segunda-feira, 30 de junho de 2014

O pega-varetas

É no dia-a-dia e nas atividades mais prosaicas do cotidiano que vamos detectando a importância de termos tido destreza em algumas das brincadeiras mais inocentes da longínqua infância. Não canso de admirar, por exemplo, todos os dias, a inacreditável habilidade que minha esposa apresenta no momento de lavar a louça e ir moldando uma cada vez mais alta e periclitante pilha de utensílios sobre as limitadas dimensões do escorredor. É surreal.
Os pratos e potes vão servindo de base para a estrutura toda, que vai sendo edificada em camadas com a chegada posterior dos coadores, das panelas, das tampas das panelas. Pelos lados, vai surgindo um cerco semicircular de xícaras e copos emborcados, por sobre os quais passam a repousar, provocando os efeitos da lei da gravidade, o ralador de queijo, as frigideiras, o abridor de latas. Paralelamente a isso, o espaço destinado aos talheres, disposto na horizontal em nosso escorredor, também vai formando uma pilha à parte, em um entrevero de colherinhas, colheronas, garfos, facas, facões, que, se você puxar um deles errado, vem-se abaixo a torre toda e aí, criatura, será um deus-nos-acuda.
Mas o desastre jamais acontece, porque ela tem esse dom raro de saber equilibrar a coisarada toda sem que despenque sequer uma colherinha de chá, daquelas miudinhas. E olha lá a tampa da panela de pressão, que se equilibra exibida no topo da pilha toda, radiante ali como se fosse uma estrela de Belém no alto de um pinheirinho de Natal. E tudo isso sabe devido a quê? Pois explico: minha esposa era expert em fazer castelos de cartas de baralho, na infância. Foi ali, em Uvanova, naquelas longas tardes serranas, comendo polenta brustolada, que ela desenvolveu a técnica e a habilidade de empilhar sem deixar cair, que agora lhe são tão úteis para a harmonia (e a assepsia) de nosso lar.
E eu, sabe onde é que entro na história? Eu sou o cara que consegue, mais tarde, desmontar a pilha toda para guardar a louça seca, sem derrubar nadica de nada. Vou tirando as peças uma a uma e a pilha mantém-se sempre sólida, inderrubável. Como consigo isso? Simples: é que fui também eu, na infância em Ijuí, um ás no jogo de pega-varetas. Cada varetinha removida na infância sem mexer na pilha geral das varetas representa hoje uma xícara retirada da pilha de louça sem derrubar nada.

Então fica a dica, gurizada: larguem um pouco o computador e as xbox e vão lá empilhar cartas e jogar pega-varetas, se quiserem ter, no futuro, um casamento harmonioso. Bom... isso se no futuro, em uma vida cada vez mais virtual, continuar existindo louça que quebre, vai saber, também...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de junho de 2014)

sábado, 28 de junho de 2014

Insânia centenária

A data deste 28 de junho de 2014 marca o primeiro centenário do fato histórico que serviu de gatilho para o início do conflito armado que ficou conhecido como Primeira Guerra Mundial. Foi nesse dia que, 100 anos atrás, o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, foi assassinado junto com a esposa Sofia, em um atentado realizado em Sarajevo, capital da Bósnia, por conspiradores separatistas que queriam a criação da Grande Sérvia.
Depois dos tiros, o mundo prendeu a respiração durante um longo mês em que os esforços diplomáticos serviram apenas para camuflar o verdadeiro espírito de entusiasmo bélico que movia as nações (e, incrivelmente, as populações) da maioria dos países europeus naquela época. Todos queriam a guerra. E como a queriam, a tiveram a partir de 28 de julho, quando o conflito verdadeiramente começa, com a invasão da Sérvia pelo Império Austro-Húngaro, seguida pela Alemanha invadindo Bélgica, Luxemburgo e França. A partir daí, foi-se o boi com a corda ao longo de quatro penosos anos de uma carnificina ensandecida jamais vista até então na história do mundo, resultando na morte de 19 milhões de pessoas (esse número total de vítimas varia, não é conclusivo, por simplesmente ser impossível quantificar o número verdadeiro de mortos em um conflito de tamanha magnitude).
Esses 100 anos do início da então chamada Grande Guerra, ou Guerra Europeia, como era conhecida na época, não servem para celebrar nada, ao contrário. Servem, sim, para reacender a chama da memória a respeito daquelas posturas e ações que não devem jamais ser repetidas. Apenas 21 anos depois do término do conflito, que se deu em 1918, o mundo, que não purgou o problema e não teve tempo (ou não quis tê-lo) de aprender com o erro, mergulhou novamente no mesmo transe genocida e protagonizou um conflito imensuravelmente pior: a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

Neste 28 de junho de 2014, 100 anos depois do estopim da primeira das grandes guerras mundiais que marcaram o século passado, o que se propõe é uma pausa profunda para cimentar a convicção de que o mundo não precisa e não merece mais protagonizar eventos daquela natureza. Que nossas batalhas se restrinjam às disputas fraternas entre nações dentro das quatro linhas de campos de futebol, como as que ocorrem agora na Copa do Mundo do Brasil, nas quais a única vítima potencial pode ser, eventualmente, a bola.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de junho de 2014)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Fome, só por bola

Jamais. Jamais uma mordida de um ser humano em outro será justificável. A não ser em casos em que a prática esteja inserida em um contexto de demonstração de afeto, aquela coisa “mordidinha carinhosa”, que os casais apaixonados bem conhecem. Mas é só. Fora isso, uma pessoa atracar a dentadura no corpo de outra é crime de lesa civilização. E se mordeu, precisa responder pela consequência de seu ato canibalístico.
Essa é a discussão que se impôs desde a tarde de quarta-feira, quando percorreu o mundo a imagem do jogador uruguaio Luis Suárez cravando os caninos no ombro do italiano Chiellini, em partida da Copa do Mundo que despachou a seleção italiana de volta para a bota europeia. Além da humilhação da má performance do escrete tetracampeão mundial, Chiellini leva de volta na bagagem as marcas da dentadura do uruguaio tatuadas em seu ombro. Lamentável. Pior quando se fica sabendo que Suárez é reincidente na prática da mordida nos adversários dentro das quatro linhas. Em não havendo punição exemplar, estará aberta a porteira para o futebol ir se tornando uma disputa entre rottweilers e pittbulls... ganha quem morde mais. Ruim, hein?
O boxeador Mike Tyson também entrou para os anais do esporte maculado por bocanhadas ao cravar os dentes na orelha de Evander Holyfield no ringue em 1997. Cena dantesca, melhor nem ser lembrada. Nada disso se justifica. Meu afilhado de dois aninhos, dia desses, foi mordido por um coleguinha dele na escolinha, no dia em que todos deveriam levar brinquedos de casa e emprestá-los entre si, para irem aprendendo a noção de partilhar. Meu afilhado levou um cavalo garboso e o tal coleguinha quis adonar-se dele. Meu afilhado quis proteger a propriedade de seu cavalo e levou do coleguinha mordida nas costas. Mas são crianças, o episódio faz parte do processo de aprendizado, apesar de também precisar ser imediatamente identificado e coibido.

Eu já tinha uns bons duns dez anos de idade quando cravei meus dentes com toda a força do mundo nos dedos do dentista que enterrava uma broca malvadíssima dentro de uma cárie em um dente meu, naquelas cadeiras de dentistas sem anestesia dos anos 1970, em Ijuí. Lacrei a boca e meti-lhe a dentadura, para que ele provasse da dor que estava me causando. Foi mal, lembro da marca dos meus dentes nos dedos gorduchos dele, e da cara de apavorado que fez. Eu não devia ter feito isso, e nem serve de exemplo para nada. Cravar os dentes não é civilizado, a não ser para degustar um hambúrguer ou uma costela bagual. Ademais... que gosto ruim a orelha do Holyfield, o ombro do Chiellini, o dedo do meu dentista... As costinhas do afilhado... bom... ele é fofo... até eu morderia... É o único caso justificável.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de junho de 2014)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O mais belo livro

Não tem jeito, a regra é essa e jamais será diferente: toda a boa história sempre chega a um fim, por mais que estejamos apreciando seu desenrolar. No cinema, as luzes vão se acender, surgirão as letras do “The End” e você terá de se retirar da sala. Aquele romance caudaloso, de centenas de páginas saborosas, inevitavelmente vai conduzir os olhos do leitor para o desenlace final. Tanto o bom filme quanto o bom livro, depois de apreciados, serão remetidos para a memória, e passarão a fazer parte de nossas próprias histórias de vida, servindo de referência, de amparo, tanto nas boas horas quanto nas difíceis, em que precisaremos de alento por meio do exemplo.
Assim também se dá com aquelas pessoas queridas que cumprem suas trajetórias de vida e depois nos deixam. Quando são pessoas marcantes, ativas, positivas, propositivas, daquelas que vêm ao mundo para fazer a diferença entre os que as cercam, seu passamento se equivale ao fim de um bom filme, ao término de um bom livro. Essas pessoas encerram suas trajetórias físicas entre nós, porém, deixam um legado infinito, que se mantém vivo nas nossas lembranças, seguindo sua missão de fazer a diferença entre nós, agindo como amparo e exemplo. Somos gratos a essas pessoas e felizes por termos tido o privilégio de conhecê-las, de termos podido fazer parte de seu mundo e por termos enriquecido nossas próprias histórias a partir do contato com elas.
Assim se dá com a escritora e professora Maria Helena Balen, que fechou o livro de sua história de vida ontem, aos 76 anos de idade completados apenas três dias antes. Era minha amiga, colega da Academia Caxiense de Letras (entidade que chegou a presidir), patrona da Feira do Livro que me antecedeu e me passou a honraria, parceira no compartilhar a alegria de ler, de escrever, de cronicar e de viver. Como todos os que a cercavam, vou sentir falta do seu bom humor, de seu abraço generoso, do estilo elegante de seu texto, da sensibilidade que se ampliava à medida da moldagem da sabedoria que extraía do pensar a existência, da conversa amiga, do exemplo vívido da participação ativa em seu meio, da percepção que tinha da importância de se importar.

