segunda-feira, 31 de março de 2014

Aperta o cinto

Eu não estava em Caxias do Sul: estava em Uvanova. Eu não estava na minha casa: estava na casa dos sogros, em Uvanova. Eu não estava no meu quarto: estava em um dos quartos da casa dos sogros, em Uvanova. Eu não estava frente ao meu guarda-roupas nem frente à minha cama: estava frente ao guarda-roupas e à cama em um dos quartos na casa dos sogros, em Uvanova.
Como podem ver, eu estava completamente fora do meu ambiente natural, no qual consigo me vestir direitinho até de olhos fechados. Naquela ocasião, defronte ao guarda-roupas e à cama em um dos quartos na casa dos sogros, em Uvanova, eu estava de olhos bem abertos, é verdade. Porém, faltou luz. Faltou luz e eu tinha de me vestir rapidamente, pois era padrinho de casamento de alguém da família e, para adiantar serviço e evitar trapalhadas (de minha parte, claro), a esposa já havia organizado as roupas que eu deveria vestir depois do banho, sobre a cama (aquela cama ao lado do guarda-roupas existente em um dos quartos na casa dos sogros, em Uvanova). Bastava eu, em resumo, botar as calças, vestir a camisa, as meias, os sapatos, o cinto e deu.
Só que faltou luz, tá ligado? Bem na hora em que eu iria começar a me vestir. Mesmo sendo dia, o ambiente escureceu bastante. Porém, havia uma penumbra que me permitiu colocar as calças, a camisa e o pacote todo, e me fui para a sala, onde o sogro já aguardava e para onde rumavam os demais membros da família à medida em que iam também se aprontando. Assim que minha esposa surgiu e me olhou, foi acometida por um mastodôntico e incontrolável acesso de riso que passou a esculhambar sua maquiagem. Apontava para mim e ria à larga. Mesmo sem saberem o motivo daquela graça, os outros me olhavam e também riam, já que não é difícil cair no riso em olhando para mim com atenção, sei disso, já estou acostumado.
O mistério se desfez quando ela finalmente conseguiu dizer que eu havia me enganado e vestido as calças de meu sogro ao invés das minhas e estava lá, todo pimpão, pronto para apadrinhar casamento. Detalhe: meu sogro é bem mais magro do que eu. Bem que eu senti, ao fechar o botão da calça, a necessidade de dar uma profunda inspirada de ar e murchar a barriga, mas calças encolhem, não é mesmo?

Essa foi a prova do quão difícil costuma ser a gente se colocar no lugar dos outros...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de março de 2104)

domingo, 30 de março de 2014

Leitores no automático

Pronto! Pra quê! Foi só eu escrever aqui na sexta-feira sobre as aprontadas que nosso cérebro faz quando nos botamos a agir no piloto automático, narrando o sumiço momentâneo da minha tigelinha com pêssegos em calda produzidos por minha sogra, para que diversos leitores se entusiasmassem em me enviar relatos sobre episódios esdrúxulos protagonizados pelos pilotos automáticos de estimação de cada um deles. Compartilho alguns desses relatos, na intenção de justificar minha preocupação em relação a permitir que os pilotos automáticos tomem conta do timão das barcas de nossas vidas (“timão das barcas de nossas vidas”, eita eu, hein?).
Não direi nomes, nem dos remetentes dos e-mails e nem dos seus pilotos automáticos, para evitar constrangimentos alheios. Sou um cronista consciente. Mas a Sofia, por exemplo (nome fictício, bobinhos), me disse que isso que aconteceu comigo não é nada. “Aérea mesmo é minha tia Riette, que perdeu a bolsa dentro de casa e teve de ir para o trabalho sem ela. Só de noite, de volta, é que descobriu ter enfiado, na pressa, a bolsa dentro da geladeira”. Essa, sim, passou a semana distribuindo cheques frios pela cidade. Evitem cheques da tia Riette, ela navega no piloto automático.
Outro me escreve delatando um tio (por que é que, na maioria dos casos, são os pilotos automáticos dos tios dos leitores que aprontam, hein?) que, movido pela fome atroz que lhe acomete quando o relógio soa meio-dia (não importa se no horário de verão ou no horário que deveria), quis se botar a apurar o preparo do almoço, se enfiou na cozinha, meteu a mão na travessa de salada cheia de radite e regou-lhe generosamente com detergente, achando que era vinagre. Eita, tiooooo! Desliga o piloto!
Uma leitora que sempre me escreve confessou ter, ela mesma (só pode ser tia de alguém), saído às pressas do trabalho porque o marido a esperava já há tempos no carro do outro lado da rua. Atravessou correndo, abriu a porta do veículo, sentou no banco do carona, disse “oi, amor” e, quando foi dar o beijinho, deparou-se com um barbado que não era o dela. Entrara no carro errado. No piloto automático, por pouco não comete um inusitado caso de autossequestro.
Sem falar nos outros e-mails e naquelas três outras histórias que minha esposa não me deixa contar. O bom do piloto automático é que, pelo menos, temos a quem atribuir a culpa das mancadas. A ele, ou aos tios, né, tia Riette.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de março de 2014)

sexta-feira, 28 de março de 2014

No piloto automático

Até admito que possa ser uma grande invenção da humanidade, mas vocês vão me desculpar, eu não confio no piloto automático. Basta ver o que ele anda aprontando por aí afora, a começar pelas nossas vidinhas cotidianescas (“cotidianescas” inventei agora e quero royalties pelo uso).
Noite dessas, por exemplo. Cheguei em casa, vindo do escritório (meu escritório fica no quarto ao lado, junto com as estantes dos livros, mas é onde trabalho e quem é que disse que eu tinha de dar satisfação?), tirei os sapatos, calcei as pantufas (sim, porque trabalho em casa, mas sempre de sapatos, nada de chinelinhas flanando de um lado para o outro em horário de expediente) e decidi que, para o relax ser completo, cairia bem, naquela hora, uma tigela com o doce de pêssego em calda produzido por minha sogra. A compota estava ali na geladeira e lá fui eu: lotei a tigelinha com nacos saborosos de pêssego cobertos por aquela calda grossa, doce, cremosa, que logo estaria banhando de sabor minhas papilas, as tais das gustativas, de que gosto tanto.
Mas foi terminar de lotar a tigelinha que uma lembrança me assaltou a mente e, antes de me botar a comer, corri para o escritório para anotar na agenda uma tarefa profissional que teria de realizar no dia seguinte. Vai que esquecesse! Pronto, anotação feita, estava apto a retornar à sala para fazer companhia à esposa, ao sofá e à televisão, saboreando meus pêssegos. Só que... cadê os pêssegos?
E quem disse que eu encontrava a tigela farta de pêssegos em calda da sogra que eu recém havia servido, antes da interrupção da lembrança da dita tarefa profissional? Onde é que eu largara a tralha? Refiz o trajeto da geladeira até a escrivaninha, vasculhei as estantes do escritório, voltei à cozinha, abri a geladeira, revirei o sofá, ergui almofadas, mandei a esposa parar de rir e sair um pouco para o lado e nada, nada, nada da tigelinha de pêssego em calda. E não tinha mais nem gato em casa para levar a culpa.
Bom, é claro que, ao fim da celeuma, a tigelinha reapareceu espiando por detrás do balcão da cozinha, sem sair do lugar onde eu a havia deixado no momento do apagão causado pela lembrança (pode isso?) para, em pleno piloto automático, ir anotar a tarefa na agenda. Não gosto de navegar em piloto automático porque sempre dá nisso: perde-se tigelinha com pêssego em calda, cruzam-se sinais vermelhos, fala-se o que não devia, defende-se o indefensável... e, vem cá... cadê a crônica do Pioneiro que eu havia escrito agora?
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2014)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Coisa ruim

