sábado, 30 de agosto de 2014

Bebida é água


Sou um curioso por natureza. Isso faz com que eu não consiga resistir a certas práticas que o leitor bem pode imaginar quais são. Claro que essa minha tendência, apesar de irresistível, felizmente não chega ao ponto de me transformar em uma paródia de James Stewart, o ator que encarnou Jeff, o personagem principal do filme “Janela Indiscreta” (1954, de Alfred Hitchcock), que, com sua luneta, passava os dias a observar as atividades de seus vizinhos no prédio ao lado. Não, longe disso, não sou um voyeur, tanto é que mantenho distância jupiteriana das sessões anuais de Big Brother na tevê.
Mas sou, sim, um curioso. A curiosidade compõe parte de minha essência e estou certo de que ela teve influência determinante na escolha da profissão que resolvi seguir na vida, a de jornalista. Jornalista não curioso é igual a sapo sem verruga: foge da sua essência. Sei que a curiosidade matou o gato, mas, como não sou gato, sigo vivendo e “escuriosando”, como diriam em Uvanova.
E aí chegamos ao que interessa. Curioso que sou, não consigo resistir a notícias de variedades que entregam os detalhes das listas de pedidos feitos pelos músicos para seus camarins antes dos shows. Divirto-me analisando as exigências esdrúxulas de alguns artistas e imaginando o que poderiam vir a solicitar outros, como morcegos verdes fritos para Ozzy Osbourne, energéticos para Mick Jagger, água mineral sem gás para Eric Clapton, coisas assim.
Pois eis que então me deparo com notícia sobre a lista de pedidos dos integrantes da banda Titãs, que vai se apresentar em Porto Alegre na sexta-feira da semana que vem. Opa, vamos ver o que desejam os velhos roqueiros para embalar e turbinar o show no Opinião! E aí, a surpresa! Sabendo que bebida pode ser água e que até pasto é comida, eles singela, natural e sadiamente exigiram chá verde, bananas, maçãs, aveia, mel e 40 garrafas de... água. Uau!

É, nossos ídolos não são mais os mesmos, mesmo. Eles mudam. E alguns, como os Titãs, para melhor!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de agosto de 2014) 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Sobre uma gatinha

Lamento, mas a justificativa aplicada não cola. Preciso de mais, muito mais argumentos para que a empresa japonesa detentora dos direitos autorais sobre Hello Kitty me convença de que a simpática e doce personagem dos desenhos animados e dos quadrinhos não é uma gatinha, e sim, uma menininha, como quiseram nos engrupir essa semana. Não, essa não!
A exemplo de milhões de pessoas ao redor do planeta, fiquei chocado com a revelação de que Hello Kitty, criada em 1974, com seus bigodinhos de gatinha, suas orelhinhas de gatinha, suas patinhas de gatinha, sua manha de gatinha, não seria uma gatinha, e sim uma menininha humana. Nanana, para cima de mim, não, jacaré, qual é? Não se brinca assim com o imaginário infantil das pessoas, mesmo que essas pessoas já estejam mergulhadas no mundo adulto há décadas. Afinal, nossos heróis da infância prosseguem vivos e ativos dentro de nossas psiquês, e entre eles lá está ela, Hello Kitty, a ga-ti-nha.
Sanrio, a tal da empresa japonesa, embasa sua tese de que a personagem não é gata e sim ser humano com um argumento frágil e falho. Segundo eles, “nunca ninguém a viu de quatro”, portanto, ela é uma bípede e, por consequência, humana. Ora, pois, pois, caros senhores engravatados executivos da Sanrio, que papo é esse? Pra cima de nós? E que me dizem então do Mickey Mouse, o camundongo? Mickey é um rato e também nunca foi visto de quatro. O mesmo se dá com o Pateta, que é um cachorro e sempre andou sobre duas patas. E o gato Tom? E o rato Jerry? E o Leão-da-Montanha? E Zé Colmeia? Catatau? Zé Buscapé?
Aimeudesdoceu, agora os exemplos não param de avalanchar minha memória, só para afogar os senhores Sanrio de argumentos: e a Tartaruga Touché? E as Tartarugas Ninja? E a Clarabela, que é uma vaca? E a onça Galileu, o jabuti Moacir, a lebre Geraldinho, o tatu Pedro Vieira, da Turma do Pererê, criada por Ziraldo?

