quinta-feira, 29 de maio de 2014

Um toque de rosa

Tem coisas que ficam muito lindas quando escritas pelos escritores e lidas pelos leitores, mas que, quando confrontadas com as dificuldades impostas pela vida real, correm o risco de se transformarem em discurso vazio ou, o que é pior, aumentar ainda mais nosso grau de irritabilidade. Essas bem-intencionadas dicas sobre como driblar a monotonia estafante do cotidiano raramente conseguem assentar banco na agenda do nosso dia-a-dia, apesar de, na teoria, concordarmos que sua prática seria deliciosa.
 Quem sabe muito bem disso é a amiga leitora aí, que precisa levantar cedo pela manhã (antes ainda do que o próprio sol, esse folgado), vestir a criançada, escovar-lhes os dentinhos, dar-lhes café e preparar o lanche, levá-los para a escola, ir para o trabalho, solucionar a pepinada que brota sobre a mesa, atender ao telefone, receber e-mails raivosos, lembrar de comprar papel higiênico porque acabou em casa, buscar as crianças, ouvir de noite as reclamações do marido contra o chefe dele, botar a turma para dormir, desmaiar na cama e preparar-se para mais um round no dia seguinte. Tá, e aquela pausa para o relax, com a esticadinha nas pernas e nos braços, os quinze minutos para o cafezinho tranquilo a olhar para a beleza do céu, que tanto nos sugerem esses textos, como é que fica?
Pois não fica, não é mesmo? Não fica, não sobra tempo para essas poetices dos escritores. Sem falar que você se esqueceu de ligar para o encanador e, raios, a torneira do banheiro segue pingando a nooooite inteiraaaaa. Pois é, não é fácil, concordo e admito.
Concordo, admito, porém, leitora, não se esqueça de que eu sou escritor também, e não posso me furtar das responsabilidades inerentes à minha atividade. Assim sendo, permita-me também fazer uma singela sugestão nesse sentido de enrosar (criei agora... significa “tornar mais rosa”) a sua rotina. Que tal experimentar, por exemplo, um dia desses, burlar a hora do almoço e usar esse tempo para ir sentar-se em um banco da pracinha ou parque aí perto e olhar a vida passar, sem nada mais? Não tem pracinha ou parque próximos? Bem, apenas dê umas voltas na quadra, você vai ver o poder recuperador de células estressadas que algo assim tem.

Ou faça como umas vizinhas minhas, que final de semana passado, em pleno frio, viajaram para a praia e adoraram o céu encoberto e a tranquilidade na estrada e à beira-mar. Ou ainda, à noite, deixe descansar a rede social e convide o marido para um jogo de cartas, ou qualquer outra coisa que sua imaginação sugerir. Não é tão difícil assim enrosar seu dia. Pronto, falei.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de maio de 2014)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Para calar a sereia

A vítima, dessa vez, foi Loreley. Loreley (a pronúncia correta é “Lorelái”) é uma sereia muito famosa na Alemanha - personagem importante da mitologia nórdica -, que costuma viver nas águas do rio Reno. Entre as cidades de Sankt Goarshausen e Kaub, o Reno faz uma curva fechada ao redor de um penhasco e sempre foi muito comum as embarcações, ao longo dos séculos, baterem ali nas rochas e afundarem. Tudo por culpa de Loreley.
Essa sereia em específico, dizem os que já a avistaram (e são muitos os moradores da região que costumam vê-la, conforme relatam aos turistas que acorrem à região para passear de barco ao redor do penhasco batizado com o nome da ninfa), é muito bela. Suas doces formas femininas se confundem com a cauda de peixe, normalmente escondida sob a longuíssima cabeleira dourada que lhe envolve o corpo todo, e seu canto é arrebatador. É com ele que Loreley enfeitiça os timoneiros e capitães das embarcações, levando-os a perderem o controle de suas naus e naufragarem naquele perigoso trecho de um dos rios mais famosos da Europa. Diabruras típicas de sereias, como bem o sabem heróis como Ulisses e outros que conheceram seus encantos.
 Meus avós, em viagem à Europa na década de 1960, passearam pela região e se encantaram com a lenda. Entre os souvenires que trouxeram da longa turnê, constava uma miniatura da sereia esculpida em pedra, reprodução da estátua que de fato existe naquele ponto do Reno. O mimo sobreviveu décadas guardado na cristaleira de minha avó em Ijuí, ao lado de outras delicadas lembranças daquela viagem tão marcante. Anos atrás, após a partida de meus avós, que devem ter escutado cantos definitivos de outras sereias, coube a mim herdar a bela relíquia familiar. Desde então, a pequena Loreley guarda a seção de autores alemães na minha estante de livros.
Guardava, até ontem, quando eu, Godzilla que sou, dei-lhe um cotovelaço enquanto organizava a estante de livros, arremessando-a ao chão e decapitando sua singela cabeça de sereia. Loreley, que resistiu à viagem transatlântica na bagagem de meus avós, da Europa ao Brasil, e sobreviveu incólume sobre sua rocha ao passar das décadas, sucumbiu aos meus modos reptilianos em questão de segundos.

Claro, restituí a cabeça ao corpo com super bonder (não sem antes fixar a cabecinha loira em meu dedo indicador, por descuido, logo solucionado) e não contarei o ocorrido a ninguém (conto com a discrição de meus quatro leitores, todos conhecidos e que me devem favores). E, juntos, damos todos graças por eu não ter escolhido a profissão de arquiteto...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de maio de 2014)

Feriados serranos

Véspera de feriado, como foi no domingo, é a melhor coisa do mundo, especialmente quando a folga cai em uma segunda-feira e você pode antever um longo dia de paz e sossego, longe dos afazeres atribulados do cotidiano, a dedicar-se apenas a aquilo que lhe dará prazer. Na noite anterior você se dirige para a cama já com um meio-sorriso nos lábios, recostando a cabeça e a mente no travesseiro, que se põe a aparar os pensamentos leves que você vai cultivando enquanto antegoza tudo aquilo que vai (ou que não vai) fazer no dia seguinte. E então adormece, tranquilo e sereno, como que acalentado por anjos.
No estado híbrido entre vigília e sono, você já se vê saltando da cama no dia seguinte na hora em que bem entender, o despertador desligado e enfiado embaixo da cama, a ditadura das horas varrida para o limbo pelo menos nesse dia. Caso tenha cônjuge e filhos, vai aproveitar para desenvolver programas em família, como caminhar no parque, brincar na pracinha, andar de bicicleta, fazer um churrasco, lavar o automóvel, dar um passeio até o interior, comer porcaria no shopping, ir ao cinema, visitar algum parente, passear de mãos dadas, levar o cachorro a cheirar terra, coisas do gênero.
Se for solteiro, vai dormir até a hora em que a cama, exausta de sua presença, o expelir para fora do quarto. Vai abrir a geladeira e fazer um sanduíche Torre-de-Babel, empilhando tudo o que houver pela frente (e que for digerível), a título de desjejum-almoço-lanche (para parecer chique, dirá a todos que fez um “brunch”). Depois vai se aparafusar no sofá da sala e ligará a televisão, ficando uma hora zanzando pelos canais e reclamando que não tem nada decente para assistir - isso se for homem. Se for mulher, vai telefonar para uma amiga, com quem vai passar essa mesma hora colocando uma parte da conversa em dia e marcando um encontro em uma confeitaria para dali a algumas horas, a fim de colocar em dia todas as outras partes que não deu para abordar pelo telefone. Coisas do gênero.

