos pela sua Tia Rosvilda, mas aceito como válida sua observação porque ela contém a verdade universal que desejo aqui externar. Pastéis são pastéis, coisas são coisas, mas há alguma coisa nos pastéis da sua Tia Rosvilda que...
O que será essa coisa que faz com que o pastel dela, apesar de ser pastel, e de guisado, como tantos outros ao redor do mundo e das rodoviárias, que faz dele um diferencial entre a massa ignota dos pastéis universais? Onde reside o segredo da diferença? Na forma cadenciada de Tia Rosvilda mexer o guisado na panela escutando Odair José no radinho de pilha vermelho? Na saudade de um amor secreto escondido em seu coração, despertada sempre que faz pastéis, quitute que costumava compartilhar com aquele lindo mancebo nos anos de sua distante juventude? Você não sabe, eu não sei, mas algo há nos pastéis da Tia Rosvilda que os fazem ser coisa diferente de todas as coisas, sendo aparentemente a mesma coisa.

Talvez também não haja coisa alguma nos pastéis da Tia Rosvilda e o segredo da coisa resida dentro de você mesmo, na forma como trabalha internamente a poesia de seu universo particular, conferindo significados especiais às coisas aparentemente banais que compõem a sua existência. Mas agora migramos dos pastéis para a filosofia, o que desperta minha fome. Preciso urgentemente de um pastel da lancheria de Espumoso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de setembro de 2013)

Sem pé nem cabeça

Não sei explicar a razão disso, mas às vezes dou para encasquetar com a falta de sentido de algumas expressões que a gente utiliza no dia a dia, sem nunca atentar para o fato de que estamos a repetir sandices. “O cair da noite”, por exemplo. A noite não cai, né, gente. Ela vem chegando de mansinho e vai se debruçando como um véu sobre a paisagem, abraçando primeiro o topo dos edifícios, depois tocando o telhado das casas, logo invadindo o passeio, acionando o acendimento automático das luzes nos postes das ruas, escurando as vielas, ensombrecendo as salas e os corredores. As minhas noites faz tempo que não caem. Eu as amparo no colo e as acolho. As noites, em mim, se deitam.
“Tomar sorvete”. Mas quem é que toma sorvete? Sorvete se come. Ele não é líquido. Quer dizer, se você ficar segurando a casquinha abobadamente por mais do que cinco minutos sob um sol ardente (“sol ardente”, tudo bem, mas “escaldante” já gera controvérsias) sem tascar-lhe uma lambida, ele obviamente que vai derreter-se todo sobre seus dedos e você terá de sorvê-lo se não quiser ficar no prejuízo, mas aí já é babaquice sua e nada tenho a ver com isso. Mas eu como sorvete. Uso uma pazinha para isso. Se fosse tomá-lo, eu o faria com um canudinho (milk shake não conta, é sorvete derretido, tá?). Não mastigo, mas como. Como sorvete; não tomo sorvete.
E “pegar no sono”? Alguém realmente pega no sono? Minha mulher capota no sofá defronte à televisão toda a noite depois de suas longas jornadas de trabalho, mas aí sim é que ela não pega nada, muito menos o sono. O sono vem vindo, vem vindo, se esgueira de mansinho por debaixo da porta da sala, passa por minhas pernas e zapt, captura-a e imediatamente a põe a dormir. Ela então é invadida pelo sono. Em se tratando de sono, a pessoa é o sujeito passivo da ação, e não o ativo. Ela é pega pelo, e não pega o, tá entendendo?
E me digam que lógica tem “fazer de conta”? “Ele fez de conta que escreveu uma crônica espertinha no jornal de hoje”. Ma, che, “fez de conta”, o quê! Alguém me explique o nexo que tem essa expressão, hein? E não me venham bater boca e dizer que já comecei esse texto me desdizendo ao afirmar que “dei para encasquetar”, porque se o sujeito encasqueta, ele encasqueta de graça, sem dar nada por isso. Agora que me dei por isso. Opa... outra!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de setembro de 2013)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O vampiro da festa