Não, só um pouquinho, péra lá, não se mexe assim impunemente com nossos fundamentos ficcionais. Longa vida à Hello Kitty, a gatinha! Gatinha!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2014)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Fórmula no café

A gente, quando está vivendo a chamada fase escolar, é comum que se fique indignado com os conteúdos de algumas matérias que os professores tentam heroicamente fazer entrar em nossas cabeças, a maioria delas ocas, outras tantas duríssimas como adamantium (a liga metálica fictícia com a qual são formadas as garras do Wolverine, isso todo mundo sabe o que é, né, até eu).
Pois eu me lembro que ficava indignado por ter de decorar a Fórmula de Bhaskara, que, a meu ver, jamais serviria para qualquer coisa em minha futura vida prática. Somar, dividir, multiplicar e diminuir, sim, pareciam operações importantes e aplicáveis no dia-a-dia, especialmente para administrar a mesada que garantia a  merenda no recreio. Mas Bhaskara? Bah!
Porém, nada como uma década depois da outra para derrubar nossos preconceitos e enfim encontrarmos a luz que nos faz enxergar e redimir os esforços de nossos antigos e empenhados mestres. Foi sentado à mesa de um café que costumo frequentar que me dei por conta da importância dos preceitos básicos da análise combinatória que tanto tentaram me ensinar naqueles tempos de quadro-negro (que era teimosamente verde).
Sim, porque hoje em dia não basta você apenas sentar e pedir um capuccino e pensar que seu serviço de cliente está encerrado e basta esperar pela entrega do pedido. Nananana, não basta ser cliente, tem de participar. Você precisa decidir se deseja um capuccino grande ou pequeno? E depois de optar pelo grande, escolher se quer com ou sem chantilly? Tá, grande sem chantilly. Sim, mas com ou sem raspas de chocolate? Grande, sem chantilly e com raspas de chocolate. Já sua esposa quer um pequeno com chantilly e com raspas de limão.

 Quantas opções, no fim das contas, existem? Quantas pessoas você pode convidar para tomar capuccino com você sem que nenhuma repita o mesmo pedido? Ahá! Seu professor de matemática sabe a resposta. A moça que atende no café também. E você aí? Quem mandou cabular aula de análise combinatória?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de agosto de 2014)

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Quem é que manda

No último domingo, dia 24 de agosto, o país relembrou os 60 anos da morte do ex-presidente Getúlio Vargas, que tirou a própria vida com um tiro no peito em 1954, comovendo a nação e fazendo história. Carismático e sempre acessível apesar de encarnar o poder no país durante décadas, Vargas imprimia profunda impressão em quem tinha a oportunidade de travar alguma relação com ele. Meu avô materno é uma dessas pessoas.
Como todo o avô que se preze, ele é um contador de “causos” e, entre os de sua preferência, figuram aqueles envolvendo Getúlio Vargas, a quem conheceu pessoalmente por ter sido militar em São Borja naqueles tempos. Ele era sargento do Exército após a queda do Estado Novo, a ditadura de Vargas que desabou em 1945 com o fim da Segunda Guerra Mundial. Deposto do poder pelos novos ventos democráticos, Vargas refugiou-se em sua fazenda no interior de São Borja. Certa feita, meu avô conduzia um batalhão do Exército para treinamento por aquelas redondezas, a cavalo, quando Getúlio, também a cavalo, o encontrou em uma estrada de chão batido. Durante duas horas, cavalgaram lado a lado e conversaram.
Anos depois, em 1951, Getúlio Vargas retornou ao poder como presidente da República eleito democraticamente. São Borja, sua terra natal, preparou-lhe uma recepção, com honras militares. Meu avô, o sargento, integrava o grupo de militares que se perfilavam no salão onde a homenagem acontecia. Quando Getúlio entrou, o comandante deu ordem de “sentido” para que a tropa fosse passada em revista. Ao se aproximar de meu avô, o presidente reconheceu o companheiro de cavalgada e de prosa de anos atrás e, quebrando o protocolo da solenidade militar, estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo. Meu avô respondeu ao cumprimento e ambos sacudiram as mãos.
Na manhã seguinte, ao chegar ao quartel, a discussão entre seus superiores era sobre se ele havia agido certo ao sair da posição de “sentido” para cumprimentar o presidente da República ou se deveria sofrer punição por ter desacatado a ordem do comandante. Meu avô solucionou a questão respondendo que, na hora, teve de agir rápido e ponderou que aquele que lhe estendia a mão para cumprimentar mandava mais do que o comandante que havia dado a ordem de “sentido”.
Fim de discussão e a moral da história (segundo meu avô): é muito importante sempre saber exatamente quem manda, para não correr o risco de cair do cavalo. Ora, pois.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de agosto de 2014)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sob a ponta das tesouras