Maria Helena Balen vai fazer falta. Vai fazer aquela falta impreenchível que fazem as pessoas raras e iluminadas, generosas e partilhadoras de vida. E, como fazem as pessoas como ela, encontraremos conforto para essa falta na lembrança daquilo que elas foram e de todo o legado humano que nos deixaram. Maria Helena, você foi um dos livros mais belos que já tive a oportunidade de ler. Obrigado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de junho de 2014)

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Inspiração a cavalo

Ontem vi um cavalo desgarrado correndo insano pelas ruas daqui do bairro, pouco depois do meio-dia, quando me dirigia ao centro, de carro. Arremeteu pelo cruzamento coincidentemente no momento em que o sinal estava verde para ele, mas tenho dúvidas de que o tenha feito por ser um bom observador das leis de trânsito. O bom observador era eu, que estava parado ao vermelho do meu lado, o que foi uma previdente sorte a evitar ser abalroado pelo equino solto e apressado. Não sei para onde ia, mas na manhã seguinte pensei que aquele pequeno episódio poderia render uma crônica.
Mas não rendeu. Nem tudo que cruza o sinal rende crônica. Um cavalo, um motorista desrespeitoso, uma senhora de bengala. Quer dizer, tudo isso pode render, mas não rende obrigatoriamente, se é que me entendem. Abandonei o cavalo louco e fui para as pesquisas. Com as pesquisas, descubro que hoje, 25 de junho, é o Dia do Cotonete. É, sim, está lá, escrito. Não sei se é verdade ou sacanagem, afinal, a internet, assim como o papel e nossas mentes, aceita qualquer coisa, e pode muito bem ser piada de algum espertinho. Mas de qualquer forma, está lá: Dia do Cotonete. Fica difícil saber, uma vez que inventam dia para tudo, não seria surpresa existir mesmo o Dia do Cotonete. Bom, pode render crônica.
Fui estudar a origem do cotonete. Descubro que a haste higiênica flexível foi inventada por um polonês em 1920. Tem o nome do tal polonês. Tenho preguiça de copiar e escrever o nome. Sem falar que, daqui a seis anos, em 2020, talvez o assunto renda crônica, quando o cotonete fizer um século de existência. Mas agora, não. Abandono o cotonete ao lado do cavalo cruzador de sinais verdes.
Súbito, recordo as novas aventuras de meu afilhado, agora que ele já fala frases com sujeito, verbo e predicado; pede para visitar a casa dos dindos; conta episódios acontecidos na escolinha e conversa ao telefone. Concordo que é tudo terno e encantador e que renderia nova crônica sobre os passos do despertar de uma criança (ou sobre os passos do despertar de pais e de padrinhos/tios), mas estou bloqueado. Sou invadido por uma sensação de culpa ao colocar o afilhado junto aos temas descartados para esta crônica, sentado sobre o cavalo desgarrado, a segurar uma caixinha de cotonetes aniversariantes.

Tem dias em que não há nada de errado com o mundo, muito pelo contrário. Quem acorda na contramão é você mesmo. O segredo é reconhecer a coisa e não querer ficar botando a culpa no cavalo que cruza o sinal. Afinal, cruzou no verde. Não há nada de errado com ele. Talvez um cotonete me destampe os humores. Ou um abraço do afilhado. Amanhã prometo uma crônica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de junho de 2014)

terça-feira, 24 de junho de 2014

Homenagem cósmica

Será que eles sabem? Será que a informação já chegou até lá? Acredito que, para que eles ficassem sabendo, seria preciso que uma notícia dessas viajasse à velocidade da luz, percorrendo zilhões de quilômetros espaciais em frações de segundo, devorando as distâncias astronômicas com a rapidez de um pensamento. Não. Ainda mais veloz do que o pensamento. E se sabem, será que se importam? Será que dão a mínima? Será que, lisonjeados com a deferência, estipularam também lá longe uma retribuição em homenagem a nós? Como saber?
O fato é que hoje, dia 24 de junho, é o Dia Internacional do Disco Voador. Um dia para homenagear os homenzinhos verdes que tripulam charutos voadores que singram os céus do nosso planeta de tempos em tempos e que nos fazem ficar pensando que, ufa, não estamos sós nesse latifúndio de espaços vazios que é o universo. Talvez não sejam verdes, claro. Dizem, alguns que já os viram, que são cinzas e esqueléticos. Mas como provavelmente não procedem todos do mesmo lugar, as formas deles variam tanto quanto os formatos de suas naves espaciais: discos, pratos, charutos, esferas, triângulos luminosos...
Alguns deles, inclusive, afirmam os entendidos (conhecidos como ufólogos, já que UFO é a sigla em inglês para OVNI, que significa Objeto Voador Não Identificado), até já circulam entre nós, disfarçados de seres humanos. Ocupam até, para nosso espanto, cargos importantes na ONU, no governo dos Estados Unidos, no Vaticano, na Academia Brasileira de Letras (ah, ali sim, tem bastante ETs...), em Hollywood, no Congresso Nacional em Brasília (bah, ali tá cheio também), nas filas para visitar o Museu do Louvre (cada vez mais extensas por causa deles, fruto do incremento do turismo espacial), no trânsito das grandes cidades, nos shows de funkeiras filósofas (ficam curiosos, juram que isso não existe em nenhuma outra parte do universo), nas nossas ruas, nas esquinas, nas calçadas.
Dia desses, vi um deles sentado meditando na beirada do Cânion do Itaimbezinho. Apreciava nossa natureza terráquea exuberante e dizia estar com saudades de sua casa feita de goma de mascar, da esposa com duas cabeças e dos filhos lindos em formato de bumerangues. Flagrei o rolar de uma lágrima nostálgica pela rugosa face de crocodilo. Como dizia Rachel de Queiroz, em crônica de sua autoria que ficou famosa: “Eu por mim acredito”.

Eu também. Por que não? Tenho visto ao redor tanto humano desumano que seria imbecilidade não acreditar em extraterrestres. Parabéns a eles todos pelo seu dia.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de junho de 2014)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

As cores do Golias

Para as aulas de catecismo, quando eu era criança, tínhamos um livrinho ilustrado com cenas das principais histórias da Bíblia, histórias essas que estudaríamos com os catequistas e cujos ensinamentos nos deveriam servir de alguma coisa para nossas vidas. Isso era lá nos meados dos anos 1970, um mundo bem diferente desse que está aí hoje, por várias razões.
Uma delas era justamente as tais ilustrações do livrinho de catecismo, todas elas em preto e branco, concebidas para que as coloríssemos com os lápis-de-cor que assomavam em nossos elegantes e exibicionistas estojos. Eu tinha um com 24 cores, incluindo o branco (que usei para pintar as barbas de Noé) e o preto (útil para a barba de Barrabás na cruz). Ficávamos encantados com a possibilidade de colorirmos todas as gravuras daquele livrinho, e nos lançávamos em uma velada disputa para ver quem o fazia de forma mais bela.
Uma das cenas que mais me exigiram dedicação foi a do pequeno Davi com sua funda em punho, pronto para arremessar a pedra rumo à cabeça do cabeludo e gigantesco Golias, estaqueado ali, com cara de mau, ameaçador, espada em punho, aparentemente indestrutível. Sabíamos, devido às histórias contadas pelos catequistas, que Davi acertaria a pedrada na testa do gigante e o derrotaria devido ao uso da astúcia, da inteligência, em detrimento da mera força física. Pintávamos Davi com esmero e dedicação, pois ele era o herói da história, contra as cores sombrias com que vestíamos o malvado Golias.
Por vias indiretas, ou talvez obedecendo à intenção real da moral da história, passamos a aprender a torcer pelos mais fracos, a criarmos dentro de nós o sentimento de empatia pelos menos poderosos, de necessidade de cultivar a justiça e de protegermos quem parece não ter forças para fazer frente aos Golias da vida. E agora, nessa copa do Mundo do Brasil, em que seleções aparentemente frágeis andam a dar imenso trabalho aos times historicamente mais fortes e tradicionais, percebemos que a era dos Davis parece estar chegando para ficar. O salto alto dos Golias do futebol anda trincando no meio dos gramados e os sustos estão se acumulando.