Certa vez, na minha adolescência, uma coleguinha de aula resolveu celebrar o aniversário de 15 anos promovendo em sua casa uma festa a fantasia. Esse tipo de acontecimento não era comum em Ijuí nos anos 1980 e a iniciativa dela causou alvoroço na cidade, a gurizada disputando convites e traficando influências para se aproximar rapidamente de seu círculo de amizades a ponto de conseguir ser admitido no evento. Posso estar inventando, afinal, sempre vale a máxima de que “se non é vero, é ben trovado”, mas, pelo que me lembre, saiu até notinha publicada no jornal da cidade.
Eu e minha irmã éramos amigos dela há muitos anos e figurávamos desde o início na lista de convidados, portanto, passamos ao largo desse estresse. De minha parte, dediquei-me à crucial tarefa de decidir qual seria o motivo de minha fantasia para a tal da festa. Pouco tempo antes eu já havia causado sensação no colégio durante uma atividade recreativa na qual fui fantasiado de Visconde de Sabugosa (eu era alto e magro que nem um palito, portanto, minha caracterização funcionou perfeitamente) e agora desejava repetir o feito, como forma de afirmação.
Decidi ir fantasiado de Conde Drácula. Vesti uma blusa colante preta de minha mãe, calças pretas, tênis Bamba pretos; transformei uma minissaia vermelha de minha irmã em capa; recortei em cartolina umas garras compridas azuis que fixei sobre minhas unhas com Durex; ataquei o estojo de maquiagem da mãe para produzir olheiras profundas com rímel e criar sobrancelhas hediondas; meti uma chapa de plástico de brinquedo com caninos pontiagudos e lá estava eu, o Conde Drakirstácula em pessoa!

Problema é que, na festa, decidi encarnar o personagem e agi o tempo todo de acordo com o que eu imaginava que seria o comportamento de um vampiro: fui sorrateiro, me esgueirei pelos cantos da casa, não comi nem bebi nada (só observava o pescoço alvo da Carin), não falei com ninguém, fiz cara de mau e ar blasé. Quando as meninas cruzavam perto, eu gesticulava a garra com unhas de cartolina e fazia “graur”. Resultado: até hoje não sei o sabor das guloseimas servidas e Carin passou a me olhar de maneira esquisita. Não vejo a hora de descontar isso tudo numa próxima festa a fantasia, em que irei transmudado em Dona Redonda, para tirar o atrasado e me atracar nos croquetes. Desde aquela vez, aprendi a levar as coisas um pouco menos a sério...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de setembro de 2013)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Amanhã fico bom

Quando eu era criança, acreditava piamente que meu avô materno era uma espécie de super-herói, invulnerável e imbatível. Eu escutava as histórias que ele contava e o enquadrava como um ser especial entre os personagens do mundo que aos poucos ia se abrindo aos meus olhos. Nesse aspecto, eu estava coberto de razão.
Certa feita, na fazenda que ele tinha no interior de São Borja, passou a manhã inteira serrando toras de madeira com a motosserra e só parou quando minha avó, por volta de onze horas, pediu que ele matasse um pato para ser transformado em almoço. Apressado, resolveu fazer o serviço utilizando um revólver calibre 22 (tenente reformado do exército, possui licença especial para porte de armas). Escolheu aquele aparentemente mais saboroso e fez a mira. Porém, as mãos tremiam devido ao esforço contínuo com a motosserra, e decidiu apoiar os braços na forquilha de uma árvore, envolvendo a arma com as duas mãos.
 Refez a mira no pato e puxou o gatilho. O som do disparo, no entanto, foi “plé” ao invés do esperado “bang”. E o pato, ao invés de cair estatelado, fez “quá” de susto e seguiu andando. No dedo esquerdo de meu avô, todo ensanguentado, alojara-se a bala. Sem querer, envolvera o cano da arma com os dedos da mão esquerda e acabara desferindo um tiro no próprio indicador. Entrou em casa apressado, sob os questionamentos de minha avó: “Cadê o pato?”. E respondeu: “Um deles está lá fora, o outro, aqui dentro”. Sem se abalar, pegou um facão, arrancou o projétil fora, passou alguma coisa no dedo (Merthiolate, Cobrina, Frixal?), tomou um gole de algo (Olina, Underberg?) e foi dormir “que amanhã estaria bom”. A mesma frase e o mesmo método eu sei que ele usou outra feita, quando tirava mel das caixas de abelhas e foi atacado pelos insetos, levando diversas ferroadas. “Vou dormir que amanhã estarei bom”, dizia.
Seguindo esse mantra, de alguma forma, completará 90 anos de vida no início da semana que vem. Não recomendo seguir à risca suas atitudes em casos como esses. Essa gente nascida há quase um século era fabricada em moldes menos frágeis e delicados do que os nossos atuais. Mas também vinham imbuídos de uma maneira menos complicada de se relacionar com a vida. Essa, sim, é a parte que deveríamos aprender a seguir com mais atenção.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2013)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Um joelho e duas luvas

