quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Beijo na testa

A certa altura na tarde daquele domingo, Mariana cansou de correr defronte às vitrines das lojas situadas naquele lado do shopping e resolveu assentar-se em uma das cadeirinhas de plástico dispostas por ali, do tamanho dela. Havia cinco ou seis mesinhas enfileiradas, cada qual com seu jogo de quatro cadeirinhas de cores alternadas, e Mariana escolheu uma verde para recostar o corpinho exausto de tanto gastar energias.
Sentou-se direitinho, cruzou as mãozinhas e retribuiu largamente o sorriso que lhe endereçavam os pais sentados poucos metros adiante, a uma das mesas da praça da alimentação, nas cadeiras grandonas do tamanho deles. Depois de intercalar durante mais de meia hora atividades como corridas aceleradas para tirar os pais da inércia, gritos alegres inesperados para enchê-los de satisfação e distribuir beijinhos com as mãos a todos os passantes para provar aprendia o que lhe era ensinado, agora Mariana requeria alguns minutos de descanso, enquanto planejava o que fazer assim que resolvesse saltar da cadeirinha, dali a pouco.
Mas sua atenção foi desviada para a mesinha ao lado, na qual se colocava um garoto cerca de um ano mais velho do que ela, que logo descobriu chamar-se Gael. O rapazote encaixou-se em uma das cadeirinhas, uma azul, e nitidamente tentava chamar a atenção de Mariana, apesar de quase derretendo de vergonha. Quando supôs que ninguém, exceto ela, estava vendo, Gael ousou fazer um gesto com a mão para que Mariana viesse sentar-se à sua mesa, o que ela compreendeu imediatamente e não hesitou em ababdonar sua cadeira verde para ir se posicionar ao lado de Gael, em uma branca.

Gael observava-a de canto de olho sem dizer nada, ao passo em que Mariana estendeu-lhe o bracinho esquerdo, exibindo a pulseirinha que, com muito orgulho, mostrava a todos os que se aproximavam dela desde manhã cedo, quando a mãe lhe colocara o adereço. Gael enrubesceu e encolheu-se todo, enfiando o pescoço para dentro da gola da camisa, sem saber como reagir agora que o convite para a aproximação fora surpreendentemente aceito. Para se livrar da situação de maneira honrosa, tascou de repente um beijo na testa da menina e saiu correndo ao encontro de seus próprios pais, derrubando a cadeirinha em que se sentava e deixando Mariana com cara de susto, sozinha, na mesa. Meia hora depois, ambos já haviam esquecido o episódio, prontos para seguirem, cada um, palmilhando atentos os desafios propostos por suas vidas em início de jornada.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de novembro de 2013)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A hora do polvo

Existem períodos na vida em que você se sente como se fosse um polvo, o par natural de mãos transformado em oito tentáculos imaginários que escapam do seu controle, parecendo terem vida própria e agindo cada um deles independentemente de sua vontade. A cintura como que se alarga sem aviso prévio, os pés se transformam em patas de ornitorrinco e pronto, a receita está completa para que você vire um desastre ambulante durante certo lapso de tempo. Quanto mais curto, melhor e menos pernicioso para si mesmo, para os que o cercam e para o ambiente que o envolve.
Situação dessas pairou sobre mim numa noite de sábado, quando decidi receber pessoas para jantar em minha casa. As coisas iam seguindo tranquilamente o roteiro imaginado até que, de repente, sem nenhum aviso, o deus dos desastrados se esgueirou pela fresta da porta de entrada e se instalou em meu corpo, fazendo surgirem os tentáculos de polvo, as patas de ornitorrinco e a cintura de hipopótamo. Foi o que bastou para, em questão de minutos, eu me botar a aprontar uma sucessão inimaginável de gafes.
Primeiro foi a garrafa de espumante, que desavisadamente foi colocada no congelador, coisa que não se faz, mas foi feita e resultou na consequência danosa: a rolha emperrou teimosamente e tive de lançar mão (tentáculos) a um método nada ortodoxo para sacá-la fora utilizando uma chave inglesa. Tentáculos são mais fortes do que mãos humanas e o golpe desferido arremessou a rolha ao teto, machucando o gesso novinho da cozinha, o que fez minha esposa exclamar “oh”.
Na sequência, por imaginar que o cunhado preferia cerveja, rodopiei com a cintura de hipopótamo rumo ao congelador equipado com um excepcional gancho para segurar latinhas, no qual procurei encaixar uma delas e, errando a mira, furei o produto, irrigando cerveja por toda a sala, cozinha, piso e cunhado, que por sua vez exclamou o seu “oh”. Para completar, na hora do jantar, ao tentar pinçar um suculento pedaço de filé para meu prato, na volta do cotovelo esbarrei em meu cálice de espumante e verti-o na toalha nova, banhando a mesa, as cortinas da sala e o corpo inteiro do afilhadinho de um ano e meio que se postava ao meu lado. Nesse momento, o “oh” foi em uníssono (exceto a criança, que ria).