Ou é a Era dos Davis que se estabelece, ou, quem sabe, o que as metáforas dos campos de futebol andam querendo mostrar é que o que chegou ao fim foi a Era dos Golias. Nesse mundo globalizado, a ingenuidade não tem mais lugar nem mesmo no futebol. Roncar grosso e cantar de galo são coisas do passado e não há lápis-de-cor capaz de camuflar as verdadeiras tintas do mundo atual. Humildade e esforço parecem ser as únicas fundas hoje capazes de fazer frente aos desafios gigantes que temos, seja na área que for. Mantenhamos nossos lápis sempre bem apontados, portanto...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de junho de 2014)

domingo, 22 de junho de 2014

Gol contra nas alturas

Coitado do Mario Sergio Conti. Fiquei com pena dele, do mico pelo qual passou, ainda mais por ter pagado esse mico por pura ingenuidade pessoal ou por desinformação mesmo, o que, no caso dele, é grave, uma vez que se trata de jornalista conceituado no centro do país. Eu, assim como boa parte dos meus leitores, não sabia quem era o Mario Sergio Conti, até o mico dele ter virado notícia nacional esta semana. Ruim, isso, virar notícia nacional devido a mico pago. Daí que me deu pena.
Pois aconteceu de o Mario Sergio Conti, colunista do jornal “O Globo” e da “Folha de São Paulo/UOL”, apresentador da Globonews, embarcar em um voo na ponte Rio-São Paulo poucos dias atrás e pimba, dar aquela sorte de jornalista, de se sentar exatamente ao lado do técnico da Seleção Brasileira, Luiz Felipe Scolari! Conti não teve dúvidas: aproveitou os cerca de 40 minutos do voo e arrancou declarações interessantes do treinador em plena competição, como a de que “se tivéssemos três jogadores como o Neymar, a Copa seria uma tranquilidade”.
Foi “tá e pá”! O avião aterrissou e Conti voou para a redação, a colocar nos sites dos órgãos de imprensa para os quais trabalha as bombásticas declarações quentíssimas e exclusivas que obtivera do Felipão, seu colega de voo. Só que... só que não era o Felipão, gente. O técnico da Seleção Brasileira não fica pegando voo sozinho na ponte aérea Rio-São Paulo, especialmente em pleno andamento da Copa do Mundo, né. Tratava-se de um sósia. O jornalista Conti entrevistou ninguém menos do que Wladimir Palomo, sósia de Felipão que, inclusive, faz ponta no programa “Zorra Total”, da Rede Globo. Xii... que mico!
Tudo bem, o engano foi logo desmentido, não houve gravidade alguma, exceto a bola fora do jornalista. Mas eita que sósia mais competente esse, não? Eu, ao ler a notícia, não tive dúvidas: levantei da sala e corri ao espelho do banheiro para fitar a mim mesmo, imaginando qual a personalidade famosa pela qual eu seria capaz de me fazer passar. “Brad Pitt... David Beckham... Tarcísio Meira... Godzilla não vale, que sou melhor do que o original... Justin Bieber...”. Nisso, minha esposa passa pelo corredor, vê a cena e dispara: “Ah tá vendo? Tá horrível mesmo, né? Quando é que vai cortar esse cabelo?”.

Felizmente, eu tenho quem me traga de volta à realidade. Foi o que faltou ao lado do Mario Sergio Conti naquele voo, aquele dia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de junho de 2014)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O cavalo do rei

“Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo”! Foi da imaginação genial de William Shakespeare que saíram essas poderosas frases, atribuídas ao Rei Ricardo III na peça de mesmo nome, escrita mais de 400 anos atrás.
Rei Ricardo III, grande tirano, está no campo de batalha, já no final da peça, e sabemos que ele vai morrer. Não vemos as cenas explícitas de combate (Shakespeare nos poupa do explicitismo e dos efeitos especiais que são a tônica das criações cênicas cinematográficas da modernidade), mas temos noção de sua selvageria devido aos efeitos delas, como o estado lastimável do Rei e seu desespero ao detectar que seu cavalo foi abatido e ele precisa de outro animal para se mandar dali e preservar sua vida.
O Rei implora aos ventos por um cavalo. Implora a quem quer que possa ouvi-lo e providenciar-lhe o único meio de fuga capaz de lhe evitar o destino trágico e certo (e predito em sonhos pelos espectros das vítimas de suas crueldades). Que alguém lhe faça surgir um cavalo! Ele está disposto a dar seu reino inteiro em troca de apenas um cavalo que lhe permita garantir a posse de seu bem mais precioso: a própria vida. Logo ele, que desvalorizou as vidas de quem quer que se interpusesse em seu caminho ao longo da peça. Só que agora é tarde, Rei Ricardo, afinal, você não tem mais poder de barganha, pois seu reino lhe escorre das mãos, e nada há para trocar.
Ricardo clama pelo cavalo, mas é abatido logo depois por espadas que redimem a ordem e a justiça ao final da peça shakespeariana. De nada adiantaram o desespero e a frase de efeito. Lembro do Rei Ricardo quase todos os dias pela manhã, quando sento-me aqui para escrever estas linhas diárias. “Uma crônica. Uma crônica. Meu reino por uma crônica!”, vou eu bradando em silêncio pelos cômodos do apartamento, na esperança de que as musas da inspiração se condoam de mim e me soprem um tema aprazível. Às vezes, funciona. Outras vezes, não. O problema é que nenhuma das musas acredita no meu poder de barganha, afinal, elas são antigas e já viram esse filme antes: Ricardo não tinha mais reino nenhum a ofertar em troca do cavalo. E eu, que reino haverei de ter para cambiar por uma crônica?
As musas sabem que meu desespero não é para tanto, nem chega aos pés daquele que acossava Rei Ricardo, o descavalado. Tenho a sorte de, nesses momentos de crise inspiratorial, poder lançar mão a uma metáfora presenteada por Shakespeare e resolver meu pequeno draminha. Sorte a minha não ser personagem shakespeariano. E de não precisar comprometer a entrega de meu reino, afinal, as prestações são a perder de vista...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de junho de 2014)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Ritos à risca

Mais um amanhecer. Vamos aos rituais preparatórios para o enfrentar de uma nova jornada. O termo “ritual” parece soprar ventos de teimosia e chatice, mas, se formos analisar bem, não é sempre assim. Com o passar do tempo, vamos não só adotando e criando novos rituais como também reformatando os antigos.
Sair da cama, por exemplo. É uma coisa aos 20 anos de idade, e outra aos 40 (sim, sim, 40 e poucos... e tantos... tá... sim, quase 50, certo, certo... que tem isso a ver com a essência do texto?). Aos 20, a gente desperta, espreguiça o corpo, abre os olhos, levanta-se de um ímpeto para sentar-se no leito, gira-se o corpitcho (aos 20 ainda é um corpitcho), lança-se as pernas para fora e pimba... estamos eretos em um salto, ao lado do leito. Mas aos 40... 40 e poucos... sim, senhora, aos quase 50... precisamos empreender um ritmo mais pausado ao velho e bom ritual que há tanto tempo nos acompanha. Não podemos sair acordando e catapultando nossos corpos para fora da cama em um ímpeto, porque não temos mais a antiga agilidade juvenil para tanto. Se assim o fizermos, tontearemos, teremos vertigem, o sangue não acompanhará nos músculos o movimento que nosso cérebro desejava realizar.
 É preciso apascentar o ritual, adequá-lo ao ritmo certo. Da mesma forma se dá com todos os demais ritos que definem nossas existências cotidianas. Um amanhecer com tempo firme em Caxias do Sul, por exemplo, permite sair (calmamente) da cama e fazer uma caminhada de uma hora pelas ruas do bairro, obedecendo à recomendação médica de exorcizar o sedentarismo e botar alguma atividade nesse corpit... hann... nesse esqueleto aqui.