“Pois, então, me traga dois niples de cobre de meia polegada, duas luvas de quarenta para esgoto e dois joelhos meia polegada, de cobre e com rosca interna”. Eram essas as derradeiras peças que ainda faltava providenciar para que o encanador pudesse finalmente concluir o processo de instalação das novas torneiras adquiridas para a casa. Com a chave do carro em punho, pronto para decolar rumo à loja de materiais de construção a duas quadras dali, flagrei-me desprovido de caneta e papel para anotar as encomendas. Belo jornalista esse, sem caneta, sem papel, nem mesmo um gravadorzinho para portar o pedido em viva-voz.
Mas havia meu cérebro, que sempre me acompanha para onde quer que eu vá, municiado internamente com um aplicativo de memória repleto de neurônios que já estava acionado e ser-me ia muito útil. “Já volto”, anunciei, enquanto o profissional se botava a rosquear uma das torneiras. Cinco minutos depois, eu adentrava as portas da loja despejando aos ouvidos do atendente rapidamente a lista de minhas necessidades, antes que me esquecesse: “Preciso de duas luvas de cobre de meia polegada, dois niples para esgoto e quatro joelhos de quarenta qualquer coisa”, disparei, convicto.
O atendente me olhou meio espantado, afirmou que não existiam niples para esgoto, mas mesmo assim eu que o acompanhasse até o final da loja, onde se localizavam essas peças, para vermos juntos o que eu precisava. Aquilo me desconcertou um pouco, mas no fim, com a boa vontade do rapaz, saí da loja faceiro, portando uma sacolinha recheada com um joelho de meia polegada com rosca externa, oito niples de plástico de meia polegada, seis luvas de vinte para esgoto, um serrote que não sei como se enfiou no meio da história e uma bela chave de fenda com cabo azul.

“Não era nada disso que eu te falei”, sentenciou, sem dó, o objetivo e prático encanador, mexendo com os dedões dentro da sacolinha plástica e misturando joelhos com niples e luvas, mas detectei nele um olhar de cobiça desferido à minha chave de fenda com cabo azul, que logo tratei de levar a um lugar seguro no quarto das visitas, por onde ele não tinha nada que circular. Enfadado, o encanador achou melhor voltar junto comigo à loja, a fim de fazer pessoalmente o pedido correto. Agora estou eu aqui, com esses niples e joelhos errados, sem saber que destino dar-lhes. Mas antes urge providenciar um bloquinho e uma caneta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de setembro de 2013)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Raquetadas no ar

Meu cunhado está fazendo aulas de tênis no clube em que somos sócios. Vai duas vezes por semana, à noite, aulas de meia hora cada. Em apenas três lições já aprendeu a dar saques, a posicionar o corpo para rebater a bola, a empreender efeitos na jogada, essas coisas. Méritos da dedicação dele e também do professor, que, segundo seu relato, é muito bom.
Sorte dele, a de ter encontrado um mestre com o qual se identificou e, dessa forma, pode dar vazão ao aprendizado de um hobby que lhe vai acrescentar em qualidade de vida. Nem sempre é assim. Anos atrás eu ganhei de minha esposa um violão de presente de aniversário, acompanhado do pagamento de um semestre de aulas em uma escola de música. Fascinado por música como sou, acreditávamos que eu encontraria uma prazerosa fonte de relax me iniciando no (para mim) misterioso e encantador universo das notas musicais. A experiência, porém, foi um desastre completo e não resisti a mais do que três lições, nas quais aprendi (para todo o sempre, ao menos) apenas três acordes, com os quais não sei o que fazer, já que o violão jaz há anos a um canto do escritório, mais mudo que meu antigo toca-discos.
Tudo por culpa do professor, com o qual não consegui criar vínculo e cujo método (ou ausência dele) me afastou, a começar pelos atrasos (dele), apesar de meu entusiasmo inicial pelas aulas. Quando criança, por volta dos dez anos de idade, meus pais acharam por bem me matricular em uma escola de tênis, a fim de que eu dividisse um pouco de minhas energias a alguma outra coisa além das páginas dos livros. Descoordenado como sempre fui, e míope como um rinoceronte, eu levava minha professora à beira de um ataque de nervos a cada bolinha que errava, raqueteando o ar e assassinando mosquitos. “Aaaahhhh, Maaaarcooooossss...”, suspirava ela com enfado a cada burrada que eu dava, enterrando minha vocação desportiva para sempre.
Nas aulas de natação, o professor até que era gente boa, mas seu esforço e simpatia não foram suficientes para suplantar meu medo de água (não chacoalhe um copo perto de mim) e também desisti depois de sucessivas auto-tentativas de afogamento nas piscinas ijuienses. Tive mais sorte com os professores de língua portuguesa, redação, história e língua estrangeiras. Aprendi que ensinar é uma tarefa envolta em uma responsabilidade humana de importância capital impossível de ser mesurada. Que sorte a desse meu cunhado.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de setembro de 2013)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Um convite sincero