Não é que eu seja ruim. Não. Ruim, ruim, não sou. Também não sou lá uma flor de pessoa, não tenho carteirinha de santo imaculado, desconhecedor de pecado. Pecadito todo mundo tem, nem que seja varrer farelo de pão pra debaixo do tapete quando bate aquela preguiça de faxinar a casa toda. Tenho lá meus defeitos, minhas erradas, minhas bolas na trave, como de resto todas as gentes normais que conheço.
Procuro fazer de mim o melhor que posso, até que me esforço, mas reconheço que sou humano, e ser humano, sabe como é. Mas também, péra lá um pouquinho, pra ruim é que não sirvo. Só que não tem quem me tire da cabeça que o que estou fazendo, nesse caso, é pura ruindade. Só pode ser. Não tem outra explicação e não encontro melhor palavra que se aplique. Ruindade. Das brabas.
E pior de tudo é que me convenço mais e mais disso a cada dia que passa, e olha que já se empilham anos nisso. A sensação de que tem ruindade na coisa fala mais alto especialmente de noite, em casa, quando mais um dia vai chegando pros finalmentes. É ruindade, sim. Pior é que é.
Tenho pena. Tenho, sim, porque, no fundo, não consigo ver-me como sendo tão ruim assim, tão capaz de cometer essa barbaridade que há tanto tempo protagonizo contra essa criatura que me observa calada ali do canto da sala, apequenada diante da afronta que é feita à sua essência aqui dentro da minha morada. Porque não tem no mundo ruindade maior do que essa de manter calado há anos, dentro da sala, um violão que foi fabricado para tocar e que aqui, em minha posse, analfabeto musical absoluto que sou, não toca coisa nenhuma, nem nunca tocou.
Nunca, nunquinha na vida desse violão saiu dele o entoar de uma canção qualquer. Suas seis cordas jamais foram tangidas por dedos musicais que delas extraíssem a beleza da arte sonora para a qual foram destinadas em sua concepção. Isso de possuir em casa um instrumento musical e mantê-lo calado por inépcia e por falta de talento, condenando-o a um eterno mutismo forçado, se configura em tortura de fazer inveja aos carrascos de nossas nada saudosas ditaduras.
Pratico contra meu violão a pior das censuras. Decreto contra ele um famigerado AIM-7 (Ato Irracional Musical) em que a nenhuma das sete notas musicais é permitido manifestar-se. Casso dele seus direitos à livre expressão do Belo que sei que acalenta em suas entranhas de cordas caladas.

Gente, do céu, mas que ruindade!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de março de 2014)

quarta-feira, 26 de março de 2014

O recado da colherinha

Sou adepto da teoria de que não existe tragédia não anunciada. Não existe mal súbito. Existe, sim, nosso eventual desconhecimento ou ignorância dos fatores que desde há muito estavam ali, na camufla, gestando a futura tragédia. Bastava termos tido competência ou vontade para reconhecer ou detectar esses sinais que poderíamos, sim, evitar a consumação da maioria das tragédias (exceto, claro, aquelas derivadas da vontade repentina de uma força indomável superior, que bem o digam os habitantes de Sodoma e Gomorra e os que defendiam as muralhas de Jericó).
Mas nem sempre o fazemos. Muitas vezes somos assolados pela nossa proverbial inércia, pela nossa preguiça, pela nossa tendência ancestral de deixarmos tudo como está para ver o que acontece, embasada na teoria (equivocada) de que “pior do que está não fica”, para só então, depois de consumada a catástrofe, nos darmos por conta de que podia ficar pior, sim, e como! Os reflexos dessa postura leviana frente ao andamento da vida estão por todas as partes.
Comecemos pela louça suja do café da manhã, por exemplo. Aquele pequeno e aparentemente inofensivo montículo composto por um par de xícaras (em se tratando de apenas um casal), um par de pratos, duas colheres, duas facas e o canivete todo melado usado para abrir a porcaria do pote de geleia que não tinha jeito de desrosquear por bem, poderiam, perfeitamente, permanecer ali na pia esperando por hora mais propícia ao banho. Só que, em agindo assim, não vai demorar muito para esse montinho se avolumar com o passar das refeições e o acumular da sujança, até se transformar em uma assustadora montanha de gordura incrustada que passa a avançar da pia rumo ao fogão e faz todos desejarem fugir de casa.
Assim se dá com aquelas doenças oriundas do descuido direto para com nossa saúde, para com nossa alimentação, para com nossos hábitos, para com nossa assepsia. Assim se dá com as tragédias do trânsito e as da violência urbana. Assim se dá com a catástrofe financeira de empresas e com a incapacidade gerencial de um município, de um estado, de um país. Todas elas tragédias perfeitamente anunciadas a partir de uma série de avisos, e evitáveis a partir da adoção de posturas lúcidas e proativas.

Mas, sempre que a opção for permanecer afundado no sofá assistindo à tevê ao invés de lavar logo a louça, a consequência será exatamente aquela que a queda da colherinha de cima do topo da pilha está anunciando. Só não entende o recado quem não quer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de março de 2014)

Enganando a maldita


Nas muitas vezes em que levo meus olhos a passear pelas estantes das livrarias, deixo eles se divertirem um pouco naquelas seções em que os livreiros amontoam os livros pertencentes a uma espécie muito estranha de literatura. Tratam-se daquelas obras concebidas com a pretensão de ajudar a organizar alguns aspectos de nossas vidas, orientando interesses e economizando esforços de busca.
Normalmente, os títulos desses livros dizem assim: “Cem filmes para assistir antes de morrer”, “150 livros para ler antes de morrer”, “200 lugares para conhecer antes de morrer”, “Os cem maiores escritores da Lapônia”, “As 100 melhores receitas de cachorro-quente”, “300 receitas para preparar para sua namorada”, “20 receitas para preparar para sua esposa”, “Mil receitas para preparar para sua amante”, “As 100 receitas que você não preparará para sua ex”, “Trinta receitas para forçar que ela o deixe”, “Como ficar rico em 10 lições”, “Como conquistar quem você quiser e como se livrar depois”, “Os 90 livros que você deveria ter lido mas que jamais lerá” e assim por diante.
Deixo meus olhos circularem pelos títulos e, dependendo do caso, até permito que minhas mãos entrem na jogada e retirem algum exemplar da prateleira para folheá-lo e fornecer, assim, aos olhos, uma ideia mais ampla do conteúdo ali impresso. Mas nunca permito a participação de meu bolso nesse processo. Não os compro. E não por preconceito bobo ou por soberba, altivez, esnobismo. É por medo mesmo.
Sou muito medroso. Especialmente em relação a essas listas que indicam o que fazer (ler, assistir, comer, visitar) antes de morrer. Eu, assim como a maioria das pessoas viventes, não desejo morrer. Prefiro pensar na morte como um acontecimento longínquo que pode ser mantido à distância enquanto eu fizer coisas como respeitar os limites de velocidade nas rodovias, me alimentar de forma mais saudável, não colocar os dedos molhados nas tomadas e coisas assim. Para que, então, brincar com fogo?
Para que comprar uma obra que me indica cem livros para ler antes de morrer? Dei uma folheada na centena de indicações ali inseridas e detectei que já li umas 75 delas. E todos os outros 25 títulos restantes me interessam. Dez deles, por sinal, já estão na pilha lá em casa, para serem lidos. Em o fazendo, estarei me colocando perigosamente no final da fila para o encontro com a Maldita, segundo as projeções do autor do livro.

Como não sou besta, está decidido: só vou ler mais 24.