Mas, contudo, porém, entretanto... em morando em Caxias do Sul, ou na Serra Gaúcha, como acontece com boa parte de quem me lê, corremos o risco é de acordarmos com nosso feriadinho mergulhado na mais espessa e contundente neblina, o que levará nossos planos por água abaixo. Eu, que não me dou por derrotado, aproveitei para entocar os pés em meias e pantufas, degustar xícaras de cappuccino e proceder àquela prazerosa e intimista organização dos livros nas estantes, há tanto tempo protelada. Estão para inventar uma cerração capaz de nos estragar um feriado, pois não?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de maio de 2014)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Visitante clandestino

Ele não foi planejado. Não foi concebido com antecedência, não foi fruto de uma decisão cuidadosamente tomada com meses de planejamento e avaliação de prós e contras, como seria o aconselhável. Não, nada disso. Ele simplesmente decidiu aparecer em nossas vidas sem enviar aviso prévio, sem se anunciar, sem pedir permissões. Veio para transformar nossa maneira de ver o mundo e, como tal, está sendo muito bem vindo, pois que nos conquistou desde o primeiro instante em que fez manifestar os prenúncios de sua existência.
Desde então, ele está lá, no canto dele, crescendo e amadurecendo, sem que nada tivéssemos feito de forma deliberada para que assim sucedesse. É bonito, robusto, bem formado, indiscutivelmente saudável, para nossa alegria, satisfação e orgulho. Minha esposa não pensa duas vezes em exibi-lo a quem quer que visite nosso lar, jactando-se da qualidade do ambiente que propiciou seu surgimento. Afinal, quem iria esperar que florescesse um pé de tomate dentro do recipiente de terra instalado na sacada do apartamento a fim de cultivar temperinhos para avivar saladas e jantares despretensiosos? Quem?
E quando? De que forma? Como foi que surgiu ali aquele pé de tomate sem que ninguém semeasse suas sementes junto às mudinhas de salsa, cebolinha, sálvia, alecrim, manjericão e hortelã? Ninguém plantou tomate, ninguém esperava tomate, mas de repente começou a surgir ali o tomateiro, imponente, belo, viçoso, determinado a erguer-se, vingar e proporcionar-nos frutos. Uma pequena e singela amostra da maravilha indecifrável da vida a se manifestar espontaneamente na forma de um tomateiro clandestino na horta de temperos de nosso jardim de concreto suspenso.

E não se trata de um tomateiro tímido e discreto, nada disso. O pezinho apresenta-se ali garboso e generoso, anunciando, atrás do primeiro fruto, a sequência de pelo menos mais oito que já amadurecem ao sabor das alternâncias climáticas de nossa Serra. Ontem de meio-dia, após alguns instantes iniciais de indecisão e angústia, colhemos o primeiro tomate, maduro em sua vermelhidão tomatal, e o saboreamos com a devida pompa no almoço. Afinal de contas, poesias à parte, foi para isso que ele veio, não é mesmo? Ah, e tem mais oito. Porque no final das contas, quase tudo se resume aos ditames do estômago.
(Crônica publicada no jormal Pioneiro em 26 de maio de 2014)

domingo, 25 de maio de 2014

A vez do olinguito

O mundo era mais fácil de apreender até alguns anos atrás, quando não se tinha tanto acesso à informação e quando nossas aldeias se restringiam (e se conformavam) ao fato de serem, agirem e pensarem como aldeias. Mas o mundo mudou vertiginosamente e mesmo as antigas aldeias estão plenamente inseridas nele, mostrando na prática que, hoje em dia, tamanho não é mesmo documento.
 Você pode perfeitamente viver em Uvanova e gerenciar um negócio com clientes estabelecidos na Manchúria. Não precisa morar em São Paulo para conhecer as últimas tendências do que quer que seja. Tudo isso gera facilidades, mas, ao mesmo tempo, semeia complexidades que exigem cada vez mais esforços de nossas mentes para que nos mantenhamos sintonizados com o ritmo da vida moderna. O conhecimento não é mais estático, ele se transforma constantemente, deixando a comer poeira, por exemplo, aqueles que ainda acreditam que Plutão é um planeta, conforme minha geração aprendeu nos bancos escolares.
 Plutão foi rebaixado, gente, apesar de meus protestos particulares, que não deram em nada, como bem se vê. Plutão segue lá, firme e forte, no mesmo lugar de sempre, na nona e última posição do Sistema Solar, logo depois de Netuno, cumprindo sua orbitazinha ao redor do Sol como Vênus, Marte e todos os outros, só que a humanarada daqui da Terra decidiu, por “a” mais “b”, desqualificá-lo. Ele, que não tem internet nem perfil no facebook e faz tempo que não telefona, não está sabendo de nada, mas aqui na aldeia referir-se a Plutão como planeta é passar atestado de desinformado.

Ou seja, é preciso estar ligado, tá ligado? Ontem, por exemplo, dando lá minhas navegadinhas, fiquei sabendo que existe um Instituto Internacional para a Exploração das Espécies e que, todos os anos, a entidade divulga uma lista contendo as principais espécies animais e vegetais descobertas na Terra nos últimos meses. Ou seja, ainda estamos a descobrir bichos e plantas na natureza, que sequer sonhávamos existirem. Eis, então, que surge o olinguito, um mamífero simpático (“e fofo”, insiste minha esposa que eu ressalte) que vive encarapitado na copa das árvores dos Andes. Conhece o olinguito? Não? Ah, você é do tempo em que bicho era vaca, cabra e galinha, e animal estranho era o tigre do circo, não é mesmo? Pois é, meu caro, mas isso não basta mais. Entra na internet e vai lá conhecer o olinguito. Para não correr o risco de acharem que você vem de Plutão...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de maio de 2014)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Sobre balanças e espelhos

Existe uma relação diretamente proporcional e estranhamente perversa entre dinheiro e peso. Mas ó, quando digo “peso”, estou me referindo exatamente a isso que a amiga leitora pensou: os quilinhos a mais que todos os dias pela manhã nos fazem querer jogar pela janela a balança caseira que compramos no hipermercado com a intenção secreta de praticarmos a tortura contra nós mesmos sempre que nela subimos.
O ódio que passamos a nutrir (eita verbo que veio a calhar no contexto!) pelas balancinhas deve-se ao fato de que elas encarnam na prática do dia-a-dia a mesma função que, nos contos de fada, desenvolve o espelho encantado da Madrasta da Branca-de-Neve. O espelho, assim como a balancinha, é desprovido do senso de diplomacia e, simplesmente, não mente, nem mesmo omite ou camufla. Você pergunta e ele pá: responde na lata. “Espelho, espelho meu, existe alguém no mundo mais bela do que eu?”, inquiria a vaidosa rainha/madrasta/bruxa má. E o espelho mandava: “Sim, Branca-de-Neve é a mais bonita”. A mesma coisa a balancinha, né, amiga. Você sobe nela pensando que só por ter evitado ontem o sétimo bombom da caixinha o panorama no visor da balancinha iria mudar para melhor e eis a surpresa: nananina... você aumentou 200 gramas. É brabo.
Só não arremessamos o inocente objeto pelo meio das persianas porque as persianas são caras e o rombo no capô da camionete do vizinho lá embaixo, ao ser atingida pela balança voadora, nos causaria semanas de incomodação e bate-boca, que fariam a delícia dos cochichos pelos corredores do condomínio, causando-nos um desgaste tão grande que chegaríamos a perder o apetite durante vários dias e... opa... perderíamos o apetite? Bom, então, até que talvez o arremesso da balança não seria uma ideia tão imbecil assim... Pensemos...