Ao contrário do que você possa pensar, não é nada difícil chegar a Caxias do Sul, meu caro. Região serrana, instala-se a 817 metros acima do nível do mar, de cuja orla se distancia por cerca de 180 quilômetros. Se estiver vindo de Santa Catarina, pode acessar o município pelo norte, utilizando a BR-116. Se partir da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, utilize a mesma estrada federal, porém, acessará a cidade pelo sul. Conhece Passo Fundo? Pois, então. Também pode partir dali pela BR-285 rumo a Vacaria e de lá acessar Caxias pela afamada BR-116. Como pode ver, muitos são os caminhos capazes de conduzi-lo à nossa populosa, pujante, frenética cidade, que tanto gostaria de acolhê-lo com mais frequência.
Sim, porque somos um povo hospitaleiro, além de possuirmos várias outras características simpáticas e acolhedoras de que nos jactamos para atrair a sua atenção para essas nossas plagas. Mas eu andei gastando seu tempo com dicas de acessos viários terrestres, quando bem sabemos que, quando se decidir a finalmente dar as caras pela nossa cidade, você o fará vindo do alto, atravessando nuvens. Portanto, muito mais útil será oferecer-lhe coordenadas geográficas precisas. Assim, se olhar um mapa, conseguirá facilmente localizar nossa Caxias do Sul situada a 29 graus de latitude e 51 graus de longitude. Fácil, não?
Então fica o convite, feito de forma oficial e fraterna: venha nos visitar! Venha ver a beleza e a simpatia das nossas recém eleitas rainha e princesas da Festa da Uva 2014, o evento que realizamos aqui a cada dois anos para celebrar com orgulho o fruto de nosso trabalho e a concretização de nossos sonhos. Venha ver nosso interior colonial belo e repleto de história da imigração. Venha passear pelas nossas calçadas urbanas movimentadas de gente trabalhadora e faceira. Venha espiar para dentro das nossas casas por entre as frestas das janelas e detectar a alegria com a qual será recebido sempre por todos. Sorrisos se estamparão nos rostos de crianças, homens, mulheres, jovens e adultos, sempre que estiverem em contato contigo e isso será tão bom para cada um de nós quanto para você mesmo.

Garanto a você que será assim. Então venha, sol, venha nos visitar mais vezes. Venha para Caxias do Sul e nos proporcione estadas demoradas, sem data para ir-se de novo esconder por detrás das nuvens. Será recebido calorosamente por todos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de setembro de 2013)

domingo, 1 de setembro de 2013

Bem mais que sorrisos

 Aportei de mala e cuia em Caxias do Sul em agosto de 1992. Não vim de vapor da Europa em viagem de 33 dias cruzando o Atlântico, tampouco tive de pegar em enxada para abrir picada a fim de ajudar a colonizar a área do Campo dos Bugres. Quando cheguei, a Pérola das Colônias já se configurava há décadas como uma das mais pujantes cidades brasileiras, orgulhosa do fruto do trabalho de seus fundadores e determinada a seguir crescendo em todos os aspectos. Mas cheguei compartilhando o objetivo de todos os imigrantes que para cá vieram e continuam vindo: a busca pela realização de sonhos pessoais.
E foi só vivenciando o cotidiano da cidade que comecei a absorver a amplitude do significado da Festa da Uva, evento sazonal que eu conhecia de passagem na adolescência e por acompanhar de longe as notícias na mídia estadual. Quando aqui tomei posse de meu primeiro endereço, corria o reinado de Catiana Rossato, eleita para a Festa do ano anterior à minha chegada. Já como jornalista do Pioneiro, acompanhei mais de perto a movimentação da cidade que resultou na escolha da nova rainha para a 20ª edição, Cristina Briani. Na Festa seguinte, a de 1996, vi a coroa ser entregue a Patrícia Horn Pezzi, no trio que marcou época com a beleza e simpatia advindas também das princesas Márcia Maróstica e Valéria Weiss. Dali em diante, nunca mais o evento me passou em branco e assumi também em mim, enquanto cidadão caxiense, o orgulho pelo significado que a eleição das soberanas representa.
Caxias do Sul, com sua escolha de rainha e princesas da Festa da Uva, vem consolidando uma visão diferente do conceito do belo. Nossas rainhas, princesas e embaixatrizes vêm se configurando, desde os primórdios, em grupos de moças cuja beleza extrapola os limites da mera composição física. A isso, elas agregam carisma, simpatia, desenvoltura social, cultura, conhecimento, gentileza, inteligência, curiosidade, perspicácia, envolvimento comunitário e outros atributos que as tornam belas, sim. Não apenas mulheres bonitas, mas belas pessoas, possuidoras das melhores características que desejamos ver expressas no conjunto dos habitantes de nossa comunidade.
Sejam quem forem as escolhidas no sábado, tenho certeza de que a coroa e as faixas da cidadania caxiense estarão mais uma vez muito bem representadas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2013)