Pata de elefante

“Tudo que é sólido desmancha no ar” é uma das mais populares assertivas integrantes do “Manifesto do Partido Comunista”, o texto publicado pela dupla de filósofos Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, que serviu de inspiração teórica para as revoluções comunistas que chacoalharam o planeta no século passado. Com o passar do tempo, a frase acabou se tornando uma ampla metáfora para indicar que, mesmo as coisas mais consolidadas pelo uso, pela tradição, pelos costumes, pela inércia, pela força ou pelo hábito, podem, sim, ser mudadas.
Pois algo desmanchou-se no ar em uma noite da semana passada quando eu e minha esposa decidimos sair para jantar. Escolhemos a dedo o restaurante, que já conhecíamos, devido ao ambiente agradável e à cozinha saborosa e elegante. Quando chegamos, cedo da noite, éramos somente nós os clientes da casa. Fizemos o pedido, famintos, e esperamos. Esperamos. Esperamos. Trocamos de assunto. Nos mexemos nas cadeiras. Olhamos no relógio. Olhamos um ao outro. E esperamos e esperamos.
Um cliente assíduo de restaurantes desenvolve uma boa noção quanto ao que é um tempo de espera aceitável por um prato. Leva-se em consideração a movimentação da casa (no caso, vazia) e a complexidade da iguaria solicitada (no caso, dois simples filés de picanha bem passados acompanhados por purê de mandioquinha). Há de se imaginar que não mais do que 20 minutos separariam o momento do pedido da aterrissagem dos pratos. Lento engano. Demorou 50 inimagináveis minutos. Foram buscar a cozinheira em casa? Foram colher a mandioquinha? Foram carnear o boi?
Não bastasse isso, ficamos estupefatos com a mudança de conceito naquele estabelecimento em relação ao que deveria ser considerado um medalhão de filé. Não vieram medalhões, mas sim patacões de elefante mal cortados, grossos, preparados de acordo com o desleixo com que tudo ali estava sendo tratado. A solidez do conceito que tínhamos pelo local esfacelou-se no ar junto com as primeiras (e únicas) garfadas. Ah, a conta, claro, foi cobrada sem nenhum desleixo.
Não cabe ao cliente ensinar ao restaurante como se prepara um prato. Não cabe ao cliente ensinar o ofício a quem se apresenta no mercado como profissional desse ofício. Cabe, sim, ao cliente, ir embora para nunca mais voltar, inspirando a que tomem a mesma atitude as multidões de clientes maltratados em todos os ramos de atividades, deixando que se desmanchem no ar estabelecimentos e profissionais que passam a prezar pelo desleixo nesse país da Copa.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de março de 2014)

A lição do UFO

Quando eu era criança pequena lá na cidade de Ijuí, onde nasci 9.953 anos atrás, tínhamos um cachorro de estimação que não batia muito bem da cabeça, assemelhado que era ao seu principal dono, este que vos relata o feito nestas mal traçadas - mas bem impressas - linhas. Cruza de vira-latas com pequinês, tinha pelo de coloração amarelada e chamava-se UFO, o que, por sinal, já dá uma noção de como era a coisa.
UFO vivia solto no amplo pátio da casa e gostava de pregar sustos nos passantes da calçada lá no canto da cerca. Às vezes, quando encontrava o portão do pátio aberto, escapulia e perambulava livre pela vizinhança a seu bel prazer (e para o bel desprazer de alguns vizinhos que não gostavam de suas turbulentas visitas-relâmpago), retornando logo depois, a fim e relatar suas averiguações para Balú, o cão-ancião da casa, um fox que já contava lá seus 15 anos bem vividos e toneladas de ossos enterrados.
Certo dia, bateu a bobeira no UFO e ele largou-se a perseguir o carro da família, numa tarde em que saímos rumo ao clube, situado fora da área urbana, para a aula de natação, na qual eu costumava engolir metade da água da piscina. A presença de UFO correndo atrás do Corcel, língua de fora, olhos esbugalhadas e patas para que te quero, comendo poeira, foi detectada somente umas dez quadras depois, pelo meu pai, via espelho retrovisor. Ficamos apreensivos com aquilo, pois UFO jamais circulara tão longe de casa e poderia se perder. Como retornaria?
De repente, UFO perdeu o fôlego numa curva e foi ficando para trás, sumindo-se na poeira de terra vermelha daquelas plagas ijuienses. A dor em nossos peitos só foi dissipada horas depois, quando retornamos para casa e lá estava UFO, deitado em frente ao portão, a nos sorrir latindo. Afinal, UFO era um cachorro, e cachorros sempre retornam para o lugar a que pertencem.
Fico pensando nisso nesta manhã em que subo na balança depois de dez dias de férias e descubro que os quilos perdidos nas dietas são exatamente iguais aos cachorros de estimação: eles sabem muito bem como retornar rapidamente para o lugar a que imaginam pertencer (neste caso, minha cintura e o entorno de meu umbigo). Os quilos extras e os cachorros são ossos duros de roer: não comem poeira e nem se perdem fácil pelas curvas da vida.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de março de 2014)

Quem é

Há alguns dias comecei a ter um vislumbre que talvez possa me ajudar a solucionar uma das questões mais fundamentais que atazanam a vida de qualquer ser humano desde que, séculos atrás, um filósofo francês que não descartava nada inventou de dizer que o ato de pensar denunciava o fato de estar existindo. Estou a um passo de descobrir quem sou eu, e a pista me foi dada pelo meu afilhado de quase dois anos de idade.
Conforme a perspectiva dele, eu sou “Quem É?”. Simples e solucionado. Isso é o que sou. De tanto os adultos que o cercam apontarem para mim incentivando-o a me identificar como o “Dindo”, segurando-o pertinho e inquirindo “quem é esse aí”, João Vitor optou por enveredar por um caminho mais filosófico na hora de satisfazer a esperança familiar de reconhecimento dos indivíduos da família.
Ora, se ao apontarem para mim as pessoas lhe dizem “quem é?”, então, pela lógica, “Quem É?” é quem sou. Ele não entende a frase como uma pergunta sobre minha identidade, mas, sim, como uma afirmação positiva sobre minha identidade. Semana passada, ao receber em casa sua visita, abri a porta e ele correu aos meus braços, me deu um beijo estralado na face e tascou: “Quem É?”. Bom... “Quem É?” sou eu...
O mesmo se dá com os integrantes do numeroso bando de bichinhos de pelúcia que se acotovelam no alto da estante de seu quarto. Quando “Quem É?” pega João Vitor no colo e o leva para escolher um os bichos, ele aponta para o eleito da vez e diz “Qual?”. Ou seja, todos os bichos, e qualquer bicho, são “Qual?”, uma vez que nós, adultos (bando de “Quem És?”), ao tentarmos descobrir qual dos brinquedos ele deseja, insistimos em perguntar “qual?”, apontando para todos. Se eu sou “Quem É?” e cada bicho da estante é “Qual?”, então João Vitor, na sapiência ingênua de seus quase dois anos, está a nos propor (a mim e aos bichos de pelúcia de sua estante) uma reflexão sobre os mais profundos e refinados questionamentos a respeito do ser.
Pois é, João Vitor, não sei exatamente quem sou. Sou várias coisas ao mesmo tempo: umas coisas mais, outras menos. Certas coisas, fui deixando de ser com o andar dos anos e com o descarrilar das certezas. Outras coisas, passei de repente a ser, para minha própria surpresa. Já em relação ao “Qual?”, bem... de minha parte, se você concordar, preferiria hoje içar da estante o cachorrinho azul de gravata marrom e orelhas compridas. Mas, claro, você é quem sabe...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de março de 2014) 


quinta-feira, 20 de março de 2014

Daqui para lá

Já faz alguns meses que me mudei de um canto da cidade para outro canto da cidade, sendo que os dois cantos em questão (o canto velho e o canto novo) são relativamente bem distantes um do outro. Como é natural nessa espécie de processo, ainda estou em fase de namoro com as características das novas redondezas que passei a habitar, conhecendo as nuances do trânsito da região, descobrindo a rede de serviços existentes nas proximidades, os bares e restaurantes, o ritmo e o perfil do bairro, essas coisas.
Mas apesar desse bonito idílio habitacional, ainda existem alguns aspectos que me mantêm ferrenhamente conectado à região de minha antiga morada, até porque, foi lá que vivi os últimos 13 anos de minha já longa estada caxiense. É para o antigo canto da cidade que me dirijo, por exemplo, quando o assunto se refere a algum problema em meu automóvel. Caso ele esteja conseguindo andar, atravesso os bairros e rumo certeiro para a oficina mecânica que me atende há mais de década logo ali, perto de minha antiga morada. Fui fidelizado pelo atendimento personalizado, pela honestidade dos diagnósticos, pelo preço justo, pela competência profissional da equipe. Até porque, como todos sabem, oficina mecânica não se troca.
O mesmo se dá em relação ao técnico em informática que furunga e soluciona os xabus sazonais de meu computador. Ele segue morando lá perto de minha velha casa, e é até lá que continuo indo quando preciso de um socorro que vá além de meu conhecimento restrito a enfiar o cabo na luz, ligar a máquina e sair teclando. Ele me fidelizou pela confiança, pelo pronto atendimento, pelo conhecimento de causa.
O mesmo ainda se dá quando bate aquela vontade caxiense irresistível de consumir uma pizza metade portuguesa ou atum (para mim), metade marguerita (para a esposa). Existem, sim, porque já detectei, pizzarias aqui ao redor de minha atual morada. Mas não titubeio em atravessar a cidade para me assentar no acolhedor ambiente daquela pizzaria especial localizada a poucas quadras de meu antigo endereço, onde sou amigo do dono e dos garçons e onde a qualidade do produto rima com a qualidade do atendimento.