Mas eu dizia o que mesmo? Ah sim. A relação estranha entre dinheiro e peso. O que eu estava refletindo ontem pela manhã, eu e minha barriga em cima da balancinha, é que gastar calorias é um ato difícil, enquanto gastar dinheiro é tão fácil. E, no inverso da moeda, ganhar peso é tão fácil, mas ganhar dinheiro é tão trabalhoso. Por que diabos a equação não se inverte? Pergunto a quem: ao espelho ou à balancinha? Pensando bem, no meu atual estágio, melhor evitar o contato com ambos durante algum tempo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de maio de 2014)

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O tribunal apressadinho

O imediatismo e a pressa, essa dobradinha de mesmo sangue que caracteriza a época em que vivemos, tem lá suas benesses, mas também engendra armadilhas em relação às quais seria saudável manter-se atento. Esses conceitos, que parecem pautar o mundo e a vida particular de cada um de nós, nos dão a impressão de estarmos inseridos em um contexto único na história da humanidade, em que as transformações são tão rápidas que, se piscarmos os olhos, passarão por nós sem que as tenhamos percebido e corremos o risco de perdermos o bonde.
Daí a tal da ansiedade que gruda em nossas costas desde o instante em que saltamos da cama de manhã até a hora de retornarmos a ela à noite, rezando para que ao menos os sonhos nos transportem para aquela ilha serena e deserta, o que nem sempre acontece. Daí advém boa parte dos males físicos e espirituais que passam a encontrar habitat convidativo em nossos corpos e mentes.
Bom, mas isso é só um aspecto da coisa toda. Outro, também decorrente da pressa e do imediatismo, diz respeito à nossa atual tendência de julgarmos as coisas superficialmente, de forma instantânea, adotando certezas e razões sem a devida avaliação ponderada que a maioria dos assuntos da vida requer. Estamos nos tornando imediatistas em nossa capacidade de julgar e de avaliar o mundo, e isso, sim, traz consequências preocupantes para o perfil da sociedade que estamos moldando nesse início de novo milênio.
Ao mesmo tempo em que não paramos mais para nos alimentar direito, não paramos mais para aprimorar nossos espíritos lendo e meditando, não paramos mais para cultivar nossas relações reais com as pessoas (redes sociais virtuais são o engodo do século nesse aspecto), não paramos mais para respirar o pulsar da vida, também não paramos mais para analisar com profundidade a avalanche de informações que nos são despejadas todos os dias, por todos os lados. Mesmo assim, não represamos nossa tendência natural de nos posicionarmos a respeito delas, julgando tudo superficialmente e ampliando os riscos de produzir e reproduzir julgamentos equivocados.

Nos transformamos em maniqueístas instantâneos. Sem maiores reflexões, somos rápidos em rotular as pessoas como boas ou más, os fatos como certos ou errados, e pronto, feito isso, vamos para cima. E daí surgem as monstruosidades que vão encharcando os noticiários com fatos horrorosos. Não por culpa dos noticiários, mas sim por culpa de quem protagoniza esses fatos. Ou seja: nós mesmos. Que tal pararmos para pensar um pouquinho, de vez em quando?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de maio de 2014)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os autógrafos de Romualda

Ele chegou cerca de quinze minutos antes da hora marcada para o início da sessão de autógrafos do novo romance escrito pela dona Romualda. Subiu as escadas que davam acesso ao mezanino do Centro de Cultura portando o bloquinho de anotações e com três canetas Bic cravadas no bolso da camisa, pois, apesar de novato, era esperto o suficiente para não ser pego de calças curtas caso uma das canetas falhasse na “hora h”. Ele sabia que é constrangedor falhar na “hora h”. Sempre.
Identificou dona Romualda junto à mesa dos autógrafos arrumando o buquê de flores ao lado de uma pilha de exemplares de “Videiras da Paixão” e tratou de se apresentar e informar suas intenções. Disse chamar-se Dionatan, que era repórter do “Magazine Cultural” e que fora enviado ali para cobrir a sessão de lançamento do seu novo livro. Mas que o editor o orientara a permanecer o tempo todo calado ao lado dela, apenas observando o ambiente, anotando os comentários que ela receberia dos leitores, sem interferir em nada, para depois escrever sua matéria. Se ela não se importava.
Não, ela não se importava, querido, ele poderia ficar ali, sim. Gostaria de uma cadeira para sentar? Ela providenciaria. Não, ele não queria cadeira, senhora, obrigado, ficaria em pé mesmo, quietinho, anotando, conforme o editor ordenara, ela que não se preocupasse, que fizesse de conta que ele não estava ali.
Mas não havia como fazer de conta que Dionatan não estava ali, porque Dionatan estava ali, e todos os que chegavam para cumprimentar dona Romualda por seu promissor “Videiras da Paixão” a questionavam a respeito daquele rapazinho estaqueado ali ao lado, duro, calado. No início, dona Romualda se deu ao trabalho de explicar a cada um quem era ele e o que estava fazendo ali. Mas logo se cansou daquilo e passou a inventar diatribes só para se divertir, dizendo, por exemplo, que “era um filho bastardo dela que viera aguardar a chegada do resultado do exame de DNA para constrangê-la frente a todos”, ou que se tratava do “garoto-samambaia” que ela adquirira como novidade na Floricultura Flor-de-Lis, vinda diretamente do Himalaia.

Inventava absurdos maiores à medida em que crescia sua irritação com a presença daquela estátua a seu lado. No meio da sessão de autógrafos, pegou a jarra de água de cima da mesa e regou o garoto-samambaia do Himalaia, levantando abruptamente da mesa, abandonando a fila de leitores que desejavam seu autógrafo e esperando só para ver o que é que aquele pirralho ousaria escrever no “Magazine Cultural” no dia seguinte. “Como essa imprensa nos tira do sério”, suspirava, ainda irritada, de noite, em casa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de maio de 2014)

terça-feira, 20 de maio de 2014

Em plena temporada

Os sinais dos tempos estão aí, o tempo todo, para serem vistos por quem quiser (ou por quem puder) vê-los. Lida assim, sem maiores senões, a frase de abertura deste texto pode dar a impressão de que o cronista vai abordar temas apocalípticos. Como não se trata disso, vamos logo aos necessários senões, senão já viu, né...
Pois os sinais dos tempos a que me refiro são aqueles hábitos, comportamentos e ações que passamos a adotar em nossas vidas cotidianas, decorrentes diretos do estágio em que a sociedade se encontra no momento atual, e que ajudam a revelar e a definir a época em que vivemos (pois sim, falar em “sinais dos tempos” de forma apocalíptica também é um sinal dos nossos tempos, mas deixemos isso para lá, já disse). Em termos culturais, chama a atenção um aspecto que até há pouco era irrelevante no momento de se traçar o perfil de alguma pessoa, mas que, nesses nossos tempos, vem ganhando um significado crucial quando se deseja conhecer os gostos de alguém e detectar pontos de convergência de interesses.
Trata-se dos seriados televisivos, que nos últimos anos vêm se transformando em fenômeno cultural em boa parte do mundo ocidental, o Brasil incluído. Nos dias de hoje, não basta mais desejar que a pessoa (especialmente as personalidades que por um ou outro motivo são entrevistadas para perfis na imprensa) indique os livros que prefere, os autores que gosta de ler, os filmes que marcaram, os atores e atrizes e diretores que mais aprecia, as músicas de que mais gosta e quais suas bandas mais queridas (ah sim, e tem ainda a cor preferida, a frase marcante, um lugar, um ídolo, uma comida, o número da sorte, o signo...). Para sabermos bem quem ela é, precisamos também que nos diga quais são os seriados televisivos que anda acompanhando.
Porque todo mundo tem um seriado televisivo (ou, normalmente, diversos seriados televisivos) que gosta de acompanhar. Valem também aqueles seriados antigos cujas temporadas já foram canceladas, mas que permanecem vivos nas reprises dos canais pagos e podem ser adquiridos em caixas de DVDs nas lojas. Um dos sinais dos tempos é esse: diga-me ao que assistes e dir-te-ei quem és. Como é? Quer saber quais são os meus seriados preferidos? Bom, eu até diria, mas terminou o espaço da coluna...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de maio de 2014)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Godzilla sou eu

Andei escrevendo aqui neste espaço, no final de semana, a respeito do novo filme do Godzilla, que está estreando nos cinemas do mundo todo. Godzilla, todos sabem, mas sempre é bom recordar para os incautos, é aquele lagartão gigante que tem o reprovável vício de sair do mar e devastar cidades a caudadas, só baixando a bola depois da ação de algum super-herói voador, ou do exército ou de cidadãos comuns que viram heróis pelas mãos dos criativos roteiristas.
Bom, mas foi só eu me botar a escrever algumas reflexões a partir disso para minha esposa passar a dizer que não precisa se dar ao trabalho de ir ao cinema para ver o Godzilla, uma vez que ela tem o discutível privilégio de vê-lo em ação aqui casa todos os dias, promovendo estragos relativamente semelhantes ou até maiores do que os danos causados pelo réptil original. Refere-se ela, com essa observação cínica, a mim mesmo, como o esperto leitor já deve ter desconfiado.
E se for esperto mesmo o leitor como julgo que seja, antecipará também a compreensão de que ela está coberta de razão em sua comparação metafórica entre mim e o astro-lagarto, haja vista minhas mais recentes atuações dentro do lar que com ela compartilho. Minha arrepiante capacidade de destruir não exige atributos reptilianos, pelo contrário: basta para tanto o uso descoordenado de minhas mãos e do restante de meu corpo que, a julgar pela forma como o manejo, bem que poderia ser dotado de uma cauda a fim de lhe proporcionar o equilíbrio que tanta falta faz quando me locomovo me esgueirando entre os pufes da sala, as cadeiras e as quinas das prateleiras.
Sábado, por exemplo, consegui torrar um aparelho de DVD ao tentar estabanadamente ligá-lo junto à tevê da sala. Esqueci que o trouxera de Porto Alegre e que a voltagem lá é 110, e não 220, como aqui em Caxias. Bastou enfiar a flecha na tomada para que eu desaparecesse com minha cara abobalhada por trás da nuvem de fumaça que saltou do aparelho, junto com o estouro denunciador da bobagem, que atraiu minha esposa aos saltos de lá de dentro para ver o que estava acontecendo.