Segundo me ensinaram meus familiares, esse deus dos desastrados é facilmente exorcizado com boas risadas e alma leve. Sorte minha. E deles.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de novembro de 2013)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Olhar nublado

Foi minha mãe quem me ensinou a decifrar nuvens. O segredo ela ia revelando a mim e à minha irmã naquelas vezes em que viajávamos de carro em família de Ijuí a São Borja a fim de visitar os avós que lá moravam. O trajeto se afigurava intolerantemente comprido para duas crianças acostumadas a passar as tardes brincando ao ar livre e era preciso botar a funcionar a imaginação a fim de nos distrair no banco de trás do Corcel.
Para isso, nossa mãe, municiada com uma inesgotável fonte de criatividade, propunha brincadeiras as mais diversas durante o trajeto. Uma das que mais nos distraíam era a de vasculhar as nuvens para detectar formas nelas escondidas. Bastava calibrar um pouquinho o olhar, dirigindo-o para as alvas e volumosas formações estacionadas nos céus dos vastos campos que ladeavam a estrada, que as figuras começavam a aparecer. Eu avistava o Mickey de perfil e logo de pronto, mais acima, minha irmã via o Pateta. Mais para a direita, aquela nuvenzinha solitária em poucos segundos se revelava a clara imagem de um sapato. Dito isso, custava nada para alguém enxergar (exceto meu pai, lógico, que previdentemente matinha os olhos atentos à estrada), saindo da nuvem, a imagem de um homem de chapéu e cachimbo.
 Assim vencíamos dezenas de quilômetros antes de enjoarmos da brincadeira e tornarmos a ficar inquietos. Sem perder tempo, lá vinha a mãe de novo, propondo outro entretenimento: contar carros! Nesse jogo, cabia a cada um de nós (agora, o pai se permitia participar) escolher uma marca de automóvel (nos anos 70 não havia muito mais do que umas dez circulando pelas estradas brasileiras) e passar a contar quantos exemplares cruzavam no sentido contrário. Vencia quem contasse mais Opalas ou Variantes ou Gordinis até o final da jornada. Fusca não valia, pois havia demais e quem o escolhesse venceria o certame familiar na certa.

Observando agora o mundo daqui do alto do prédio onde moro, vejo nuvens no céu acima e automóveis cruzarem acelerados pelas ruas logo abaixo e me ponho a pensar sobre o que a adultice acaba fazendo com a gente. Hoje as nuvens me trazem o receio da chuva e, os carros, o medo de acidentes. Mudaram as nuvens? Os carros? Mudei eu ou todo o meu mundo? Temo que talvez nem mesmo a imaginação de minha mãe baste para solucionar essa inquietação do presente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de novembro de 2013)

Quem quer dinheiro?

Pronto, agora não tem mais nem choro nem vela. Desde metade da semana passada, acabaram-se todos os prazos que a Caixa Econômica Federal havia concedido para que o felizardo sortudo paranaense de Ponta Grossa, apostador da Mega-Sena, retirasse seu prêmio de 22,9 milhões de reais. O sorteio correu no dia 10 de julho e as apostas têm validade de 90 dias. O prazo se encerrava em 10 de outubro, mas a CEF deu uns dias a mais para resgatar o valor, até 16 de outubro, devido à greve dos bancários.
Mas apesar de todo o auê feito pela imprensa, ainda alguns dias antes de vencer o prazo legal, não teve jeito de o apostador sortudo se apresentar para retirar o prêmio. E não é qualquer prêmio, convenhamos. Arredondemos, para fins de crônica, o montante para 23 milhões de reais. Baita grana, hein? E me pergunto, e pergunto a você também, leitor: o que faz um sujeito negligenciar assim, dessa forma quase acintosa, o resgate de um valor de tamanho vulto?
Sim, porque não teve jeito. O sujeito não foi porque não foi e não foi mesmo lá na agência da Caixa pegar a grana. Ele não quer os 23 milhões de reais. Não lhe fazem falta esses trocaditos. Será que foi o Eike Batista quem fez a aposta? Não, claro que não. O Eike Batista de alguns meses atrás, multibilionário, até poderia se encaixar no perfil do sortudo negligente. Mas o Eike Batista atual (e real), quebrado e afundado em dívidas, iria correndo conversar com o gerente, bilhetinho na mão, para meter nos bolsos os milhõezinhos esses.
Não foi o Eike Batista, então. O mistério permanece. Quem além do antigo Eike Batista seria tão rico a ponto de esnobar o acréscimo de um punhado de novos milhões em sua conta? Não consigo imaginar nomes. Mas e se o sujeito apostou e morreu? Pode ser, é uma possibilidade plausível. Para fins de efeito de crônica, imagino um velhinho aposentado que há anos faz a sua aposta e confere toda a semana os números que, se sorteados, solucionariam para sempre as agruras de sua vida. E quando finalmente a sorte lhe sussurra os números da mudança, ele morre de mal súbito dois dias antes do sorteio.
Enterrado em vala comum, só deus sabe onde é que meteu o bilhete. A vida real tem dessas coisas. Às vezes ela é pródiga em abortar sonhos.


 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de outubro de 2013)