Sou facilmente fidelizado por essas questõezinhas básicas: cortesia no atendimento, qualidade no produto e no serviço e preço justo. Em busca disso, singro bairros e as distâncias se fazem pequenas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de março de 2014)

quarta-feira, 19 de março de 2014

A lenda das mil garças

Sob o título “O Último Trem de Hiroshima”, o escritor norte-americano Charles Pellegrino relata a história real e fantástica de um grupo de pessoas que sobreviveu à explosão da bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial. O destino transformou essas pessoas em um caso especial porque elas, no dia seguinte à explosão, embarcaram em um trem que as levaria para longe daquele cenário de horror. O destino era a cidade de Nagasaki, a 300 quilômetros dali.
Chegaram e, no dia seguinte, em 9 de agosto, a segunda bomba atômica era despejada justamente sobre Nagasaki. Dos trinta viajantes vindos de Hiroshima naquele trem, meia dúzia sobreviveu à segunda explosão. Leio o livro e acompanho os relatos desses inimagináveis personagens reais sem conseguir decifrar se eles representam o grupo de pessoas mais azaradas ou as mais sortudas da história do mundo. Mas entre todos os relatos, um em especial me chama a atenção.
Trata-se da história da menina Sadako Sasaki, que tinha dois anos quando saiu viva da explosão em Hiroshima (ela não integrou o comboio que rumou a Nagasaki). Os efeitos da radiação atômica começaram a se manifestar em seu organismo no início de 1955, quando ela tinha 12 anos, na forma de uma agressiva leucemia. Desenganada, foi internada no hospital de Hiroshima em março de 1955, lutando diariamente contra a dor e contra a morte iminente. Após a visita de uma amiga, aprendeu a fazer origamis em forma de garças de papel (chamados “tsurus”) e conheceu a lenda dos mil tsurus, que diz assim: se você fizer mil dobraduras de pássaros em papel, ao final, terá direito ao maior desejo de sua vida.
Imediatamente, Sadako passou a produzir tsurus em seu leito no hospital, acalentando um desejo secreto. Com o passar do tempo (que lhe era escasso), foi aumentando o grau de complexidade de seus tsurus, revelando ao final que o número de tsurus não importava, mas, sim, deveria era colocar toda a essência de sua alma na confecção de cada um deles.

Sadako morreu em outubro de 1955, após ter confeccionado cerca de 660 tsurus. Seu irmão revelou depois que o desejo dela residia em um mantra pessoal resumido pela palavra “omoiyari”, que significa: “em seu coração, sempre pense na outra pessoa antes de você”. Ela acreditava que, se todos adotassem esse mantra, não haveria mais guerras nem bombas atômicas no mundo. E que o caminho para isso era cada um adotar o mantra começando pela sua atitude em relação às pessoas mais próximas. Até porque, o fundamental é, antes de tudo, tentarmos desarmar a bomba atômica que às vezes reside dentro de nós mesmos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de março de 2014)

terça-feira, 18 de março de 2014

O feminino de Adélia

Televisão não é só BBB e Domingão do Faustão. Não sei se as graças a isso devem ser dadas a Deus ou a algum raríssimo programador inteligente, mas o fato é que basta deixar de lado um pouquinho a preguiça e passear pelos diversos canais que sempre haverá a oportunidade de se deparar com algo que valha a pena o afundamento no sofá que você está protagonizando ali, em frente ao aparelho de televisão da sala.
Noite dessas, por exemplo, aconteceu de eu dar de cara com a escritora Adélia Prado, essa nossa sumidade nacional na literatura e na arte do raciocínio perfumado com o bom senso e com a elegância e o frescor do pensamento. O programa, na TV Câmara (Federal)  transmitia o bate-papo que ela protagonizou dentro da programação da segunda edição do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, realizado na cidade mineira em setembro do ano passado. O aparente distanciamento de meses entre o evento e a transmissão foi plenamente justificado pela atualidade das palavras da escritora-pensadora, sempre atenta às nuances que regem a vida em seu tempo.
“O mundo está doente. As pessoas estão adoecendo”, sentenciou Adélia, mesclando a doçura da forma de dizer com a contundência daquilo que dizia. Adélia tem percebido, pelas conversas que capta das pessoas em seu entorno (“ao celular, nas filas, nos ambientes de trabalho e domésticos”), que o foco das preocupações do cotidiano são as questões práticas, na maioria das vezes, visando ao lucro material. “As pessoas, no mundo todo, não dispõem mais de tempo para si próprias e nem para os outros. Não dão mais importância para o lúdico, para o humano, para a espiritualidade, para a formação cultural pessoal, para o cultivo do Belo”.

Adélia Prado atribui a disseminação dessa doença à crescente ausência do aspecto feminino na sociedade moderna, porque, segundo ela, a essência do feminino é justamente o cultivo da mansidão, da doçura do ser, do olhar zeloso para si mesmo e para o outro e, por conseguinte, para tudo o que compõe o mundo. Profundas palavras e sábia reflexão para os dias em torno do recém passado 8 de março, em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, data que deveria servir para pensar bem mais a fundo naquilo que a autora propõe, bem além da entrega de flores e de cartões.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de março de 2014)

O visitante cara-de-pau

Tinha cabeça de bagre e pescoço de abóbora. O nariz já chegava se metendo onde não era chamado, apesar da recriminação dos olhos de águia. Era um boca-aberta, o que permitia detectar a presença da língua afiada e de dentes de leite se revezando com outros, de ouro. Escorria-lhe veneno pelo canto da boca.
Supus ter recebido dele um aceno, ao qual quis responder, mas logo percebi que se tratava apenas de um movimento involuntário de suas orelhas de abano. Ofereci-lhe um prato de sopa, porém, comia como um passarinho, apesar de ter estômago de avestruz. Com voz de trovão, afirmou possuir dois corações: um de pedra, outro de ouro. Não podia rezar, porque uma mão era de ferro, com a qual se impunha, e a outra era leve, que usava de forma velada.
Fiquei surpreso ao ser informado de que sua barriga era de aluguel. Mas como não acreditar naquilo, ao verificar por conta própria que seu caminhar balouçante decorria das pernas de pau, do pé direito que era de pato e do esquerdo, de couve? Contou-me uma história triste e deixou rolar pela cara de pau uma lágrima de crocodilo. Não acreditei no que saía de sua boca de lobo, apesar de reconhecer nele uma inteligência de coruja, mas com intenções de raposa velha.
Logo detectei que imaginava ser seu umbigo o centro do mundo e dei-lhe um tapinha nas costas, que tinha quentes. Achei que desejava partir devido ao gesto que fez para a porta, mas era apenas seu dedo indicador, que era duro. Pediu um analgésico para aliviar a dor que sentia no cotovelo, mas não pude ajudá-lo. Indignado com a acolhida desastrada que recebia, disse que seguiria viagem rumo ao brejo, localizado logo adiante do fim da picada.
Por mim, que fosse para o inferno, pensei, mas logo me arrependi e refreei minha língua de cobra. Quis brindar-lhe com um sorriso de despedida, mas era tarde demais, minha cara estava dura e desejei ver-lhe pelas costas. Saiu a galope sem que eu conseguisse descobrir quem ou o que era, de onde vinha e o que desejava. Percebi, então, que eu era um burro. Uma fome leonina começava a me invadir, fazendo meu estômago roncar como um bugio. Preocupado, corri para a frente do espelho, que não refletia nada.