Não era nada, apenas eu, Kirstzilla, em ação, mais uma vez, fazendo coro com a reaparição do lagarto original nos cinemas. A heroína aqui em casa acaba sendo minha esposa, que tenta proteger nosso patrimônio material e físico das minhas investidas, me despachando para o quarto a ler um livrinho. Minha esposa sabe domesticar Godzillas. Como é que Hollywood ainda não a descobriu?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de maio de 2014)

domingo, 18 de maio de 2014

A volta do lagartão

Andei lendo por cima nos jornais a notícia (a notícia não, a informação), a informação, então, de que um novo filme do Godzilla está estreando nos cinemas do planeta. O Godzilla, para quem nasceu ontem e eventualmente não saiba, é um lagartão gigantesco que solta raios pela boca. Ele emerge do mar, furioso, sem avisar ninguém, e se bota a destruir grandes cidades, especialmente no Japão, país em que foi originalmente criado para povoar em seriados televisivos as tardes de crianças do mundo todo em décadas passadas (eu fui uma delas, apavorado com o monstrengo em frente à televisão preto e branco e a válvula, marca Telefunken, naquelas tardes longas da infância na Rua dos Viajantes, em Ijuí).
Permanecem vívidas em minha memória telúrica as patadas certeiras que Godzilla (um ator enfiado dentro de uma fantasia tosca de borracha), incontrolável e ensandecido, desferia contra maquetes de prédios feitas em papelão nos estúdios televisivos. As imagens de destruição eram intercaladas com closes de multidões de pessoas apavoradas gritando e fugindo, cada um para um lado, o que intensificava a sensação de perigo que chegava a tirar o meu sono mais tarde quando, às nove da noite, meus pais me colocavam na cama. Nove da noite era hora de criança ir para a cama, naqueles tempos em que Godzilla arrepiava na televisão sem cores.
Pois agora informam que Godzilla está de volta, em nova versão cinematográfica produzida com os mais modernos efeitos especiais de Hollywood. Ah, pobre cidade que vier a ser devastada por esse Godzilla altamente tecnológico. Não vi o filme do Godzilla, tampouco verei o novo filme do Godzilla. Afinal, meu sono tem andando tão bem ultimamente que não quero correr o risco de despertar a criança impressionável que talvez ainda resida em algum lugar aqui dentro.

Mas confesso que fiquei curioso com a revelação, na matéria, de que a nova trama de Godzilla traz menos ação e mais drama. Sim, dizem que conseguiram enfiar um enredo com drama familiar e emocional no filme do Godzilla, não sei a troco de quê, uma vez que, o Godzilla que eu conheço, só se interessa por dar caudadas em arranha-céus. Vai ver que, para manter seu Ibope em alta, Godzilla precisa agora apelar a outros truques para enfrentar a concorrência no quesito destruição de cidades, o que vem sendo feito com bastante competência pelos humanos mesmo, que viraram experts em transformar seus habitats naturais (as cidades) em infernos decadentes. Quem, dos habitantes atuais do caos urbano diário, vai ter medo do lagartão?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de maio de 2014)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

A pedra no sapato

Somos criaturas incompreensíveis e insaciáveis, mesmo. Renegamos aquilo que desejamos a partir do instante em que o desejo é saciado. Conquistamos benesses que passam a nos parecer estorvos e depois criamos mecanismos para burlá-las. Ou não sabemos o que queremos, ou queremos o que não conhecemos, ou desejamos o que não precisamos ou sei lá qual é a nossa. Somos humanos, alguém aí vai fazer questão de lembrar, e eu vou responder dizendo que sim, somos, mas o que somos de fato é uns humanos bem chatinhos.
Reflexões como essas eram as que eu fazia noite dessas ao chegar em casa após um longo dia de trabalho que me exigiu praticar caminhadas exaustivas entre um ponto e outro da cidade a fim de cumprir as metas estipuladas por mim mesmo para aquela data. A meteorologia estava colaborativa e me proporcionara um dia ensolarado e com temperatura amena, o que me permitiu caminhar sem correr o risco de me ensopar com chuva ou com suor, aparecendo penteado, apresentável e sorridente em todos os lugares previstos.
Cumpridas todas as tarefas, a jornada se encerrava com o chegar em casa e trocar de roupa para então relaxar jantando e compartilhando os fatos do dia com a esposa. Sentado à beira da cama, desfazia os nós dos cadarços e liberava um longo suspiro de prazer ao desarrolhar para fora dos pés cada um dos sapatos. “Ahh, que prazer iningualável esse o de tirar os sapatos após um longo dia de trabalho caminhando”, pensava aquela parte de mim que produz pensamentos-chavões em modo piloto-automático.
 Mas logo a outra parte entrou em cena, aquela que tem como prazer próprio contradizer e questionar os pensamentos-padrões da parte Polyana, e me induziu a refletir que a humanidade precisou de séculos pisando em gravetos e espinhos para inventar os primeiros calçados para proteger os pés na caça aos mamutes ou nas fugas da fome dos tigres-de-bengala (o que seria da nossa linhagem humana se aquela tigrada não precisasse de bengala, hein?) e agora, que temos sapatos, ficamos nos achando no direito de pensar que o prazer reside em tirá-los dos pés, quando deveríamos era imaginar o horror a que estaríamos submetidos se, sem a invenção dos sapatos, tivéssemos de ir visitar os clientes tropicando nos paralelepípedos e grudando o calcanhar nos chicles jogados nas calçadas.

Viram como é difícil saciar um ser humano? E de quebra, o leitor ainda é brindado com um exemplo prático de como é complexo filosofar. Especialmente quando há uma pedra dentro do sapato.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de maio de 2014)

Aprendendo a ouvir

Um dos segredos para conseguir obter uma vida mais sadia é aprender a conhecer a linguagem de seu próprio organismo. Desde muito cedo, até mesmo porque se trata de instinto, aprendemos a detectar, por exemplo, algumas de nossas necessidades mais básicas, como fome e sede, e imediatamente tratamos de encontrar meios de saciá-las (no início, metendo a boca no mundo para ganhar a teta materna e, mais tarde, aprendendo a dizer “papá” e “mamá”, o que enche nossos pais de orgulho por imaginarem que os estamos a chamá-los, mas o que queremos é rango mesmo, e rápido).
À medida em que vamos crescendo e nos tornando seres mais complexos, nosso rol de necessidades vai também ampliando e se tornando mais cheio de melindres e requififes. Tirando de lado frescuras como a vontadinha de comer sorvete de rapadura ou de assistir a um novo filme estrelado pela Scarlet Johansson, alguns de nós, mais atentos e sensíveis aos sinais emanados pelos seus próprios corpos, aprendem a perceber que o organismo está necessitando, por exemplo, de glicose, ou de frutas, ou de verduras, ou de um pouco de carne, essas coisas. Cientes de que o corpo fala, vamos aprofundando canais de comunicação conosco mesmo, processo que, se bem organizado, resultará em indiscutíveis ganhos para nossa saúde física.
Padrões semelhantes ocorrem, a meu ver, também no âmbito intangível de nossas essências, ou seja, em nossa parcela não-física, que alguns podem batizar de alma, ou de porção espiritual, ou inteligência, essência, self, o que seja. Essa nossa parte de nós mesmos também tem fomes, desejos e necessidades, que gritam e precisam ser supridas de vez em quando, a bem de nossa sanidade mental (e/ou espiritual).
Noite dessas, por exemplo, detectei em mim uma necessidade grande de voltar a observar estrelas. Felizmente não chovia, a noite estava clara, enluarada. Peguei a cadeira de praia e assentei-me na sacada, a fim de saciar essa saudade que repentinamente se abateu sobre mim, de privar por alguns instantes da companhia muda e apaziguadora das estrelas que, incrível, continuavam lá, nos mesmos lugares em que eu as havia visto da última vez em que nos encontráramos, sei lá eu quanto tempo atrás.