Tênis calçados, abrigo vestido (nos tempos do corpitcho, vestia-se “macacão” mesmo e era tudo muito natural) e vamos ao mundo, caminhar. Na terceira esquina, lá está ele, o cachorrinho não-sei-quem-e-nem-de-quem, que deu de me esperar ali sempre que o dia está bom, para me acompanhar ao longo de todo o trajeto dessas caminhadas. Virou meu amigo silencioso e fiel nesses meus raros momentos de atividade física pelo bairro. Não sei que idade tem e se também está a seguir prescrições veterinárias antissedentarismo canino. O fato é que me acompanha. Arranjou em mim um humano eventual de estimação, a fim de movimentar e abrilhantar os seus próprios ritos. Afinal, nunca sabemos até que ponto somos fundamentais, importantes e significativos para os rituais dos outros...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de junho de 2014)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Ao ritmo das baterias

Nos tempos de antanho, nossos adereços para sairmos de casa se resumiam ao chapéu, à bengala, às luvas, às perucas, aos relógios de bolso, às gravatas, às sombrinhas, às echarpes, aos lenços perfumados, aos bigodes, às suíças e costeletas. Tudo muito simples, tudo muito romântico e elegante. Ataviávamo-nos defronte ao espelho, conferíamos se tudo estava no seu devido lugar (o lenço elegantemente dobrado no bolso da frente do paletó, pronto para ser alcançado a alguma indefesa dama espirrante na primeira esquina na rua, por exemplo) e saíamos ao mundo, desfilando garbosidades.
Ah, isso sem falar no delicado estojinho de rapé, aquele pozinho provocador de suaves espirros que foi moda em várias partes do mundo durante algum tempo, pois não é mesmo? E também as polainas, aquelas alvas capinhas protetoras de calçados, tão úteis na época em que calçadas e paralelepípedos eram luxos existentes só nas ruas das áreas mais centrais das cidades. Ademais, era poeira e barro mesmo e não sei como é que as damas mantinham limpas as barras dos brancos vestidos rodados com que desfilavam pelas praças e avenidas nas horas do “trottoir”.
Alguém ali lembrou também dos elegantes estojos dourados ou prateados para as cigarrilhas, claro, como olvidar? E as piteiras, lembrou a senhorinha que ergueu o dedo! Sim, as piteiras, é verdade, que finura que eram, a senhora tem razão. E os colares de pérolas, pérolas de todas as cores: brancas, alaranjadas, azuis... a sua tia guarda até hoje? Sim, a minha também... que lembranças bonitas!
Hoje, dizem que o mundo ficou mais prático, mais fácil, mais informal. Ninguém precisa mais de chapéu, cartola, fraque, relógio de bolso, caderneta e lapiseira, essas coisas. Solucionamos tudo saindo de casa correndo e passando a mão nas parafernálias eletrônicas que se transformaram nas bengalas de nossas vidas: celular, ipad, tablet, notebook, iphone, smartphone, netbook... Mas ai de você, ai de mim e ai de qualquer um de nós se esquecermos de dar em casa a maldita carga na bateria. Abandonamos as piteiras para nos tornarmos escravos dos cabos dos carregadores. “Que fim levou o carregador do celular? Não, esse é o do ipad...”.

Ontem, por exemplo, fiquei feliz porque esqueci o guarda-chuva na livraria. O lapso de memória me fez sentir gente de novo. Diferentemente do outro eu que esqueceu de carregar a bateria do celular antes de sair para a rua e me tornar assustadoramente incomunicável durante algumas horas. Se eu sem celular tenho a impressão de me apagar para o mundo moderno, ao menos eu molhado de chuva tenho a sensação de respirar vida real de novo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de junho de 2014)

terça-feira, 17 de junho de 2014

O Taj Mahal de cada um

Vou dar início a um movimento internacional em favor da transformação da data de hoje, 17 de junho, no Dia Internacional dos Namorados. Ou também poderia a data ser intitulada Dia Internacional da Paixão. Ou Dia Internacional do Amor. Nesse caso aqui, compreendendo-se os termos “amor” e “paixão” como aqueles sentimentos únicos direcionados para aquela pessoa especial que você permite se adonar de seu coração e se transformar em sua cara-metade.
Agora, explico o por quê. Nessa mesma data, 383 anos atrás, em 1631, morria em Agra, no norte da Índia, uma bela princesa de 38 anos chamada Mumtaz Mahal, nome que na língua persa significa “a joia do castelo”. Até aqui, nada demais, afinal, princesas morrem o tempo todo ao longo da história da humanidade, porém, o passamento dessa resultou em algo muito especial: a construção do mais famoso mausoléu do mundo, o Taj Mahal, considerado desde 2007 pela Unesco como uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo Moderno.
O belíssimo monumento erigido em mármore branco é uma das principais atrações turísticas da Índia, configurando-se em um legado que o imperador indiano Shah Jahan deixou à posteridade, como expressão do amor que sentia pela princesa Mumtaz Mahal. Reza a história que a princesa Mahal morreu ao dar à luz o 14º filho do casal real, o que entristeceu demais o soberano, que era nada menos do que o quarto imperador Mogol, ou seja, o cara não era pouca coisa.
E para mostrar ao mundo que pouca coisa ele não era, e que o tamanho de seu amor pela princesa era tão grande coisa como a grande coisa que ele era, o imperador mandou construir em homenagem a ela o Taj Mahal, o mais belo mausoléu do universo, obra que levou 21 anos para ser concretizada e que exigiu a mão-de-obra de 20 mil trabalhadores trazidos de todas as partes do Oriente. O Taj Mahal foi concluído em 1653, sendo que o imperador Jahan morreu somente 13 anos depois disso, em 1666, provavelmente eternamente inconformado com o passamento de sua “joia do castelo”.

Assim como o rei Jahan, todos nós temos também nossas “joias do castelo”, independentemente do gênero de cada um. Mas como rei Jahan foi um só, estamos desobrigados a construir mausoléus suntuosos para nossas caras-metades (até porque não haveria mármore suficiente no planeta para tamanha demanda) e nem precisamos esperar que elas passem para expressarmos a elas o tamanho de nosso sentimento. Um “bom dia” com um sorriso nos lábios, uma flor de vez em quando e uma frase carinhosa também são capazes de representar essa grande coisa que sentimos por outra pessoa. Somos todos capazes de carregar um indescritível Taj Mahal dentro da alma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de junho de 2014)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

De olho na zebra

O que gosto mesmo nesses jogos de Copa do Mundo é das zebras. Tem algo mais delicioso do que ser surpreendido por uma seleção campeã do mundo levando uma goleada histórica já na sua partida de estreia, como o que aconteceu com a Espanha, batida em 5 a 1 pela Holanda, dias atrás? O que se espera de uma partida entre essas duas potências europeias do futebol é um embate equilibrado de forças, resultando em um palatável empate de zero a zero, 1 a 1, ou mesmo uma vitória sofrida de um dos escretes por um placarzinho apertado. Mas jamais 5 a 1! Zebra, total.
Isso sem falar dos países costeiros, que nessa arrancada de Copa do Mundo no Brasil decidiram brilhar um pouco. Tipo assim: se for para fazer figuração, vamos pelo menos incomodar e chamar a atenção. E chamam a atenção materializando as zebrinhas nos gramados. Que o digam os uruguaios, que estrearam perdendo de 3 a 1 para a equipe da Costa Rica. Se dependesse desse palpite para ficar rico na Loteria Esportiva, ninguém levaria o prêmio. Até porque, ninguém mais fica rico na Loteria Esportiva, né, já que estamos a falar em zebras...
E abram os olhos quando a Costa do Marfim entrar em campo. Basta ver o que fizeram com os japoneses no sábado à noite, vencendo a seleção do país do sol nascente por 2 a 1, de virada. Por mais que Zico tenha ensinado o Japão a jogar futebol, quem andou aprendendo melhor as lições foram os marfinenses mesmo, emplacando mais uma zebra nesse início de competição. Adoro essas zebras. Exceto quando envolvem a Seleção Brasileira.
O gol contra do Brasil contra o Brasil na primeira partida nossa, contra a Croácia, me causou um calafrio antártico na espinha. Estrear com gol contra, em casa, na tão sonhada segunda Copa do Mundo no Brasil, não é apenas uma zebra, mas uma manada zebrada. Felizmente a situação foi revertida em tempo de o azar inicial passar batido, uma vez que vencemos a Croácia e levamos os três pontos, como era de se esperar. Mas o aviso foi dado e é preciso estar alerta. As zebras têm como hábito rondar os estádios de futebol camufladamente. Elas desenvolveram táticas especiais para se infiltrarem nos estádios burlando a segurança e, quando a gente se dá por conta, lá estão elas, dentro do gramado, pintando (em listras brancas e pretas) e bordando gols para quem menos se espera.
Zebra no placar dos outros é divertido. Mas quando elas começam a forçar a cerca do quintal da nossa casa, é preciso estar alerta. Quando se trata de Seleção Brasileira, sou conservador: prefiro a lógica. E a lógica, nesse caso, é Brasiu-iu-iu-iu-iu...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de junho de 2014)

domingo, 15 de junho de 2014

Foi, não foi...