É isso o que dá ler “A Ilha do Dr. Moreau” intercalando com “O Homem Invisível” pouco antes de dormir. Overdose de H. G. Wells pode criar pesadelos. Felizmente, todos eles dissipáveis com um breve sopro de realidade. Essa, sim, assombrosa e difícil de assoprar para longe, mesmo possuindo pulmões de aço.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de março de 2014)

A pré-história foi ontem

Comemorou-se nos últimos dias a passagem dos 25 anos da criação do conceito que viria a se transformar na internet, essa ferramenta tão crucial para a vida humana civilizada da atualidade. O projeto surgiu em março de 1989 e, pouco a pouco, foi conquistando o planeta e se transformando nessa imensurável rede de informações que interconecta a todos, sem a qual não conseguimos mais conceber sequer a existência do mundo e da vida humana como hoje a conhecemos.
Mas nem sempre foi assim, e quem tem mais de 35 anos de idade sabe muito bem que a revolução ocasionada no cotidiano das pessoas foi mais profunda e ampla do que é possível conceber, passados todos esses anos que, a bem da verdade, não são tantos assim. Em 1989 eu dava início à minha carreira oficial como jornalista, em meu primeiro emprego com carteira assinada, dentro da redação de um jornal diário na cidade de Santa Maria. “Internet”, naquele momento em que era concebida no hemisfério norte, era uma palavra que sequer constava nos dicionários e muito menos no vocabulário de pessoas inseridas e atuantes na sociedade da época.
Os teclados em que escrevíamos eram os das máquinas de escrever. As agências internacionais eram os aparelhos de telex, que despejavam notícias do país e do mundo dentro das redações. O telefone era o maior aliado do repórter, e sua agenda de contatos valia ouro. Telefone convencional, lógico, porque “celular” era termo usado somente nas aulas de biologia. O Google e a Wikipédia eram os grossos volumes das enciclopédias, dos dicionários, dos Almanaques Abril e da memória e da cultura de cada um de nós. Era preciso mais saber e conhecer do que buscar.
As máquinas fotográficas eram analógicas, usavam rolos de filmes de 36 ou 72 poses (as mais avançadas de uso profissional) e as fotos precisavam ser reveladas e ampliadas nos laboratórios fotográficos que os jornais melhor equipados possuíam. Escreviam-se as matérias em laudas que depois eram digitadas nas oficinas pelos componedores. Era preciso escrever o mais corretamente possível, pois os atalhos para as correções eram mínimos. E, como para escrever bem é preciso ler muito, os jornalistas daquela época eram ótimos leitores.

Essa equação, apesar do avanço das tecnologias digitais, segue inalterada e não creio que irá mudar. Não há Google que suplante um cérebro humano leitor, bem informado, culto, crítico, observador, criativo e alerta. E que venham mais 25 anos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de março de 2014)

Garçom, querido, mais uma

Escrevi aqui sexta sobre a incrível capacidade de comunicação que se estabelece entre dois homens, quando um deles é garçom e outro é cliente, no processo de solicitar a materialização de mais uma garrafa de cerveja gelada na mesa do bar ou do restaurante. Em sendo o garçom do sexo masculino e o cliente também, o pedido será efetivado sem a necessidade de comunicação verbal, bastando um cruzar masculino de olhares acompanhado de gestos específicos, para que ela, a cerveja, seja devidamente reposta.
Algumas mulheres minhas leitoras me enviaram e-mails inquirindo se eu estava a desconfiar da (ou a desmerecer a) capacidade que elas, quando apreciadoras de cerveja, também possuem de solicitar ao garçom a reposição cervejal. Não, nada disso. Apenas afirmo que a comunicação, no caso do homem-garçom e da mulher-cliente, se dá de maneira diferente do que quando a equação é absolutamente masculina.
Mulheres não sabem fazer os gestos típicos masculinos de solicitação muda à distância de uma nova cerveja nesta mesa, por favor, e rápido, e mais gelada, pô, meu. Mulheres são mais doces, mais cândidas, mais singelas, mais complexas, mais civilizadas, mais evoluídas, mais elegantes, mais cheirosas, mais românticas, até mesmo na hora de pedir a simples reposição de uma cerveja. Elas também conseguem pedir, mas é diferente. Vejamos.
Antes, que fique bem claro que não importa a marca da cerveja a ser pedida. Pode ser uma Lhama Chopp, uma Islândica, uma Freskol, uma Molar, uma Desbravária, uma Morromalte, uma Nohêmia, uma Nova Spin, uma Bagaça, uma Kustáiser ou mesmo as antigas Esmalte 90 ou Xingariol, as mulheres cervejeiras também amam cerveja e, quando em bando, sabem fazer o garçom repor na mesa a garrafa vazia. Porém, garçom que é garçom jamais compreenderá de longe um pedido gestual de mulher por uma nova cerveja na mesa.
O garçom que é garçom vai se fazer de desentendido e vai se aproximar da mesa das mulheres. Vai mirá-las nos olhos, vai acompanhar com o olhar o movimento dos sensuais lábios úmidos de cerveja delas na formulação do pedido, vai usufruir de seu perfume ao se movimentar entre elas para resgatar a garrafa vazia, para só então retornar ao balcão e trazer a nova garrafa. Garçom que é garçom sabe atender personalizadamente a homens e a mulheres na hora do pedido por uma nova cerveja.

Em tudo, meus amigos, há ciência.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de março de 2014)

Garçom, mais uma

O nível de comunicação entre dois homens para solicitar a reposição de uma garrafa de cerveja numa mesa de bar ou de restaurante é algo que beira à perfeição. Em sendo do sexo masculino os dois homens-personagens em questão (cliente e garçom), não será necessário mais do que uma olhadela do garçom de lá do canto e um rápido gesto do cliente do lado de cá para que outra garrafa geladérrima se materialize dentro do recipiente térmico para garrafas que está na mesa.
Trata-se de um exemplo perfeito de economia máxima de energia na obtenção do máximo de resultado. Um olhar, um gesto, nova cerveja. Equação perfeita, elegante, irretocável, para fazer matemáticos de ponta babarem de inveja e desejarem uma gelada para afogar suas mágoas. O grau de especialização desse tipo de comunicação já atinge patamares quase universais, sendo que hoje em dia é possível um homem monoglota solicitar a reposição da cerveja na Holanda, na Transilvânia, em Honolulu, na maior tranquilidade.
O mais difícil de todo esse processo é conseguir a atenção do garçom, procedimento repleto de dificuldades em qualquer lugar do planeta. Vencida essa etapa, quando o garçom cruza o olhar dele com o seu, é preciso agir rápido. A garrafa vazia da cerveja já deve estar posicionada em um canto da mesa, com o rótulo virado para fora, a fim de facilitar a visualização por parte do garçom, que dará sequência à bebeção com a mesma marca já pedida, lógico, todos sabem dessa premissa cervejeira básica (nós, os homens, ao menos, sabemos).
Contato visual estabelecido, o gesto a ser feito permite variações, todas elas perfeitamente compreensíveis pelo garçom. O mais comum é levantar o braço e fazer o gesto de “um” com um dedo, dando uma olhadela rápida para a garrafa vazia sobre a mesa. O garçom verá e acenará positivamente com a cabeça, mostrando que entendeu. Logo virá nova cerveja. Também é possível usar as duas mãos, fazendo um gesto sincronizado que representa o tamanho de uma garrafa no sentido vertical. Também virá nova cerveja. Pode-se ainda apontar com o indicador para a desolada garrafa vazia e logo transformar o punho em sinal de “positivo perguntante”. Funcionará. Nova cerveja virá.
Soube que especialistas foram contratados pela ONU a fim de desvendarem em que níveis cerebrais se dá essa harmonia universal entre homens na hora de pedir uma cerveja. Pode residir aí a chave para a conquista da compreensão universal.