Recarreguei-me nessa minha parte não corporal e voltei para dentro de casa e de mim mesmo, saciado. Quantas dessas necessidades não palpáveis será que andam gritando dentro de nós sem que lhes estejamos dando ouvidos? É fundamental aprender a não ser surdo a esses clamores.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de maio de 2014)

Páginas virtuais aos pingos

Con-ve-nha-mos, não é a mesma coisa. Tudo bem que é moderno, é o sinal dos tempos, a onda é irreversível, ou você se adapta ou sai da estrada, como bem nos ensinam os extintos dinossauros e quem é que quer ficar para dinossauro? Talvez somente a Tia Maricota, que, uma vez que já ficou para titia, não lhe custa nada ficar também para dinossaura, mas nós é que não, não é mesmo, leitor?
Mas é aquela coisa, a gente vai tentando se adaptar na medida de nossas possibilidades e no limite de nossas capacidades. Essa coisa, por exemplo, de ler a versão impressa dos nossos jornais pelo computador. A ferramenta existe, ainda é novinha em folha e estamos aprendendo a folhear as páginas com o mouse ou com o dedão mesmo e, aos trancos e barrancos, vamos nos amigando da coisa “adespacito”, como diria um xirú que conheço lá pros lados de Cambará. Mas não é a mesma coisa. Até porque, é aquela coisa da coisa, de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Fico aqui me perguntando como é que fica para aqueles leitores que possuem o hábito de começar a folhear os jornais pelo fim? Os amantes do esporte e os leitores fiéis dos colunistas da última página? Sim, certo, eu sei que existe o recurso de acessar direto a página que você deseja a partir de um menu, beleza. Mas para isso o xirú lá meu amigo precisa acertar a mira do dedão no íconezinho do menu na tela do tablet,  né, ô pá! E daí é aquela coisa de mete o dedão, erra a mira, toca em link errado e abre página com foto da Grazi Massafera de biquíni saindo das águas plácidas de Copacabana bem na hora em que a Tia Maricota passa ao largo com a cuia de chimarrão e não pensa duas vezes em dedar para a cunhada a safadeza do macanudo.
É dureza. O que sinto falta mesmo quando folheio digitalmente os jornais (porque ando procurando ser um inserido digital) é das marquinhas de café deixadas pelos leitores que me antecederam na leitura, como ocorre nos exemplares de boteco. Especialmente pingos de café pingado que, nessas horas, se transforma em café pingante e vai deixando as marcas de por quais páginas passou o vivente leitor antes de mim, como impressões digitais a lhe dedurar o interesse de leitura. As marcas pingadas de café pelas páginas dos jornais são o melhor sistema de indicador de interesse de leitura jamais criado, superando em acerto qualquer instituto verificador.

Agora, no tablet e no computador, inventa de pingar cafezinho ou derramar a erva do mate em cima, xirú velho, pra tu ver a reação da Tia Maricota...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de maio de 2014)

terça-feira, 13 de maio de 2014

Sob o império da barbárie

A delação, a desconfiança mútua e o medo são alguns dos mais hediondos legados que os regimes totalitários produzem no cotidiano das relações sociais entre as pessoas comuns obrigadas a viver sob a escuridão dessas ditaduras. Acusar o vizinho para salvar a própria pele passa a ser a tônica a reger o penoso passar dos intermináveis dias de subjugação ao terror. Foi assim na Alemanha nazista, no Brasil da ditadura militar e na Rússia barbarizada pelo regime de Stálin, só para citar alguns exemplos macro que marcaram o século que recém terminou.
Mas o horror assume variadas formas e não depende somente do estabelecimento de um regime ditatorial de governo para se manifestar e barbarizar a vida cotidiana das pessoas comuns. O horror também pode fincar suas raízes em sociedades cujo estado de direito faliu por incompetência e má-fé dos responsáveis legais por sua gestão, fazendo com que a ordem institucional dê lugar ao caos. E quando o caos passa a imperar, a sensação de que a carroça desgovernou sem freios ladeira abaixo passa a ser uma triste realidade palpável.
Tenho a sensação de que estamos, no Brasil, embarcados dentro dessa carroça do caos social sem freios, ladeira abaixo. Mal começo a conseguir deglutir a tenebrosa notícia do linchamento escabroso da dona-de-casa em Guarujá, no litoral paulista, ocorrido há pouco mais de uma semana, por ela ter sido injustamente acusada de ser uma sequestradora de crianças e praticante de magia negra, e já me pousa no colo, como uma bomba-relógio pronta a explodir, a notícia de que em Osasco, na Grande São Paulo, uma manicure de 26 anos foi torturada e morta, acusada de roubar um saco de biscoitos. Uma mulher acusou a moça de ter furtado os biscoitos de sua casa e contratou uma dupla de homens para sequestrá-la, torturá-la e matá-la.

O trio de acusados foi preso no final de semana. Apesar disso, não foi possível recuperar o saco de biscoitos. Tampouco será recuperada a vida da manicure, que, pelo visto, valia menos do que o produto que ela foi acusada de roubar. Fico aqui a me perguntar, neste início de semana, se ainda é possível recuperar a humanidade das gentes que nos cercam. E se ao sair de casa hoje alguém apontar para mim na rua e me acusar de ter roubado um pacote de grôstolis? Voltarei para casa à noite? Reitero que ando preocupado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de maio de 2014)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Os 800 anos do Português

Gomes Pais e Ramiro Pais eram dois irmãos portugueses que provavelmente viviam na cidade de Braga no século 12 e que, tudo indica, eram gente bem de vida, detentores de posses, influentes e importantes. Sabe-se pouco sobre eles, uma vez que são gente do passado e a reconstrução de biografias antigas é um desafio espinhoso para historiadores modernos, haja vista a escassez de registros oficiais, hábito que a humanidade passou a adotar muito recentemente.
Sobre os irmãos Pais, sabe-se algumas poucas coisas devido ao fato de, por volta do ano 1135 (data estimada devido a vários argumentos derivados de pesquisas históricas), terem decidido firmar um pacto entre eles, que foi registrado por um escrivão, em texto redigido sobre um pergaminho específico que tinha como suporte, em um dos lados, pele de carneiro. Nesse pacto, um dos irmãos se compromete a não contestar os direitos do outro em relação às suas terras. Este, em troca, também se compromete em ajudar a defender o primeiro no caso de agressões vindas de terceiros. O documento sobreviveu aos séculos e está guardado na Torre do Tombo, em Lisboa.
E o que é que nós temos a ver com isso? Bem, temos muito. Especialmente nós, que lemos e escrevemos utilizando a Língua Portuguesa. Isso porque o dito texto, conhecido como “Pacto entre Ramiro Pais e Gomes Pais” vem sendo considerado, por uma vertente de pesquisadores, como o primeiríssimo texto escrito em Português na história. Se isso for realmente verdade, o documento desbanca a primazia de outro texto, o “Testamento de Dom Afonso II”, que até então era considerado o texto-mãe da escrita portuguesa. O testamento foi assinado pelo rei português Dom Afonso II em 27 de junho de 1214, o que transforma a data como a oficial do nascimento de nossa língua. No mês que vem, portanto, se optarmos pelo testamento do rei ao invés do pacto entre os irmãos Pais, deveremos celebrar os 800 anos de existência oficial da Língua Portuguesa.