“Quer pipoca? Posso fazer pipoca rapidinho, no micro. Tudo a ver, partida da Seleção com pipoca”.
“Sim, pode ser, amor, só sai de frente da tevê porque já começou, tá legal”?
“Ó, pipoca. Um pote pra você e um para mim. Bah, e se a gente pendurasse uma bandeira na janela? Toda a rua está embandeirada, menos nós. Lembra que a gente tem aquela bandeira do Brasil? Onde será que ela está”?
“Agora não amor, depois do jogo a gente procura e coloca. Agora senta aqui do lado no sofá e assiste comigo a partida”.
“Baaahhh! Falta no Neymar! Por que o juiz não marcou a falta? Ladrão! Sacana! De onde é esse juiz? Vai ver nem jogam futebol no país dele”!
“Não foi falta, amorzinho, foi lance normal. Futebol é assim. Jogo de contato”.
“Mas antes foi igual e você disse que foi falta, e ele também não marcou”.
“Sim, mas ele deu a lei da vantagem. O jogador que sofreu a falta recuperou rápido a bola e armou o ataque do time. Não tinha por que parar a jogada”.
“Ah, nada a ver. Olha lá, agora” Agora ele marcou falta, só porque foi um dos nossos que fez”!
“É que agora foi falta mesmo, amorzinho”.
“Mas foi a mesma coisa que antes”!
“Não foi. Foi diferente”.
“Ah tá. Quem é que entende? Isso lá são regras”?
“Mas é assim. Até agora, tudo certo, o juiz não errou”.
“Olha lá! Olha lá!!! Olha o Fred! Goooolll!! Goooooooooooll!!! Por que você não vibra?”
“Calma, amor, senta. Não foi gol, não valeu. O Fred estava impedido, olha lá. O jogo segue normal”.
“Mas que... como que não foi gol? A bola não entrou lá? Eu vi entrando”!
“Sim, entrou, mas o Fred estava impedido. O bandeirinha já tinha levantado a  bandeira, não valeu nada”.
“Ah tá... Agora essa. Que eu saiba, se chuta e entra é gol. Que que é isso agora? Depois tu me vem com essa de que beisebol e futebol americano é que são esportes que têm regras esdrúxulas. E quem é que entende isso aí”?
“Amor, senta, por favor... sai de frente da tel... putz... olha lá! Gol do Brasil e eu não consegui ver!!!”
“Ah, agora é gol, é??? Agora é???”

“...Amor... por favor... vai lá fazer pipoca, vai...."
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de junho de 2014)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Os nervos da Tia Edewiges

Tia Edewiges era uma anfitriã esmerada. Eu me lembro da Tia Edewiges mordida nos calcanhares nos dias em que meu tio telefonava do trabalho dizendo que à noite levaria o sócio e a esposa para jantarem em casa, para ela preparar alguma coisinha qualquer, sem maiores cerimônias, que o Palhares não era de cerimônias, ela sabia disso, mas a mulher do Palhares, essa sim, era metida a fina e não desempinava aquele nariz arrebitado nunca, e era importante dar uma aduladinha no Palhares, afinal, era sócio majoritário na firma e essa coisa de estreitar relações sempre é importante para colher no futuro e, quem sabe, depois de uns uisquezinhos, o Palhares não afrouxava a guarda e concordava em assinar aquele empréstimo...
Era o que bastava para deixar a Tia Edewiges em pânico. Para ficar “mordida nos calcanhares”, como ela própria dizia. E ficava mesmo, pois só o que se via pela casa, a partir daquele momento, eram os calcanhares da Tia Edewiges socando as tábuas do piso dos cômodos, de lá para cá, metralhando ordens para a coitada da Loris, a empregada, que tinha de deixar os trabalhos usuais do dia e correr atrás das tarefas que Tia Edewiges ia empilhando. “Descasque as batatas que vou fazer um purê, porque sei que a dona Lavínia, mulher do Palhares, gosta de coisa fina e purê de batatas igual ao meu quero ver se ela vai encontrar nesses restaurantes do estrangeiro por onde desfila”, gritava da sala a Tia Edewiges para a Loris, na cozinha.
Uma descascava as batatas e a outra ia organizando a louça e os talheres sobre a toalha branca rendada que só era içada do fundo da gaveta no Natal, no Ano Novo e nas vezes em que desejavam impressionar no jantar. Purê de batatas e estrogonofe era o que Tia Edewiges maquinava para o cardápio, numa época em que pratos assim representavam o suprassumo da finura.

O fato é que Tia Edewiges não conseguia relaxar um só segundo quando se via investida na condição de anfitriã. Detalhista e ansiada, desejava que tudo corresse às mil maravilhas, desde os cajuzinhos e amendoins servidos na entrada até o cafezinho ao final do ágape. No fundo, ela compartilhava essa sensação universal de que é muito melhor, mais leve e mais divertido ser convidado e hóspede do que ser anfitrião. Talvez seja por isso que estejamos, nós, brasileiros, meio tensos com essa coisa de Copa do Mundo aqui em nossa casa. Ao longo dessas semanas, somos 200 milhões de Tias Edewiges, mordidos nos calcanhares.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de junho de 2014)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Os convocados em cena

Então, a Croácia. Hoje de tarde, a partir das 17h, brasileiros gaúchos, brasileiros baianos, brasileiros nordestinos, brasileiros paulistas, cariocas, brancos, pretos, mulatos, de todas as descendências e sotaques, ricos e pobres, empresários ou desempregados, jovens, crianças e velhos, estudantes e trabalhadores, estaremos todos envolvidos no verde e amarelo que nessas ocasiões elimina nossas diferenças para torcermos juntos pela Seleção Brasileira de Futebol contra o primeiro adversário que se apresenta para ser superado rumo à sonhada conquista do hexacampeonato. O nome dele é Croácia.
A Croácia, agora sabemos (ou, ao menos, deveríamos), é um país da Europa Oriental, desmembrado da antiga Iugoslávia, que veio abaixo e se fragmentou na década de 1990. Houve guerras e conflitos internos sérios naqueles territórios naquela época, que ganharam as manchetes internacionais devido à violência e às atrocidades registradas. Felizmente, hoje a Croácia está estabilizada e é a segunda maior economia da região dos Bálcãs, ficando atrás apenas da Grécia. A capital do país é Zagreb. A língua oficial é o croata. A maioria dos croatas é composta por católicos (mais de 80% da população, que é de pouco menos de 5 milhões de habitantes).
Informações como essas são fáceis de achar nos dias de hoje, especialmente com as ferramentas de busca da internet. Três décadas atrás, por exemplo, era um pouco mais trabalhoso obter dados sobre os primeiros adversários do Brasil em uma Copa do Mundo, como na de 1982 na Espanha, a primeira que eu acompanhei detalhadamente. Naquela ocasião, em que a Seleção Canarinho de Sócrates, Zico e Falcão encantava o mundo com o futebol-arte e se habilitava a trazer o tetracampeonato para o Brasil (o que não aconteceu por causa da performance da Azurra, a Seleção Italiana), foi mais difícil descobrir os perfis de países como Nova Zelândia, Escócia e União Soviética. Tive de mergulhar nos pesados volumes da Enciclopédia Delta Larousse e folhear as páginas do Almanaque Abril para me situar.

Agora, nesta Copa de 2014, que hoje tem seu pontapé inicial, as buscas google em todo o planeta convergem para suprir com dados a curiosidade de torcedores do mundo inteiro, interessados em desvendar os mistérios do país que sedia o certame. Vai saber o que vão encontrar sobre nós por aí, na rede. Nosso telhado de vidro está exposto ao mundo, e nossa responsabilidade em fazermos bonito extrapola, em muito, a dos 23 jogadores convocados. A convocação é para 200 milhões de brasileiros. E a meu ver, deveria ser permanente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de junho de 2014)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Aumenta o som

Alguém, não me lembro quem, não sei onde e nem há quanto tempo, comentou comigo o quão interessante seria se nossa vida real, essa do dia-a-dia mesmo, fosse acompanhada por trilha sonora. Já pensou, você ir sendo tirado da cama de manhãzinha ao som dos acordes suaves de um piano jazzístico ou de uma melodia de Mozart, que vão invadindo o ambiente do quarto de mansinho, a meio-tom, resgatando você do sono assim de uma maneira delicada, diferentemente daqueles modos trogloditas empregados pelo despertador ou pelo radiorrelógio, que de elegância e compostura não têm nada?
Aí você se levanta, ainda meio dormindo, mas com um sorriso de bem-estar no rosto, e se dirige ao banheiro (ou ao toilette, se for a amiga leitora; ou ao W.C., se for o leitor executivo; ou ao lavabo mesmo, se estiver de visita incomodando parente) ao som de um blues mais agitado, que é para acompanhar o movimento da escovação de dentes e da lavagem de rosto e ir convocando os pensamentos e as lembranças a se perfilarem para você poder começar a planejar o seu dia. No chuveiro, se você é daqueles que cantam, a trilha se adequa a proporcionar apenas um acompanhamento musical para permitir o brilho de sua voz encantando os azulejos da parede e o acrílico do box (vidro temperado, se for no banheiro, ops, no toilette da amiga, eu sei, eu sei). Caso contrário, vai rolar um rock ou uma MPB a seu gosto, para incentivar os movimentos embaixo da água e acelerar o ensaboamento, porque o frio anda de rachar e a coisa não pode ser das mais demoradas.
Depois, ao longo do dia, a trilha sonora será basicamente incidental, afinal, não dá para se concentrar no trabalho com Ana Carolina, Samuel Rosa ou Ozzy Osbourne azucrinando seus ouvidos o tempo todo, né. Mas se você for chefe, por exemplo, e tiver de chamar um subordinado para dar-lhe aquela bronca, surgirá no ar aquela música-tema do filme “Tubarão” (tam-tam-tam-tam-tam) ou de “Psicose” (cri-cri-cri-cri), para sublinhar o suspense. No final do dia, depois de ter matado mais dois leões, como sempre, entrará no carro de volta para casa ao som da vitória de Ayrton Senna (tann-tann-taaannnn), vitoriosos que somos por cruzarmos mais uma vez a linha de chegada dessa gincana que é a vida comum e atribulada que povoa as biografias de cada um de nós.