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de março de 2014)

Um veranista de baixa

Ser um veranista de baixa temporada exige a adoção de alguns requisitos fundamentais para que as férias possam proporcionar ao cidadão e sua família os prazeres mínimos que julga-se necessários para abandonar a rotina e descansar perto do mar e longe do burburinho urbano que dá o tom da vida ao longo dos demais 11 meses do ano. Como em tudo, mas absolutamente tudo, existem as vantagens e as desvantagens. O segredo está (como em tudo, mas absolutamente tudo) em saber fazer a leitura adequada da balança e arcar com as consequências.
As primeiras partes do corpo do veranista de baixa temporada a sentirem os efeitos benéficos de optar por veranear depois do Carnaval são o bolso e a carteira. Isso porque os preços dos imóveis para alugar e das diárias dos hotéis despencam do patamar conhecido como “da hora da morte” para um nível mais razoável, que pode ser designado como “sobrevida alvissareira” ou “a UTI nem é tão ruim”.
A caipirinha fica menos salgada (falo em termos monetários, não gastronômicos), é verdade, mas, em compensação, surge o problema de conseguir encontrar quiosque aberto na orla a fim de adquiri-la. Muitas vezes é preciso empreender longas caminhadas pela areia até encontrar uma barraquinha solitária cujo dono se dispõe a permanecer operante março adentro. Vejo esses homens como abnegados cidadãos altruístas que pensam nos outros (ou seja, em nós) e se oprimem com a perspectiva de negar-lhes (nos) a cervejinha gelada, a água de coco (agora já quase secos), a batatinha frita, a isca de peixe empanada, essas coisinhas tão fundamentais pelas quais perpassa a verdadeira sensação de se estar, enfim, em férias à beira-mar.
A diminuição estratosférica da população praiana nesta época do ano em que a orla pertence aos veranistas de baixa temporada contribui para criar uma atmosfera intimista que sintoniza perfeitamente com o vento do meio da tarde que parece mais frio do que em fevereiro, com a ressaca do mar que parece pior do que a de janeiro e com o silêncio circundante, que pode ser ouvido com a diminuição da presença das crianças, dos argentinos, das caixas-de-som emplacadas ambulantes e dos vendedores de óculos escuros.

Nasci para ser veranista de baixa temporada. Eu, meu chinelo, vento gelado, quiosque solitário de caipirinha e um livro volumoso. Em março, sinto-me na praia em Marte.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de março de 2014)

As velinhas do bolo

Aniversário é aniversário e existem demandas e rituais que devem ser cumpridos independentemente de quem quer que seja o aniversariante. A lista de demandas vai se avolumando à medida em que algumas decisões vão sendo tomadas, em uma verdadeira corrente de tarefas que resultarão, se tudo der certo, em uma celebração à altura do homenageado.
Partindo-se do pressuposto de que haverá comemoração, é fundamental que haja bolo. E não um bolo qualquer, mas sim um bolo de aniversário. Hoje em dia, o usual é dirigir-se até a confeitaria mais afamada e adquirir um bolo já prontinho, que espia você ali do balcão, pronto para ser levado até a residência do aniversariante e disputar com ele as atenções da festa. Nos tempos de antanho, as famílias sempre eram bem servidas de moças e senhoras doceiras de mãos cheias (mães, avós, tias, cunhadas, irmãs), que se encarregavam de construir bolos em suas próprias cozinhas, personalizadíssimos e inesquecíveis. As coisas mudaram bastante, mas um bolo de aniversário segue sendo um bolo de aniversário, e a presença dele é sempre fundamental.
E se vai haver bolo, então é preciso providenciar também as velinhas. E não velinhas quaisquer, mas velinhas de bolo de aniversário, dessas em formato de números, que apagam e acendem (para desespero do fôlego do aniversariante), porque senão não tem graça nenhuma. Sendo assim, alguém precisa encarregar-se do bolo, outro dos convites, outro dos demais comes, outro dos bebes, outro do local, e as tarefas vão sendo repartidas. À minha irmã coube, ano passado, a incumbência de comprar as velinhas. Dirigiu-se à loja de artigos para festa, entrou, começou a vasculhar a seção de velinhas. Queria duas, uma de cada número, e com as cores combinando. Aproximou-se a vendedora com ar solícito e perguntou à minha irmã quais os números de que ela precisava.
“Um zero e um nove”, respondeu minha irmã.
“Ah”, emendou a solícita atendente: “e é menino ou menina?”, quis saber, para definir as cores das velinhas.
“É para meu avô. Um menino que vai completar 90 anos amanhã”, explicou ela.

Afinal de contas, tudo é uma questão de ponto de vista. A começar pelo ângulo de duas velinhas sobre um bolo de aniversário.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de março de 2014)

A era dos coxinhas

Para mim, até ontem, a palavra “coxinha” estava restrita ao vocabulário gastronômico básico e à anatomia humana e animal. No supermercado, a “coxinha” constante na lista de compras orientava meus passos até a seção das carnes congeladas, onde eu me colocava a escolher a bandeja com as melhores peças de coxas de galinha a serem posteriormente temperadas com salvia e arremessadas primeiro para dentro do forno elétrico e depois para o interior dos estômagos de anfitriões e convidados para o jantar.
Nos lançamentos de livros a que compareço, nas vernissages e nas festas de aniversário, contentava-me em ligar o radar e detectar com rapidez as bandejas repletas de saborosos salgadinhos denominados “coxinhas”, que fazem bonito ao lado de croquetes, pasteizinhos, canoinhas, sanduíches abertos e assemelhados. Meu afilhado de quase dois aninhos tem “coxinhas” brancas predispostas a receber beliscões amorosos de toda a família e pronto, é isso: coxinha é coxinha.
 Ou melhor, era apenas isso, até ontem, quando fiquei sabendo que, agora, “coxinha” se transformou também em termo para designar um determinado tipo de pessoa cujo perfil prioriza um visual arrumadinho, comportamento certinho, roupinha lisinha, coisas assim. Tem pessoas, então, que são “coxinhas completas”. “Sujeito é um coxinha”, me disseram. “Hãn?”, exclamei eu, deixando em suspenso no ar, entre o prato e a boca, um pedaço de croquete durante o coquetel (já havia me fartado de coxinhas, àquela altura).
Não sei exatamente quais são os aspectos que caracterizam um “coxinha”, apesar de ter descoberto que eles andam circulando à solta por aí. Quero crer que são assemelhados aos antigos “mauricinhos” de alguns anos atrás, que, por sua vez, eram derivações dos “playboys” dos anos 1970 e dos “janotas” da geração dos meus pais. Pesquisando no dicionário, inteirei-me que esses seres são também conhecidos como os “engomadinhos”, ou os “filhinhos de papai”, bem como os “gramenhos”, os “caretas” e os “pisa-flores” (este último eu nunca tinha ouvido, mas achei a designação mais poética de todas).

O fato é que se faz necessário estar sempre ligado na evolução das gírias sociais, a fim de evitar gafes terríveis como sussurrar num evento algo do tipo “nossa, que desejo que estou por essa coxinha ali”, lançando olhares para a bandeja do garçom enquanto seu interlocutor olha desconfiado para você e para o engomadinho da festa... Atualize-se.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de março de 2014)