A atenção para o fato me foi despertada por minha madrinha na Academia Caxiense de Letras, Maria Helena Binelli Catan, ao me repassar um artigo aludindo ao tema. Faz 47 anos que utilizo a língua e jamais me dei por conta de que ela tem até data de nascimento. De fato, somos privilegiados até nisso, ora pois!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de maio de 2014) 

domingo, 11 de maio de 2014

Adeus aos ídolos

Sempre que morre uma pessoa famosa a gente fica meio que consternado como se a perda fosse parecida com a de um amigo ou a de um parente. Isso se dá de forma ainda mais aguda quando o famoso em questão integra a nossa galeria pessoal de personalidades a quem admiramos, pois as atitudes e as obras dessas pessoas marcam nossas próprias existências, viram referências daquilo que somos, de como vemos o mundo, de como pensamos.
A morte de um famoso que nos é referencial fala fundo a alguns aspectos de nossas essências. “Diga-me a quem admiras e dir-te-ei quem és”, poderíamos afirmar sem temor de incorrermos em maiores riscos ao analisarmos os valores de determinada pessoa. Pois este ano de 2014, que ainda nem chegou à metade, tem sido pródigo no ceifar de vidas de famosos importantes. Ao menos, alguns dos que têm desaparecido são referência para muita gente, como o ator José Wilker (protagonista de “Roque Santeiro”, a última novela a que me dei ao trabalho de assistir, ainda nos anos 1980), Gabriel García Márquez (cujo talento literário assentou em mim o vício incorrigível pela leitura quando ainda na adolescência) e Luciano do Valle (cuja voz narrou as conquistas de Nelson Piquet na Fórmula-1 e a derrota da Seleção Brasileira na Copa de 1982).
Agora quem se vai repentinamente é o cantor Jair Rodrigues, fulminado aos 75 anos de idade por um infarto, ele que estava ainda em plena atividade. Tratava-se de uma verdadeira lenda viva da Música Popular Brasileira. O nome dele está perenemente tatuado na minha própria biografia por culpa de um padrinho que teve uma ideia genial quando eu nasci, lá em Ijuí, décadas atrás.
Ao ser informado de minha chegada ao mundo, o tal padrinho entrou em uma loja de discos e comprou um “kit LPs da hora”. Ou seja, presenteou-me ao nascer com uma amostra da trilha sonora que embalava a galera naqueles idos de 1966, resumida em quatro bolachões: “Rubber Soul”, dos Beatles; um compacto contendo a música “Satisfaction”, dos Stones; “O Fino do Violão”, de Paulinho Nogueira e “Dois na Bossa Número 2”, a clássica reunião de Jair Rodrigues e Elis Regina.
Muito fui acalentado por meus pais ao som dessas obras de arte musicais, com as vozes de Elis, Jair, Paul McCartney, John Lennon, Mick Jagger (mais as cordas dedilhadas por Nogueira) se sobrepondo ao meu choro de bebê. Nossos ídolos podem ainda ser os mesmos e a perda de alguns deles dói, é certo, mas serve para reforçar nossos próprios valores.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de maio de 2014)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Ração para o ego

A novidade culinária do momento, nas cozinhas dos grandes chefs, dos grandes restaurantes, das grandes cozinheiras, dos grandes gourmets e dos grandes enganadores de avental (como eu), é uma panela modernérrima que agrega as funções de um forno sobre a chama do fogão. Além de visualmente linda, a tal panela é fabricada com material de última geração, sob as mais avançadas técnicas de feitura de panelas antiaderentes e mantenedoras de calor, resultando em um artefato útil, prático, fácil de lavar e de manusear, realmente revolucionário.
Temos a tal panela aqui em casa, providenciada pela senhora minha esposa, que sempre é muito mal intencionada no quesito cozinha, uma vez que decidiu que eu cozinho bem e, amparada nesse argumento (que meu ego altamente influenciável resiste em refutar), sempre que é preciso cozinhar ela empurra a mim para o fogão, vai me enfiando o avental e tacando a cebola na minha mão, enquanto se some apartamento adentro esperando ser chamada de volta só quando minhas estripulias gastronômicas estiverem prontas. Aí ela volta, se senta à mesa e aprecia tudo aquilo que eu vou enfiando no prato dela, abrindo generosamente as comportas de seus inesgotáveis estoques de elogios.
Sim, o amor é lindo. O amor ou a perspicácia, porque, na estratégia de não ter de assumir a administração do fogão, ela não só elogia todo o arroz queimado que eu faço (ou o feijão aguado, o bife arranca-dente, o estrogonofe com gosto de mar, o suflê murcho e pálido e a sopa de capeletti com sabor de agnoline), como divulga amplamente para a família e os amigos o fato (ou a versão dela dos fatos) de que eu seria (“ele é”, afirma ela) um cozinheiro de mão cheia. Esperta, ela. Faz a minha fama e não precisa cozinhar.
Claro que, frente a essa propaganda toda, a fila de amigos e parentes querendo vir jantar aqui em casa para conhecer os sabores de minha propalada competência cozinheira é cada vez mais longa. Mas eu, que não sou besta e não quero perder amigos nem ser deserdado pelos parentes, vou enrolando como posso. Enquanto isso, minha esposa, por tabela, vai conseguindo manter “inexplicavelmente” a forma. Como é possível ela andar na linha, leve e saltitante, se alega ter em casa um “personal chef” de meu quilate? A fórmula é simples: inventiva, arranja panela, senta à mesa, dá duas garfadas, rasga elogios e, depois, inteligentemente, fecha a boca. Resta a mim engordar o ego com os elogios e a pança com o resto do macarrão borrachudo. Sou uma anta... e cada vez mais gorda.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de maio de 2014)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A invasão bárbara

Precisamos resistir ao avanço da barbárie. Ela se manifesta de muitas e variadas formas, o que exige estarmos permanentemente atentos a seus movimentos. A melhor (e única) arma capaz de deter seu avanço, combatê-la e mesmo eliminá-la, é a civilidade. Civilização é antônimo de barbárie.
A barbárie só viceja e só se alastra sobre terreno destemperado de civilização. Se semearmos civilidade, estaremos criando escudos naturais contra a barbárie. A fórmula é simples, mas executá-la na prática é muito complicado. Requer esforço e envolvimento. Requer desejo de resistir. Exige que adotemos essa atitude de forma determinada. Requer tudo de nós, e o melhor de nós. De cada um de nós. Para que não sucumbamos à barbárie. Meu medo, meu maior temor, é que sucumbamos todos à barbárie. E a barbárie não dorme no ponto. Precisamos estar alertas.
Em tempos passados, distantes na História, o termo “bárbaros” era utilizado para designar povos violentos e desconhecidos, vindos de longe para conquistar, destruir, matar, estuprar, pilhar aquilo que as outras culturas haviam levado séculos para construir. Isso mudou. Hoje, os bárbaros estão entre nós, moram ao lado, são semelhantes a nós e, o pior de tudo, muitas vezes, habitam nossas próprias almas em segredo, onde são alimentados com nossas raivas, com nossos ódios acumulados, com nossas intolerâncias, com nossa tendência ao pensamento autocentrado, com nossa vontadinha de passar a perna em todos os demais em benefício próprio, com a violência que vamos acalentando e deixando latente lá dentro de nossos íntimos. E, quando menos esperamos, na primeira oportunidade, o bárbaro vem para fora e se manifesta com toda a sua selvageria característica.
Foi assim no final de semana em Guarujá, no litoral paulista, quando uma multidão linchou e assassinou uma dona-de-casa inocente, acusada erradamente de ser uma sequestradora de crianças. Não precisou muito para que a barbárie se instalasse, camuflada de justiça, pelas mãos de uma turba de gente que se imaginava “do bem”. Linchar não é fazer justiça. Linchar é crime. É barbárie. Mesmo que a moça fosse culpada daquilo que a acusavam (e não era), o linchamento seguiria sendo o mesmo crime horroroso que foi.