E dependendo do grau de imodéstia de cada um, ao deitar de novo a cabeça no travesseiro à noite, para o justo descanso... surgirão aplausos ao fundo... para dormirmos com um sorriso de vencedores a embalar nossos sonhos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de junho de 2014)

terça-feira, 10 de junho de 2014

Aqui, em Caxias

De ler. Eu gosto é de ler em Caxias do Sul. Em resumo, foi isso o que postei no mural do pioneiro.com ontem pela manhã, ao participar da promoção que o jornal Pioneiro está fazendo, em homenagem aos 124 anos que a cidade comemora dia 20 de junho. O jornal está convidando os leitores a acessarem o link citado e postarem lá sugestões de coisas legais para fazer na cidade. A intenção é reunir 124 postagens (número igual ao do aniversário de Caxias) e publicá-las.
Pensei dezenas de coisas legais para se fazer por aqui, mas na hora “h” optei pela questão da leitura, simplesmente porque é a mais pura verdade. Meu interlocutor poderia dizer que isso não vale, pois quem gosta de ler vai ter prazer em ler onde quer que esteja. Sim, correto, é verdade. Mas tem uma coisa, amigo: ler em Caxias do Sul possui um sabor diferente, pelo fato de se estar lendo em uma cidade que vive um momento especial no quesito da valorização da leitura, do livro e da escrita.
Nossa cidade abriga um número cada vez maior de escritores que se arriscam a tirar das gavetas suas obras e levá-las ao público. No meio dessa fartura, vão surgindo os bons autores, que vão se estabelecendo com a produção de boas obras. Caxias sedia editoras e gráficas que proporcionam obras de qualidade visual no patamar do que se faz nos grandes centros do país. Existem leis de incentivo que permitem o acesso de autores a recursos públicos para a edição de títulos de interesse comunitário, o que também estimula o envolvimento de empresas na parceria com a promoção da cultura local.
Existe um Concurso Anual Literário que revela novos talentos e consolida talentos antigos. Há até o prêmio Vivita Cartier para melhor livro publicado no ano. A Feira do Livro é a segunda maior do Estado e a cada ano cresce o número de crianças-leitoras na Praça Dante. A atividade literária na cidade é tão intensa que a Secretaria Municipal da Cultura chegou a criar um Departamento do Livro e da Leitura só para cuidar de ações voltadas ao setor. Várias entidades e grupos debatem a leitura e a promovem na cidade, como a Academia Caxiense de Letras-RS, o Grupo Órbita Literária, a Confraria Reinações, o grupo Skoob, o Litteris Te Deum e a seção local da Associação Gaúcha de Escritores, entre outras.

Ah, e tem as livrarias-cafeterias. Nada melhor do que sentar-se em uma delas, saborear um cappuccino e abrir as páginas de um bom livro. Especialmente em Caxias do Sul, um dos melhores lugares do mundo para ler.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de junho de 2014)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Clima verde e amarelo

Aos poucos, o cenário verde-amarelo vai se avolumando pelas ruas e calçadas da cidade. Agora sim, faltando três dias para a abertura da competição sediada no nosso país, dá para dizer que o “clima de Copa” começa a surgir. Funcionários de uma loja vestem-se com as cores da bandeira nacional; bandeirinhas verdes e amarelas enfeitam a fachada de empreendimentos comerciais e os quintais de algumas casas; bandeiras do Brasil começam a ser estendidas nas janelas dos apartamentos. Sim, começamos, enfim, a respirar Copa.
Mas por que razão demorou tanto para que isso acontecesse? Será que até nesse quesito a tão propalada mania do brasileiro em deixar tudo para a última hora se manifesta, ou o furo será mais embaixo? Eu acho que é questão de furo mais embaixo, sim, porque o brasileiro até pode ser desligado e desorganizado em muitas coisas, mas jamais em função do futebol, essa sim, a paixão nacional incontestável. O brasileiro chega atrasado a reuniões importantes, aos encontros marcados de qualquer natureza, ao início dos espetáculos culturais, aos jantares, às solenidades, à cerimônia de casamento (dos outros e de seu próprio), a tudo. Menos às partidas de futebol.
Pode ver: em dia de jogo, a movimentação dos torcedores em torno dos estádios tem início muitas horas antes do começo da partida. Ninguém quer chegar atrasado ao jogo. Até porque, é preciso chegar antes para poder xingar o juiz em sua entrada em campo, já que xingar também faz parte da cultura nacional, como bem temos visto por aí ultimamente. Portanto, como vemos, a razão pela demora no desfraldar das bandeiras verde-amarelas e da adoção do “espírito da Copa” por parte dos brasileiros deve ter outro motivo.
E eu acho que sei qual é. Ao menos, tenho lá meu palpite, uma vez que também nessa coisa de palpites nós, brasileiros, somos feras. O meu palpite é de que demoramos para embarcar no espírito da Copa porque, até agora, tínhamos mais o que fazer. Afinal, somos brasileiros, somos trabalhadores, nada cai de graça no nosso colo. Se não somos criminosos e nem corruptos (e a maioria de nós não é, felizmente), precisamos trabalhar duro para ganhar a vida, uma vez que somos achacados o ano todo pelos impostos extorsivos, pela inflação dissimulada, pela precariedade dos serviços públicos essenciais, pelos problemas no transporte e na saúde, pela falta de segurança, por todas essas questões que fazem o dia-a-dia dos brasileiros se parecer com uma corrida de obstáculos.

Mas, agora, faltando pouco para o início do espetáculo, entramos, sim, no clima da Copa e vamos torcer pelo bom desempenho da Seleção Brasileira. Porque somos brasileiros. Nada nos cai de graça no colo, mas podem contar sempre conosco. Vamos lá, queremos o hexa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de junho de 2014)

domingo, 8 de junho de 2014

O branco mais branco

Um moranguinho mergulhado no interior do glacê de uma torta de morangos. Perfeito! Depois de muito pensar, depois de passear por inúmeras tentativas para encontrar a comparação ideal, detectei na imagem de um solitário morango, afundado na alva camada de glacê da torta que ele compõe, a metáfora certeira para a densa, cerrada e espessa manta de neblina que se apoderou de Caxias do Sul desde as primeiras horas da manhã de sexta-feira.
Fora de casa, não era possível enxergar nada a uma distância além de um palmo do nariz. Somente a brancura da cerração estimulava o sentido da visão, monopolizando o cenário de uma cidade submersa em brumas. Teclo o termo “brumas” e me recordo do livro “As Brumas de Avalon”, da norte-americana Marion Zimmer-Bradley, romance de cavalaria que fez sucesso internacional no início da década de 1980. Não li a tetralogia nem assisti aos filmes, mas sempre fui capaz de imaginar a intensidade das brumas que recairiam e cercariam o mítico reino de Avalon, pelo qual transitavam donzelas indefesas e cavaleiros andantes. Nenhuma dessas brumas ficcionais chegou sequer aos pés das brumas que a realidade serrana fez se abaterem sobre Caxias do Sul nessa última sexta-feira.
Dei-me ao trabalho de comparar a brancura do mundo que o vidro da janela do quarto revelava com a brancura dos lençóis recém saídos da máquina de lavar (não venha com gracinhas caro leitor... nossos lençóis são branquíssimos, sim, senhor... mas nem se comparavam com as brumas de Caxias do Sul na manhã que aqui reporto). Deitei o olhar sobre a brancura da página ainda intocada, aberta na tela do computador, e mesmo assim não vi ali um branco mais branco que o do lado de fora da janela. Nada superava a brancura da neblina de sexta. Dificilmente algo a superará, nem mesmo os eventuais brancos que acometem a mente de um cronista instantes antes de dar início à produção de mais um texto, em busca da metáfora ideal que expresse com minúcia e beleza a alvura de um dia imerso em brumas.