domingo, 9 de março de 2014

O despertar da pessoa

Deu muito tomate nas terras de meu sogro, este ano, e tive a oportunidade de participar, dois meses atrás, de um mutirão familiar dedicado a transformar quilos e quilos (transportados em cestas e cestas) do fruto (porque tomate, senhores, é um fruto) em massa de tomate para guardar depois em potes e utilizar na culinária quando for o caso de preparar molhos para macarrão, para polenta mole, para risoto, e o diabo de escrever uma crônica dessas no meio da manhã é que começo a salivar e a desejar que chegue logo o horário do almoço.
Mas estávamos nós lá, agrupados em torno da tomataiada (qual o coletivo de tomates?), cada um desenvolvendo a tarefa que lhe fora destinada (uns lavando os tomates, outros cortando-os em cruz e jogando-os em um tonel com água no qual os mais habilidosos os iam esmagando para tirar-lhes as sementes e assim por diante), enrubescendo as mãos e compartilhando “causos”, quando a destreza de determinado membro da família chamou a atenção de todos. O indivíduo em questão (que não vou identificar por medo de ganhar menos presentes no Natal, é preciso pensar a longo prazo) demonstrava uma habilidade ímpar, e até então velada, em desempenhar com maestria todas as etapas daquele processo tomateiro, impressionando a todos.
Generosos e expansivos como somos, não poupávamos comentários elogiosos ao cunhado em questão (ahá... mas eu não disse cunhado de quem!), até que meu sogro, do alto de sua calma e sabedoria, resumiu tudo em uma frase: “Isso é o despertar da pessoa”. Aquilo calcou fundo na alma de cada um. Facas pairaram suspensas no ar por alguns segundos; borbulhas na tina de tomate estouraram silenciosas; movimentos ritmados cessaram; olhares se cruzaram. Isso tudo durante uma fração de segundo, lógico, porque logo seguimos adiante na balbúrdia porque o sol nunca para e ainda era preciso cozinhar aquilo tudo num tacho fervente e depois lavar as calçadas e fazer o almoço e descascar pêssegos e...
Mas o fato é que, em paralelo ao extrato que extraímos dos tomates naquela manhã de janeiro, extraiu-se da sentença de meu sogro a compreensão de que sempre haverá, em algum momento de nossas vidas, o despertar da pessoa. Nem que seja esmagando tomates. Ou lendo um livro. Ou escutando a história de alguém. Ou observando o mar. Ou na tristeza. Ou na alegria. Importante é que, em algum momento, a pessoa desperte. Não dá para passar a vida adormecido.

 (Crônica publicada no jornal "Pioneiro" em 8 de março de 2014)

sexta-feira, 7 de março de 2014

O xeque presente

Não era Natal, não era meu aniversário, tampouco Páscoa ou Dia das Crianças. A surpresa, portanto, foi muito intensa quando meu avô paterno chegou lá em casa para o tradicional chimarrão de sábado à tarde me trazendo dois pacotes de presente. Eu tinha 13 anos de idade e, junto com os embrulhos, recebia também uma importante lição, pois o que meu avô estava fazendo era o cumprimento de uma promessa.
Rasguei os papéis de presente e saltaram aos meus olhos o refinadíssimo estojo contendo 32 peças torneadas em madeira e com as bases de feltro vermelho, acompanhado pelo elegante tabuleiro. Tudo de primeira linha. Um jogo de xadrez completo, lindo, e meu. “Prometi que te daria quando tu me vencesses pela primeira vez no xadrez”, explicou meu avô. Eu não me lembrava da promessa dele, uma vez que a fizera “em passant” em uma remota tarde, um ano antes, quando se dispusera a sentar comigo e me explicar as regras básicas do jogo que, desde então, passou a me fascinar.
As aulas de xadrez haviam sido transformadas em ritual entre neto e avô. Todas as terças-feiras de tardinha eu saía de casa com minha irmã a tiracolo e cruzávamos a pé as seis quadras que nos separavam da residência dos avós. Lá, ganhávamos janta e, depois, meu avô e eu subíamos as escadas até seu escritório, onde o tabuleiro já armado nos aguardava. Minha irmã, nesse ínterim, ficava lá embaixo, na sala, jogando moinho com minha avó. Disputávamos uma partida de xadrez (que eu invariavelmente perdia, pois o propósito era aprender com os erros) e depois uma de damas, “para relaxar”, conforme ele dizia.
Certa noite, dei-lhe um xeque-mate. Quando fiz o movimento ameaçando seu rei e falei a frase, ele retesou o corpo na cadeira, empertigou-se, colocou a mão no queixo, analisou a situação em silêncio e, por fim, derrubou com um toque o próprio rei, dando-se elegantemente por vencido. Parabenizou-me, desceu as escadas relatando o meu feito, satisfeito. Duas semanas depois, veio o presente, que guardo até hoje como símbolo de que promessas devem ser cumpridas.

Sorte a do norueguês Magnus Carlsen, o supercampeão mundial que está em Caxias como convidado do Torneio Aberto Internacional de Xadrez da Festa da Uva, que eu não segui carreira nos tabuleiros enxadrezados. Optei por ir dando xeque-mates na vida mesmo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de março de 2014) 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Cesta doce e salgada

A pesquisa de campo sempre é a melhor ferramenta quando se pretende conhecer um pouco mais sobre os usos, os costumes, a cultura e os ritos de uma população específica. Tenho me dedicado, nas últimas semanas, a obter elementos que me auxiliem a compreender melhor as características específicas que definem e diferenciam as comunidades a partir dos produtos que integram aquilo que elas consideram como essenciais para a manutenção de suas famílias ao longo de um mês.
Isso tudo porque descobri que os tradicionais 13 artigos que compõem a cesta básica do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) estão caducando, e produtos como leite condensado, refrigerante, cigarros, cerveja, lata de pêssego e outros já passaram a integrar as listas de anseios básicos em várias partes do país, a começar por Caxias do Sul. Há muito que as famílias da região não se contentam mais com apenas carne, leite, feijão, arroz, farinha, batata, tomate, pão, café, banana, açúcar, óleo e manteiga. Ontem, revelei quais são os produtos que integram a “sporta” básica dos habitantes de Uvanova. Hoje, demonstro o que é essencial na “basiskorb” dos descendentes de germânicos que habitam parte da Serra, especificamente em Nóia Alpertina, perto ali de Teutônia.
Eis a lista: um quilo de joelho de porco (conhecido como “eisbein”); um quilo de costela de porco; um quilo de lombo de porco defumado (para fazer cassler); um porco inteiro de uma vez, para acabar logo com isso; dois quilos de repolho roxo (para fazer chucrute e comer com cassler); dois patos para assar com laranja; duas dúzias de laranjas para servir com os patos; seis quilos de repolho branco para produzir chucrute; doze litros de chope para acompanhar o consumo de chucrute; mais doze litros de chope para beber sem acompanhar nada; trinta quilos de batata para fazer de tudo com elas, de purê a maionese; dezesseis quilos de salsicha bock; quatro bisnagas de mostarda para colocar na salsicha bock; cinco quilos de maçã para fazer apfelstruddel, que as crianças adoram; sal para colocar nas comidas doces e açúcar para colocar nas comidas salgadas; bastante farinha para fazer cucas; uma gaita de boca para animar bandinhas.
Minhas pesquisas continuam...


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de março de 2014)

quarta-feira, 5 de março de 2014

A sporta de Uvanova

Abordei ontem aqui a questão intrigante da cesta básica de Caxias do Sul, na qual constam, a título de produtos essenciais para a manutenção mensal de uma família, artigos como cigarro, cerveja, refrigerante, capeletti, leite condensado, pêssego em lata, mamão e outros. Botei-me intrigado por culpa totalmente minha, pois quem sou eu para decidir e julgar o que se configura como essencial e básico na cesta de quem quer que seja, exceto a minha. Leve-se em conta o fato de que, na minha mastodôntica ignorância, sempre julguei que os produtos de uma cesta básica eram, por definição, bem mais básicos, como feijão, arroz, farinha de trigo, massa, açúcar, bolacha salgada, essas coisas.
Mas o mundo evolui e, com ele, até mesmo a antiga “sporta” (cesta) básica tem o direito de refinar-se e ficar mais exigente. Curioso por natureza que sou, contatei alguns conhecidos meus, habitantes de Uvanova, a pequena e simpática cidadezinha de descendentes de imigrantes italianos, fincada no alto da Serra, limítrofe a Tapariu, a Vila Faconda e a Polentawood, com o intuito de saber quais os produtos que compõem a “sporta” básica dos moradores dali. A listagem que recebi começa a desfazer meus intrigamentos e a me revelar que vale também aqui o ditado: “revela-me tua cesta básica e dir-te-ei quem és”.
Eis a lista dos produtos essenciais que integram a “sporta” básica mensal de uma família de quatro pessoas em Uvanova: quatro garrafões de vinho (“due rosso, uno bianco e uno rosé”, conforme assinalado na lista); cinco quilos de bigoli; dois litros de graspa; dois quilos de café em pó, para pingar na graspa; cinco peças de salame; bastante capeletti (pode ser substituído por agnoline); um litro de vinagre; um pacote de grôstoli; um pacote de strunfuli; seis quilos de farinha de milho para fazer polenta; três maços de radicci; um pacote de sagu; um rolo de fumo; um pote de codeguim; um pacote de tortéi; uma forma de queijo; uma peça de morcilha; um espinhaço para botar no feijão; um pacote de mandolate e outro de rapadura; uma bacia de puína; um recipiente de crem; 40 rodelas de pien; dois peitos de frango para fazer carne lessa; uma uvada para passar no pão de manhã; um naco de toucinho; uma espiral de “Boa-Noite” (inseticida tradicional); cinco quilos de lenha para o fogão; um vidro de sal amargo.