Foi barbárie. Pura e simples barbárie. Precisamos resistir a ela. A barbárie não vem mais de além-mar em embarcações lotadas de vikings distantes. Ela está aqui ao lado. Ela está dentro. E, se não cuidarmos, ela planta sementes dentro de cada um de nós. Precisamos urgentemente resistir. Confesso que ando bastante preocupado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de maio de 2014)

quarta-feira, 7 de maio de 2014

E vamos xingando

A deselegância, para não dizer o descontrole e a falta de educação, do técnico da Seleção Brasileira de Futebol, Luiz Felipe Scolari, ao xingar com palavrões o fotógrafo Roni Rigon, do jornal Pioneiro, que no domingo passado fazia seu trabalho ao cobrir a visita de Felipão ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha, causou espécie. O perfil pouco polido do treinador já é conhecido de longa data, porém, o que causou espanto foi a truculência das palavras aliada a um estado de espírito agressivo, carrancudo, hostil às manifestações naturais da população e da mídia à sua presença, haja vista a figura pública que ele encarna.
Mas eu não me espanto. O Felipão utilizou-se de palavreado de baixíssimo calão contra o fotógrafo e seu trabalho, lá no terreno sagrado do Santuário, sob os olhares escandalizados da santa que teoricamente foi homenagear, por uma simples razão: xingar e mandar as pessoas irem para “aquele lugar” são atitudes que, infelizmente, são encaradas como “naturais” no ambiente futebolístico. Prova disso é aquele outro fato recentemente ocorrido também aqui em nossas plagas serranas, que abordei em crônica recente, quando torcedores do Esportivo de Bento Gonçalves agrediram o árbitro com palavras e atos racistas em partida do Gauchão. Chamado às contas, um dos acusados, na tentativa de se defender, afirmou que não proferiu frases racistas, mas que apenas fez “xingamentos normais contra o juiz”. Xingar, então, é considerado “normal” no futebol por torcedores, jogadores, treinadores e todos os demais personagens das tramas desenvolvidas nos gramados.
O problema é que tudo aquilo que se transforma em “normal” devido ao uso comum, mesmo não o sendo (matar é “normal” nas guerras; estuprar também; justiçar com as próprias mãos é “normal” no submundo do crime e por aí vai), acaba virando regra de conduta, e é aí que mora o perigo. O xingamento, no cenário do futebol, de tão corriqueiro que é, se transformou em banal e usual. O problema é que o uso comum cria a falsa impressão de normalidade, levando as pessoas envolvidas a esquecerem que normal é que não é. Pode ser corriqueiro, mas não é normal, nem aceitável, nem louvável, muito menos justificável.

Daí a irmos nos xingando no trânsito, no trabalho, em casa, na escola, na vida, nos santuários, é só um passo. Driblar essa falsa normalidade é o desafio que se impõe às celebridades como Felipão e a cada um de nós.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de maio de 2014)

terça-feira, 6 de maio de 2014

A customização dos costumes

Hoje em dia você precisa customizar a sua vida. Na ânsia urgente de se mostrar diferente, de afirmar sua personalidade e seus valores frente a um mundo cada vez mais superlotado, as pessoas buscam ansiosamente, em tudo, maneiras de fugirem à massificação e acreditarem-se únicas. Para tanto, customizam a tudo e a si mesmas.
O mercado já percebeu essa tendência e, claro, está um passo à frente de todos nós, não só dentro da onda como na crista dela, ditando tendências. Sim, tendências da customização. Trata-se de uma contradição em termos, mas é isso mesmo o que acontece, basta observar em volta. Tempos atrás, a garota decidia chocar seus pais, seus familiares e amigos e, para tanto, pintava os cabelos de azul (alguém aí lembrou de Esther Pillar Grossi? Não? Ninguém? Aquela senhora ali, com o sorrisinho... lembrou, né? Ah, não quer revelar a idade... certo, certo... prossigamos...). Mas o espanto e o escândalo de outrora deram lugar para a customização da rebeldia e, hoje, a menina rebelde tem à disposição uma gama infinita de cores, matizes e combinações para pintar seu cabelo do jeito que bem desejar, isso sem falar nos modelos de cortes.
Quer pintar as unhas? Pode ser uma de cada cor, ou de cores alternadas, ou com desenhinho ou sem, enfim, customize suas unhas. Tatuagem? Pode ser feita onde bem entender, do tamanho que quiser, da cor que preferir. Customize o seu corpo. Quer refazer suas orelhas, diminuir o nariz, furar a testa? Customize o seu corpo a seu bel prazer, tudo é possível. Vai construir? Customize cada ambiente de sua nova casa, em cada detalhe. Cada centímetro quadrado de seu novo lar pode ser feito do jeito como você quiser, o impossível não é mais o limite. Customize sua viagem ao Exterior, sua férias na praia, seu sorvete, seu prato no bufê. Customize seu cafezinho com ou sem chantilly, grande ou pequeno, com raspas de limão ou de chocolate, frio ou quente, com ou sem graspa.
No mundo de hoje, você tem a oportunidade de ser mais você muito mais do que se tinha décadas atrás. Porém, nuca foi tão difícil, frente a tantas alternativas, perceber quem você realmente é, haja vista a gama imensurável de “vocês” que você pode ser. Corre-se o risco de, ao dobrar a esquina, a moça de cabelos verdes e camiseta dos Ramones dar de cara com outra moça de cabelos verdes com camiseta customizada dos Ramones. E vai que, ainda por cima, ambas gostem de sorvete de queijo com calda de morango?

Raios! Terão de aprender a se acostumar à customização em massa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de maio de 2014)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A grandeza do pequeno

Sempre há muito que aprender com quem possui mais cultura, mais história, mais trajetória e mais conhecimento do que a gente. Sempre. Esse é um dos segredos da sabedoria e um dos fatores a serem observados por quem pretende obter desenvolvimento e crescimento. Isso serve tanto para indivíduos quanto para agrupamentos de indivíduos. Serve até mesmo para nações inteiras.
Uma nação subdesenvolvida ética e culturalmente pode ter muito a aprender com nações que já atingiram patamares mais elevados nos quesitos que norteiam a convivência social. Nós, aqui do nosso Brasil do futebol, da alegria e da violência, podemos aprender bastante com povos de além-mar que estão alguns anos-luz à frente em questões importantes, como os direitos fundamentais do cidadão, por exemplo. Nesse quesito, o nosso país continental tem muito a aprender com o pequenino Principado de Mônaco, o segundo menor Estado do mundo (só fica atrás do Vaticano), com 202 hectares de área e uma população de cerca de 35 mil habitantes.
Isso ficou patente com a notícia de que a Família Real de Mônaco emitiu um comunicado oficial ao mundo, em que repudia a abordagem a respeito da vida da princesa Grace Kelly (1929-1982), feita pelo filme dirigido por Olivier Daha, com estreia mundial em 14 de maio no Festival de Cannes. “Grace: A Princesa de Mônaco”, traz Nicole Kidman no papel-título da obra que retrata a vida da famosa atriz de Hollywood que abandonou os holofotes para se casar com o Príncipe Rainier III, de Mônaco, até morrer em um controverso acidente automobilístico.
Mas a Família Real não gostou da abordagem efetivada pela obra cinematográfica e lançou nota oficial reiterando que o diretor não levou em consideração as observações feitas pelo Palácio do Principado. “Esse filme não pode ser classificado como uma biografia. Trata-se de obra puramente ficcional, baseada em referências históricas erradas e dúbias. A família da princesa não deseja ser associada a esse filme”, resume o comunicado.