Daí, então, o moranguinho mergulhado no interior do glacê de uma torta de morangos. Talvez só ele, o solitário moranguinho da torta de morango, consiga enxergar em seu entorno um bloco de brancura tão intenso quanto o que transportou Caxias para Avalon no dia 6 de junho de 2014. Nem mesmo as geleiras do Ártico. Nem mesmo a desinspiração de um poeta. Só mesmo Caxias e suas brumas. Ou o interior glaceado da cobertura daquela torta de morangos. Ai que fome. Para que lado fica a confeitaria mesmo?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de junho de 2014)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O que fazer

“Saiba identificar se você está na carreira certa”. Vivendo nessa nossa época caracterizada, entre outras coisas, pela eterna insatisfação com tudo e por uma constante busca não se sabe exatamente pelo quê, não tem como uma matéria com um título desses passar batida. Parei e fui lá dar uma olhada.
O primeiro passo - conforme o especialista em carreiras e profissões entrevistado na reportagem - para identificar se você está atuando na carreira mais adequada para a sua vida é fazer um balanço de suas aptidões, interesses, habilidades e gostos pessoais. “Bastante coisa para um primeiro passo”, pensei eu, que tenho aptidão para complicar, interesse em esquadrinhar, habilidade para analisar e gosto pessoal por refletir. “Mas vamos lá”, pensei de novo, e lá fui. Venha junto e veja no que deu.
Puxei o pufe mais para perto, estiquei as pernas, lancei os olhos para o teto, que é por onde costumo observar o nada quando me ponho a refletir sobre o tudo, e fiquei ali, coçando o queixo e imaginando que nesses momentos é que seria interessante possuir um cachimbo. Um cachimbo ali, no canto da boca, fazendo composição com o queixo sendo coçado logo abaixo dele, seria o elemento que conferiria um toque literário e de classe àquela cena de eu pensando. Mas não fumo, não tenho cachimbo, e que mania essa de divagar e me perder no meio de um pensamento. Foco, Marcos. Retomemos.
A primeira coisa a questionar, nesse assunto, é algo tipo assim: “será que sou mesmo feliz, será que estou a desenvolver a totalidade de minhas potencialidades sendo o que sou, no meu caso, jornalista e escritor?”. Para saber a resposta, procurei fazer um exercício de imaginação e me ver desenvolvendo alguma outra atividade qualquer, bem diferente da minha, para então tentar detectar a sensação. Eu alpinista, por exemplo. Um gorro na cabeça, luvas poderosas, mochilão cheio de bagulhos nas costas, suspenso em uma corda, cravando uma picareta na encosta do Monte Everest e dando mais um passo acima, rumo ao topo, saboreando cada centímetro daquela conquista pessoal frente aos desafios da natureza.

O fugaz sabor logo se esvai assim que deixo cair da mão a picareta, que volteia no ar antes de quicar na cabeça de meu parceiro de aventura que vem (vinha) logo abaixo de mim. Atordoado com o golpe, ele se desprende da corda, o que prenuncia a tragédia. Mas de novo devaneio. Só que devaneio certo, afinal, desastrado como sou com a administração das extremidades de meu corpo (nunca sei o que fazer com as antenas, as asas e a cauda), eu seria um perigo escalando montanhas. Melhor mesmo parar com isso, levantar do sofá e ir lá escrever um texto. E nem pensar isso de comprar um cachimbo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de junho de 2014)

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Noites de aconchego e arte

Que a Poesia é uma Arte, e entre elas uma das mais nobres, isso estamos todos pós-graduados em saber. Que produzir Poesia, e Poesia verdadeira, com qualidade, com alma e talento, e ainda com literariedade e valor estético, é também uma Arte, isso sabemos todos nós que lemos e apreciamos Poesia. Aliás, chegamos até à ousadia de admitir como Arte o próprio ato de ler Poesia, pois que Poesia não se lê assim de supetão como se faz com uma notícia de jornal para se informar ou com um cartaz afixado na porta do banco informando sobre o horário de atendimento.
Não, não, nada disso. Saber usufruir da essência existente nas linhas escritas e especialmente naquelas apenas insinuadas no texto poético requer entrega da alma, requer atenção, exige o reassentamento daquele silêncio interno que muitas vezes relegamos ao esquecimento durante a correria das horas de nossos cotidianos amalucados. Saber ler Poesia é também uma Arte, assim como saber produzi-la e assim como ela, a Poesia, em si, o é. Isso tudo sabemos. O que eu não sabia até terça-feira de noite é que saber narrar Poesia para um grupo de pessoas, narrar Poesia com Poesia na fala, é também uma expressão artística de primeira grandeza.
Quem me ensinou isso, na prática, ao vivo, foi o professor, escritor e poeta Jayme Paviani, ao longo do aconchegante bate-papo que protagonizou terça-feira passada, na condição de um dos convidados da VII Semana do Escritor, promovida pela Academia Caxiense de Letras e que acontece todas as noites desta semana, desde segunda, no terceiro andar da Biblioteca Pública Municipal, ali na Casa da Cultura, defronte à Praça Dante Alighieri. As pouco mais de 30 pessoas que decidiram sair de suas zonas de conforto na noite fria de terça foram privilegiadas com o presente humano e estético ofertado pelo palestrante, que mesclou um verdadeiro sarau poético com observações esclarecedoras, enriquecendo a bagagem pessoal de cada um que esteve ali.
Houve mais Poesia pairando no ar naquela noite. Um dos participantes da plateia trouxe junto suas duas filhas de cerca de 12 anos de idade, para compartilharem em família o encanto pela literatura. O ato do pai foi poético, e o das filhas, em acompanhá-lo, também foi. Houve Arte na palestra de abertura com Gilmar Marcílio, conduzida pelo Grupo Órbita Literária, como também houve no encontro de ontem à noite com José Clemente Pozenato.

O compartilhamento de Arte, aconchego e experiências estéticas segue hoje com a professora Cecil Zinani e, amanhã, com a jornalista Mariana Kalil. Sempre a partir das 20h, e de graça. Ainda há tempo para dar uma curva na zona de conforto e aconchegar o espírito com esses encontros poéticos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de junho de 2014)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Dia de heróis

Ao longo desta semana, os noticiosos televisivos do mundo todo andam acompanhando uma movimentação histórica que começa a tomar lugar no norte da França. Na próxima sexta-feira, dia 6 de junho, comemoram-se os 70 anos do “Dia D”, codinome pelo qual ficou conhecida a “Operação Overlord”, o desembarque de tropas norte-americanas, britânicas e canadenses nas praias da costa da Normandia, dando início à derrocada do domínio nazista sobre a região da Europa ocidental (a libertação das regiões orientais ficou a cargo do Exército Vermelho, da União Soviética).
Foi a maior operação bélica de desembarque anfíbio de toda a história da humanidade, o que resultou no despejo em um dia de 175 mil tropas aliadas ao longo dos cerca de 80 quilômetros de costa, nas praias denominadas com os nomes-código de Utah, Omaha, Juno, Gold e Sword. Cerca de 4,9 mil soldados aliados perderam a vida somente naquele 6 de junho de 1944, dia do desembarque, quando as tropas foram recebidas a bala pelos nazistas que patrulhavam a costa francesa.
A partir dessa ação ousada, complexa, portentosa e crucial, ladeada pelo avanço determinado das tropas soviéticas pelo leste, o processo de derrocada do império nazista começava a se consolidar, culminando na vitória dos Aliados 11 meses mais tarde, em 7 de maio de 1945, com a rendição incondicional da Alemanha. O esforço de guerra aliado internacional empregado para libertar o mundo do jugo imposto pela união de regimes totalitários desumanos, violentos e discriminatórios como o nazismo alemão, o fascismo italiano e o imperialismo japonês da época, custou um preço elevadíssimo em vidas humanas.
Felizmente, não faltaram dezenas de milhões de cidadãos comuns ao redor do planeta dispostos a doar suas próprias vidas para tornar esse esforço possível. O mundo que esses heróis nos legaram é este que está aí: imperfeito e repleto de desafios a serem solucionados, é claro. Porém, indescritivelmente melhor do que a barbárie insana que tentou ser imposta pelos psicopatas que sequestraram durante aqueles anos os governos dos países do Eixo.

Sexta-feira, dia 6 de junho, diversos veteranos sobreviventes da invasão da Normandia, hoje senhores com cerca de 90 anos de idade, estarão de volta ao palco de um dos capítulos mais importantes da História da Humanidade, para receber as justas homenagens que jamais estarão à altura do feito que protagonizaram. Aqui em Caxias, de onde também partiram soldados para combater na Itália, é uma boa oportunidade para visitar o Museu dos Ex-Combatentes da FEB, que reúne acervo relativo à campanha brasileira na II Guerra Mundial. Situa-se ali na Rua Visconde de Pelotas, 249 (fone 3901-1422). Fica a dica.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de junho de 2014) 

terça-feira, 3 de junho de 2014

A mais bela traição

A data de hoje, 3 de junho, não pode passar batida para quem se interessa pelo mundo da literatura e habita com alegria os vastos logradouros do Planeta Livro, essa região intangível e desprovida de limites geográficos que agrega leitores, escritores, editores, livreiros, livros, tramas e personagens. Exatamente neste dia, 90 anos atrás, consumava-se entre dois amigos uma traição feita a um pedido externado no leito de morte. O não atendimento à solicitação do moribundo configurou-se, para a posteridade, em um dos mais importantes legados literários já deixados ao mundo, na obra do escritor tcheco Franz Kafka.
Agonizando devido à tuberculose em um sanatório na Áustria, aos 40 anos de idade, Kafka (1883-1924) pediu encarecidamente a seu amigo e testamenteiro Max Brod (1884-1968) que incinerasse todos os seus livros, cartas e escritos ainda inéditos, a fim de que não viessem a público. Kafka morreu em 3 de junho de 1924 e Brod reuniu e guardou todos aqueles textos, desobedecendo ao desejo do genial amigo. Não só não os queimou como ocupou-se em publicar algumas das obras kafkianas que hoje integram a lista de livros basilares da cultura ocidental moderna.
“O Processo”, “O Castelo” e “Amerika” são algumas das obras publicadas postumamente por ingerência de Brod, que vieram se somar a títulos como “A Metamorfose”, “Na Colônia Penal”, “O Veredicto”, “A Muralha da China”, “Um Médico Rural” e tantos outros, indispensáveis para quem desejar mergulhar em alguns dos melhores exemplos do que o engenho humano na arte de fazer literatura já produziu. O desejo estranho de Kafka de querer que seus inéditos fossem destruídos se ampara na visão autocrítica que o autor manteve a vida inteira em relação à sua própria qualidade enquanto escritor. Kafka nutria dúvidas quanto à excelência daquilo que escrevia. Mas Max Brod não compartilhava dessa dúvida. Max Brod tinha era uma certeza: a de que o amigo era um gênio. E foi por fidelidade a essa certeza que optou por trair o desejo humano do amigo. Brod optou pelo interesse da humanidade como um todo, e acho que fez bem.