Ainda não sei o custo da “sporta” básica em Uvanova. Aguardem o resultado de novas pesquisas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de março de 2014)

terça-feira, 4 de março de 2014

A sporta básica

Confesso que não entendo nada de economia. No máximo, sei economizar, ou seja, essa coisa que se aprende desde criança ao guardar moedinhas no porquinho de plástico durante um tempo para depois carneá-lo com o canivete surripiado do pai a fim de torrar as economias de meses em uma rodada voraz de picolés sob a sombra de um jacarandá, com os coleguinhas e primos, em uma tarde de férias de verão. Mas de economia mesmo, essa de gente grande, abordada em páginas como o “Caixa-Forte”, do jornal Pioneiro, não entendo patavinas.
Números, para mim, servem para monitorar a situação da caderneta de poupança (amadurecimento natural dos cofrinhos carneáveis), quando não a ataco para pagar contas (a evolução natural dos inocentes picolés da infância); para detectar o aumento dos preços nas gôndolas do supermercado; e para marcar o número da página do livro que estou lendo. Fora isso, preciso da ajuda dos universitários. No caso, da titular do “Caixa-Forte”, mesmo, que me presta assessoria personalizada em questões numérico-econômico-financeiras (privilégio que detenho há anos e nem morto revelo as artimanhas que utilizei para obtê-lo).
Mas como não entendo de economia, é com prazer que às vezes me entrego ao encanto de saborear as surpresas que me causam alguns informes econômicos sem que eu os compreenda. A tal da cesta básica, por exemplo. Eu, na minha ingenuidade desinformada, sempre acreditei que os produtos que a compunham seriam aqueles inventariados como de primeiríssima necessidade (feijão, arroz, carne, leite, café, farinha de trigo, açúcar, óleo, manteiga...), desconsiderados os supérfluos. Qual a minha surpresa ao descobrir, na lista da cesta básica de Caxias do Sul, artigos como cerveja, cigarros, maionese, pêssegos em lata, refrigerante, leite condensado, mamão e capeletti (se tem capeletti, então não é cesta, mas sporta básica).

Claro, cada região, cada povo, cada cultura, possui uma visão específica do que seriam artigos de primeira necessidade. Meu vizinho pode valorizar mais uma lata de leite condensado (ou uma garrafa de cerveja, ou um maço de cigarros) do que um quilo de arroz. Todos merecem poder comprar leite condensado, mas isso não transforma o leite condensado em necessidade básica. Entusiasmado com a relatividade desse conceito, botei-me a listar a minha “sporta” básica personalizada. Lúcida, a titular do “Caixa-Forte” aconselhou-me a não publicá-la. Melhor dar ouvidos a quem entende...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de março de 2014)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Flertes com Momo

O segundo melhor Carnaval de minha vida aconteceu em meados da década de 1980 do século passado, quando eu ainda era estudante de Jornalismo em Santa Maria e decidi passar o feriado momesco na cidade, sem viajar para a casa materna em Ijuí, devido a compromissos relativos ao Diretório Acadêmico da Comunicação Social, cuja diretoria eu integrava. Depois de redigidos os textos combativos com os companheiros, de datilografados os conclames anti-ditadura na minha máquina de escrever portátil, de impressos os panfletos no mimeógrafo e de encerradas as discussões na reunião cuja principal decisão fora marcar a data de uma nova reunião, eu finalmente estava livre para curtir o feriado... porém... sozinho na Boca do Monte!
Para minha alegria, um amigo ijuiense que fazia residência médica e era rico para nossos padrões estudantis (morava sozinho em um apartamento alugado, possuía um Fusca 1300 azul, pagava rodadas de cerveja para a gurizada e tinha aparelho de videocassete), viajou e me emprestou a chave de seu apartamento durante o feriado, para que eu tomasse conta. Comprei umas latinhas de cerveja, aluguei oito fitas VHS na locadora e passei o Carnaval varando madrugadas e assistindo aos filmes que tanto queria ver e rever. Uma delícia.
Já o primeiro melhor Carnaval de minha vida deu-se alguns anos antes, na adolescência, quando ainda morava em Ijuí. Na quarta-feira de cinzas, coloquei uma máscara de monstro feita de látex, botei meus óculos de armação preta por cima da máscara, enfiei um casaco preto de couro com o zíper fechado até o queixo, calcei luvas e convenci minha mãe a sair dirigindo o Passat branco pela cidade, comigo no lado do carona, vidro aberto, meio corpo para fora, abanando para todos os transeuntes, gritando “grau” e causando sustos. Fi-lo porque qui-lo e porque mascarei-me, como diria Jânio Quadros.

Hoje, passadas a adolescência e a juventude universitária, varo as madrugadas de Carnaval afundado no sofá da sala, zapeando pelas transmissões ao vivo dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Caxias do Sul. Minha favorita no Rio é a Salgueiro. Em São Paulo, a Vai-Vai. Em Porto Alegre, a Embaixadores do Ritmo e, aqui em Caxias, ainda estou em fase de namoro. Mas o que tem de caxiense com samba no pé, é algo de impressionar passistas tarimbados forjados ao sol de Copacabana. E não é que polenta também tem ginga?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de março de 2014)

domingo, 2 de março de 2014

Canções atuais, mas não

Em fevereiro, tem Carnaval, mas às vezes ele ocorre em março, como este ano. Quando o consagrado artista lançou a canção “País Tropical”, em 1969, o refrão que ligava a festa popular ao segundo mês do ano ainda fazia sentido. Aliás, naquela época, Jorge Ben Jor ainda se chamava apenas Jorge Ben e não possuía mansão em Miami. Nem ele mora mais todos os dias do ano no país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, que tanto tinha orgulho em cantar, mas deixemos isso prá lá que não é o foco de nossa crônica.
O fato é que, hoje em dia, é preciso adequar as letras das músicas à evolução da realidade, tal como também acontece com o hino extraoficial da Seleção Brasileira de Futebol, “Pra Frente Brasil”, criada para a Copa de 1970 pelo compositor Miguel Gustavo. Na época, os versos iniciais diziam “Noventa milhões em ação./ Pra frente Brasil, no meu coração”. Bom, deixamos de ser apenas 90 milhões de brasileiros há muito tempo, e a letra teve de ir sendo atualizada com o passar das décadas e frente a cada nova edição de Copa do Mundo. Lembro-me de já ter cantado coisas como “Cento e vinte milhões em ação...”, mas o crescimento da população foi criando problemas para a cadência da letra. Ficaria esdrúxulo entoarmos nos estádios malabarismos rítmicos como “Duzentos e dezenove milhões e seiscentos mil em ação...”.
Hoje, pelo que percebo, chegou-se a uma solução perene para a letra, e querem que cantemos “Somos milhões em ação...”. Tudo bem, fica mais plausível e racional, mas perde totalmente o encanto e o charme dos 90 milhões originais. Eu sempre segui cantando “90 milhões” em todas as Copas do Mundo a que assisti desde que me interesso por futebol, a partir de 1978, e espero não ter sido por isso alguns azares que tivemos em edições como as de 1982, 1998 e outras.

Quanto à música do Jorge Ben (Jor, vá lá), já que Carnaval no Brasil não tem hora nem data para acontecer, poderíamos trocar para algo como “A qualquer hora/ tem Carnaval”. Afinal de contas, futebol e festa são instituições nacionais, sim, e quem está se lixando para a manutenção de tradições artísticas, históricas e culturais neste nosso país tropical? Deixemos isso prá lá e vamos ao que interessa: agora tem Carnaval, depois tem Copa do Mundo, mais uns meses há eleições e acabou-se mais um ano. “Brasil, mostra tua cara...”. Tem essa, também, né...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de março de 2014)