Mas em nenhum momento a Família Real cogita a possibilidade de censurar o filme. Discordam, repudiam e manifestam seu ponto de vista. E ponto. Censura? Nem lhes passa pela cabeça. Já, do lado de cá do Atlântico, sempre que se trata de biografias, o gatilho da censura é acionado com destreza, altivez e desenvoltura, escancarando os nossos pés firmemente fincados nos atrasados conceitos totalitários de sociedade. Nossa caminhada para atingirmos o porte de um Principado de Mônaco ainda é longa, ó patrícios.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de maio de 2014)

domingo, 4 de maio de 2014

À espera de Han Solo

Causou-me espécie a notícia de que Hollywood anda tramando a volta da saga “Guerra nas Estrelas”, com o lançamento do sétimo filme da série previsto para dezembro do ano que vem. Sou da geração que era pré-adolescente e que assistiu no cinema (aqueles antigos cinemas de calçada) aos três primeiros longas da série, os hoje clássicos “Star Wars” episódios 4, 5 e 6, nas décadas de 1970 e 1980. Darth Vader, Han Solo, R2-D2, Princesa Leia, Luke Skywalker, C-3PO, Obi-Wan Kenobi e Chewbacca povoam minha mitologia particular de personagens inesquecíveis, intimamente ligados a uma fase da vida que sempre é significativa.
Circulou esses dias pela internet e nas páginas dos jornais uma fotografia do elenco do futuro filme reunido para iniciar as leituras do roteiro. Fiquei emocionado com a imagem mostrando, em uma ampla sala, as presenças conjuntas dos atores da trilogia moderna (os episódios 1 a 3, filmados no final dos anos 1990 e início dos anos 2000) e os da saga clássica, confirmando que a intenção vai mesmo virar realidade. E estavam todos lá: Harrison Ford (Han Solo), Carrie Fisher (Princesa Leia), Mark Hamill (Luke Skywalker), Peter Mayhew (Chewbacca) e todos os outros. Essas reuniões saudosistas de astros pop que marcaram épocas cruciais de nossas vidas trazem uma poderosa carga de nostalgia que nos remete à essência daquilo que somos e das pessoas em que nos transformamos, nos fazendo refletir sobre nossas próprias trajetórias a partir da cultura que nos molda.
Ver esses atores reunidos décadas depois, para renovarem o sonho que embalou nossas infâncias, faz soprar um vento revitalizador em nossas almas, e é por isso que nos enternecemos e vibramos com esses reencontros. A sensação é de que nossa própria vitalidade pessoal recebe um novo sopro de ânimo. Que bom poder voltar a sonhar no cinema com atores desse quilate reencarnando personagens tão queridos. Mesmo que não seja mais em cinema de beira de calçada; mesmo que um misterioso gongo grave não mais produza um som de uma nota só (”dommm”) ao apagar das luzes na sala, indicando o iminente início da sessão; mesmo que a gente não bata mais os pés no chão de madeira produzindo um ruído estrondoso antes de o filme começar; mesmo que o Canal 100 não exiba na telona os lances cinematográficos da movimentação futebolística do país nas últimas semanas; a magia ainda estará lá, nos duelos de sabres de laser, que não poderão faltar.
A criança que nunca expulsei de mim exulta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de maio de 2014)

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Cidadão dose dupla

Em uma cidade afeita às nuances repentinas da instabilidade climática como a nossa, faz-se imperioso que as pessoas moldem em si mesmas um perfil prevenido. Eu, por exemplo, valho por dois. Prova disso foi dia desses, semana que passou, que amanheceu lindo, claro, ensolarado, céu azul despovoado de nuvens, nem sequer um fiapinho ao longe, os pássaros matinais cantando alegres a saudar o astro-rei, o cenário todo injetando ânimo nas almas trabalhadoras e estudiosas que passavam a povoar ruas e calçadas.
Tudo muito lindo. Mas eu, que valho por dois, farejava algo no ar. “Que foi, amor, sentindo cheiro de queimado? Será que desliguei o ferro?”. Não, nada disso. Coisa minha. Terminei de me arrumar e, ainda antes de fechar a porta, o elevador já chegando, voltei para dentro e passei mão no guarda-chuva. “Para que isso, amor? O dia está lindo. Não vai chover nada”. Sim, sim, certo. A questão é que eu valho por dois. E fomos, cada um para seus afazeres.
E não é que logo depois do meio-dia, pimba, despencou-lhe aquela chuvarança? Aquela mesma, que eu farejava no ar de manhã cedo, apesar do sol e dos passarinhos ingênuos. No trajeto entre o restaurante e a livraria-café, na qual eu decidira tomar o cafezinho pós-refeição, desviava eu garboso meu guarda-chuva dos desprevenidos passantes que corriam molhando-se por todos os lados, eles, que levaram fé nas promessas vãs do clima antes de saírem de suas casas. Eu, que valho por dois, seguia firme, tranquilo e seco, sob o pano protetor de meu guarda-chuva.
A cafeteria estava apinhada de gente pingando chuva e pedindo cafés. O porta-guarda-chuvas da entrada denunciava a imprevidência alheia: vazio. Estacionei meu objeto ali e adentrei o recinto. Já sentado, assomou-me um temor. Percebi que a chance de meu guarda-chuva solitário ser afanado por algum imprevidente na saída era altíssima. Acelerei o sorver de meu cappuccino a fim de me mandar dali e resguardar a posse de meu precioso patrimônio.

Mas, para minha surpresa, meu guarda-chuva permanecia lá estacionado e intocado. Ninguém o roubara. Meus concidadãos haviam respeitado minha previdência. Paguei e rumei para minha reunião de início da tarde, guarda-chuva em punho mais uma vez. Cheguei lá sequinho e fui ao trabalho. Duas horas depois, findo o compromisso, saí para a rua e o sol já voltava a brilhar, naturalmente, depois de encharcar 500 mil habitantes menos um: eu, que valho por dois. Ao chegar em casa, minha esposa notou a ausência de meu guarda-chuva. Eu o esquecera no local da reunião. Logo eu, que valho por dois. Por dois asnos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de maio de 2014)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O dom e o drama

A crise dos 40, que acomete preferencialmente as pessoas que atingem quatro décadas de vida e se botam a pensar sobre o milagre da existência (de sua própria existência, claro está), atingiu Osvaldino na consciência (em outros, ela ataca áreas diversas como a pança proeminente, os pés-de-galinha ao redor dos olhos, a nuca com a tatuagem da Avril Lavigne feita na adolescência...). Osvaldino viu-se aportando na metade de sua trajetória existencial sem nunca ter desenvolvido nenhuma aptidão artística, ele que se formara em Contabilidade e passava os dias enfileirando números e dedilhando máquinas de calcular.
Estava da hora de direcionar a vela de seu barco pessoal rumo a passeios por mares mentais nunca antes explorados, e ia ser já. Osvaldino estudou as diversas formas de expressão artística existentes e achou meio tarde para ir aprender a tocar fagote ou a pintar aquarelas ou a encenar “Hamlet” na Casa da Cultura. Osvaldino queria algo que lhe proporcionasse resultados mais imediatos e veio-lhe a luz: “vou ser escritor”. Ora, pensou Osvaldino, escrever, todo mundo que está alfabetizado sabe, basta pegar uma caneta e um papel ou sentar à frente do computador e mandar bala, não tem mistério, todos escrevem, até seu vizinho já lançara um livro.
Depois de escutar uma palestra proferida por um cronista famoso na cidade, recomendando às pessoas que desejassem escrever que participassem de concursos literários, Osvaldino decidiu começar produzindo contos para submetê-los ao certame citadino. Tendo ido dormir com esses pensamentos na cabeça, Osvaldino foi acometido de madrugada por um surto criativo que o fez pular da cama para anotar aquelas inspirações que as musas generosamente lhe sopravam, na forma de uma série de aberturas para contos.
Um deles começava assim: “Era frio. Muito frio”. O outro: “Era mau. Muito mau”. Depois veio: “Era perverso. Muito perverso”. E Osvaldino foi anotando. Mais tarde, a inspiração para aberturas de contos evoluiu para “Era noite. Noitíssima!”; “Era tarde. Tardíssimo!”; “Era rico. Riquíssimo!”. Osvaldino, inspirado (inspiradíssimo), continuou evoluindo: “Era feio. E como!”; “Era odiado. Muito!”. Até chegar à sua obra-prima de abertura de futuro conto: “Chovia. E aos cântaros!”.

Agora, Osvaldino tem um problema. Não sabe como continuar nenhum de seus contos já abertos. Osvaldino se transformou em uma obra inacabada de projeto de futuro escritor. Estranho, uma vez que escrever é tão fácil...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de maio de 2014)