Se não tivesse agido dessa forma, estaríamos hoje há 90 anos privados de poder saborear textos fundamentais para conhecermos a amplitude do olhar sobre a essência humana que Kafka nos proporciona pelo conjunto de sua obra. Essa data de 3 de junho ainda merece encontrar um lugar mais ao sol no calendário do Planeta Livro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de junho de 2014)

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A cara da polenta

Dizem que quem vê cara não vê coração. Ou seja, não basta uma avaliação superficial do visual de alguém ou de alguma coisa para definir sua essência ou seu conteúdo. A língua inglesa utiliza metáfora com outros termos para expressar a mesma ideia: não se pode julgar um livro pela capa.
Serve para livros, sem dúvida. Você só vai poder julgar a obra depois de passar pelo trabalho de lê-la. Não basta apenas apreciar a eventual beleza gráfica de sua capa, normalmente produzida por artista que não é o autor do texto. Serve para pessoas, especialmente a versão brasileira do ditado, citada na abertura do texto. Um rostinho bonito não representa necessariamente uma pessoa confiável, íntegra, de bom coração. É fácil maquiar uma má essência com artifícios e recursos de embelezamento. Para conhecer “o coração” de alguém, precisamos privar a companhia dessa pessoa, a fim de, somente assim, termos elementos para sabermos quem de fato ela é.
Pois tudo muito bem quanto ao ditado em relação a livros, pessoas e uma série de outras coisas. Mas há uma falha na abrangência do axioma que o impede de ter aplicação universal (a meu ver, é claro, pois que não sou dono da verdade). Ele não se aplica à gastronomia. Nesses domínios, quem vê cara, normalmente vê coração, sim. E na maioria das vezes, é possível julgar a polenta frita somente ao lançar os olhos sobre o douradinho da crosta crocante que a envolve, recém chegada da cozinha.
Aquele salmão rosadinho que aterrissa em seu prato, coberto com uma malha de alcaparras e amêndoas, além de um raminho de alecrim, qual a chance de seu sabor não corresponder ao visual que o antecede? Nenhuma! Nenhuminha! E como resistir nas ruas da cidade, especialmente aos domingos, ao visual sedutor dos frangos assados às dezenas nas assadeiras de calçada, colocadas ali justamente para que as unidades sejam vendidas justamente pelo visual atraente? Qual a chance de o frango assado não proporcionar um almoço suculento para toda a família? Zero, né.
Sim, claro, acontecem exceções. Mas são raras, e a regra geral, na culinária, é de que o visual costuma antecipar a qualidade do sabor. Polenta linda é igual a polenta gostosa. Polenta feia provavelmente proporcionará uma refeição desagradável. Até porque, são justamente os elementos como o cuidado no preparo da comida, a observância dos rituais certos e o talento empregado na confecção do alimento que irão resultar tanto na comida de qualidade quanto no aspecto belo e revelador.

Nesses casos, dá até para julgar de olhos fechados. Mas só nesses casos, ressalte-se.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de junho de 2014)

Senhor, eu?

Tenho uma boa notícia a dar aos meus leitores. Cheguei à conclusão de que a velhice não existe. Existe, sim, o passar ininterrupto dos anos. Existem as limitações que vão se impondo sobre o corpo. Existe o acúmulo de experiências, de frustrações, de alegrias, de descobertas, de percepções, de emoções, de perdas e de ganhos. Mas essa coisa de velhice, por si só, não existe, podem respirar aliviados.
Cabelos brancos invadindo a cabeça? Sabedoria acumulada, apenas isso, e podem ir respeitando aí e chamando de “senhor”, que é bom, obrigado. E, se possível, também cedendo o lugar no banco, isso, muito gentil, rapazinho, fez bem. Falta de fôlego? Pernas pesadas? Bem, bem, não precisamos ser todos atletas, e para que a pressa, não é mesmo? Há tanto a saborear na mansidão do mover-se, coisa que só aprendemos depois de muito tempo vivido. Vista fraca? Não quer dizer nada, eu usava óculos desde os cinco anos de idade, antes mesmo de ser alfabetizado.
Não, não, a velhice não existe. Ao menos, não existe para nós. Para os outros, sim, claro, a gente se depara com velhos todos os dias, por todos os lugares. Nossos avós eram velhos. Nossos pais vão ficando velhos. Até nossos ídolos envelhecem. Nós, não. Que bom, mas conosco isso não acontece. “Velho”, já dizia alguém, “velho é toda a pessoa que tem 15 anos a mais do que nós”. Verdade. Como eram velhos meus tios de 30 anos de idade quando eu os via do alto dos meus adolescentes 15. Como pareciam velhos os professores de 40 na faculdade de meus vinte e poucos. Nos meus 30, velhos eram os de quase 50. Agora, vejam só: quase 50 tenho eu, e não sou nada velho. Ou seja, comigo, não acontece. E se não acontece comigo, então, não existe.
O que existe é o olhar embaçado e deturpado de alguns jovenzinhos de vinte e poucos que insistem em me chamar de “senhor” e não escondem a cara de espanto quando descobrem que gosto é de rock and roll e que andam querendo me oferecer seu lugar no banco com medo de que eu me canse se ficar muito tempo em pé. Só porque tenho cabelos brancos e pelo menos (por baixo) 15 anos de idade a mais do que eles. Velhos são os pais deles, de trinta e poucos. Os avós, de cinquenta e tantos.

Eu, aqui, com meus 47 e uma floresta de cabelos brancos, não sei o que é velhice, ou juventude, ou adolescência ou maturidade. Eu sou eu mesmo todos os dias, simplesmente isso. Velhice não existe. Tá, tá, só não me convidem para um rolezinho pelo shopping, que não é minha praia. Nesse caso, vou preferir mesmo as pantufas e o chambre, sabe?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de maio de 2014)

Os especialistas

É preciso ter consciência de que para tudo há uma ciência. Esse axioma básico para a compreensão de alguns dos mecanismos da vida me foi ensinado por meu avô paterno ao me apresentar, na minha adolescência, a um determinado livrinho.
Aprendi essa verdade saboreando as páginas de uma singela obra intitulada “O Especialista”, escrita pelo norte-americano Charles Sale (1885-1936), lançada no Brasil em 1949 pela Editora Globo, adquirida e lida por meu avô paterno, guardada na biblioteca pessoal dele até o fim de sua vida e hoje morando aqui comigo, a título de herança. O livrinho não passa de uma despretensiosa, bem-humorada e sagaz croniqueta versando sobre as atividades do personagem principal, Mané Pitorra, que ganha a vida construindo e instalando latrinas.
Em 1929, quando o título surgiu, nos Estados Unidos, era comum, tanto do lado de lá das Américas quanto do lado de cá, contratar o serviço de trabalhadores especializados na construção de latrinas, aquelas casinhas de madeira erguidas e instaladas do lado de fora das residências, para as quais os moradores se dirigiam quando precisavam executar algumas das ações biológicas que hoje em dia costumamos fazer nos nossos modernos, assépticos, higiênicos e perfumados banheiros. A voz narrativa é dada ao próprio Mané Pitorra, que começa dizendo assim:
“Vancês com certeza já ouviram falar que nós estamos no tempo dos especialistas. O meu ofício é de carpinteiro. De primeiro eu fazia casa, fazia galinheiro, e inté igreja eu fazia. Mas depois vi que era preciso um especialista em meu ofício. Assuntei, assuntei inté que dei com a minha especialidade. Fiquei nela! Minha gente, ocês tão falando com o melhor construtor de privada de toda essa várzea do Pirixi”.

Como se vê, não é de hoje que se faz necessário especializar-se. Penso nisso nesses dias de frio e umidade, em que, ao primeiro sinalzinho de sol, corremos para fora a pendurar nossas roupas lavadas que precisam secar e que acabam ficando mal cheirosas se permanecerem úmidas dentro de casa. Porém, com as temperaturas caindo ainda mais ao final do dia, é preciso recolhê-las por volta das quatro da tarde, sob pena de tê-las novamente úmidas e geladas. Para tudo há uma ciência, até mesmo para administrar com competência o processo de secagem de roupas no outono e no inverno. Não há mais lugar para o amadorismo. É preciso sermos especialistas no que nos dispusermos a fazer. Das latrinas às roupas no varal. Da construção de foguetes ao cronicar. Do ser avô ao ser neto. Temos de ser especialistas nessa arte de viver.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de maio de 2014)