O bom é que cem por cento das barbearias obedecem ao mesmo padrão arquitetônico e são envidraçadas, permitindo que o freguês cabeludo ou barbudo faça uma avaliação prévia do movimento antes de entrar, o que é importante para o relógio e para a paciência. Para o relógio porque, dependendo do número de clientes acotovelados no banquinho à espera de sua vez de ir para a navalha (utilizada pelo barbeiro para raspar aqueles pelinhos que se agrupam atrás da nuca sem que você os veja, provavelmente falando sempre mal da vizinhança), é melhor você dar meia-volta e retornar mais tarde, senão, vai se atrasar para a reunião com o cliente da manhã.
E bom para a paciência porque, se você tem a vista ainda acurada, consegue detectar de longe a presença ali do chato do Rostolfo, que se agarra em seu braço para contar piadas soltando perdigotos, ou ainda a do Palhares, para quem você deve, nunca nega, mas não paga justamente para torturá-lo um pouquinho, que ele merece. Aí, rodopia-se sobre os próprios calcanhares e vai-se bater em outra vizinhança, na concorrência do barbeiro.
Mas o interessante mesmo nesses estabelecimentos cruciais para a manutenção da boa aparência macholina é a pauta de discussões que se estabelece entre o profissional das tesouras, o destemido que vai sendo por ele descabelado na poltrona e a homarada que povoa o estabelecimento, uns para o corte e outros para encher o tempo (deles) e a paciência (dos demais). Ontem, por exemplo, dia de corte não porque a lua era propícia mas porque a esposa já descabelava os dela por causa dos meus, fui-me ao distinto salão que frequento ali no centro e participei animadamente de uma discussão sobre o horror das touradas, que era a pauta que rolava solta quando penetrei no ambiente.
Assunto estimulante e caudaloso, rendeu diversas variações e, ao sair da cadeira, menos peludo e mais arejado, já me irmanava aos demais na torcida sempre a favor dos touros. Mês passado discutimos acaloradamente os preâmbulos da Copa do Mundo, por exemplo. E assim vamos navegando de tópico em tópico, saltando dos desmandos da política para os buracos nas estradas; do descaso com a saúde ao futebol; das doenças de cada um e em especial da que matou o porteiro Vasques semana passada.

Como é? A amiga leitora quer saber se falamos de mulheres? Lamento, querida, porém, ao contrário do que vocês imaginam, dificilmente vocês estão na pauta do dia. Assunto de homem é sempre essa coisa sem graça mesmo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2014)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Sem desgosto

Gosto de agosto. Não compartilho da crença popular que atribui ao oitavo mês do ano a pecha de período aziago, pelo que cunharam e repetem à exaustão a expressão “mês do desgosto”. Eu, com essa minha mania de embrenhar-me pela contramão (sempre a pé, jamais no trânsito), desconcordo do desgosto e gosto de agosto, a meu gosto.
Sim, porque agosto me parece que traz uma espécie de recarga vital de nossas energias psíquicas. A típica correria de início de ano, que no Brasil se inicia com o término do Carnaval, finalmente já passou, as férias foram cumpridas e também já solucionamos o corre-corre da volta às aulas e os presentes da Páscoa e os do Dia das Mães e já fomos a Caravaggio e já sabemos quem venceu o Gauchão, o Brasileirão está encaminhado, Copa do Mundo só daqui a quatro anos e para as Olimpíadas ainda faltam dois (o que, em nossa tendência para deixar tudo para a última hora, ainda é uma eternidade), enfim, a lista de afazeres a fazer começa a ser menor do que a relação dos afazeres já feitos.
Chega agosto e já estamos definitivamente habituados ao novo ano, que de novo não tem mais nada. Já vestimos a camiseta de 2014 e trancafiamos definitivamente 2013 nos cofres da memória. O novo ano ainda se situa a uma distância regulamentar plausível, sem ameaças ao aumento de nossos níveis de ansiedade e se configura como um futuro inexorável, mas ainda distante, em relação ao qual não precisamos dispender maiores energias, a exemplo do prêmio da megassena que seguramente ainda vamos tirar um dia, a aposentadoria, a velhice, a morte, essas coisas todas que o escritor argentino Jorge Luis Borges não hesitaria em classificar como “seres imaginários”.
Mas agosto está aí, estamos nele e ele é bem palpável. É em agosto que nos tornamos irremediavelmente cidadãos do nosso tempo: somos 2014! É agora, por exemplo, que damos aquela paradinha básica para recuperar o fôlego e detectar, na lista de metas elencadas no afã e no embalo do champanhe do Ano-Novo recém-passado, aquelas que definitivamente não é nesse que iremos cumprir.

Agosto está para o calendário do ano assim como os 15 minutos de intervalo estão para a partida de futebol. Com a diferença de que, na vida real, não temos tempo para trocar a camiseta e rever as táticas para chegar ao gol. O gol da vida segue sendo o mesmo e a tática infalível é conhecida de todos: respirar fundo e seguir em frente, que logo, logo, entra setembro...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de agosto de 2014)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Pizza e livro em Uvanova

Uvanova é uma cidadezinha de colonização italiana encravada às margens do Rio das Antas, aqui na Serra Gaúcha, fazendo divisa de um lado com Tapariu e, do outro, com Vila Faconda. Pequena, bucólica e pacata, costuma não acontecer nada por lá. Mas, quando algo acontece, aí sim, acontecem coisas. E coisas dignas de registro.
Como eu cultivo meus contatos entre os uvanovenses, costumo ser mantido informado sobre o que às vezes quebra a pacatice daquela comunidade. Fiquei sabendo, por exemplo, que a Câmara de Vereadores de Uvanova protagonizou recentemente um acalorado debate entre vereadores da situação e da oposição respectivamente defendendo e criticando uma proposta encaminhada pelo prefeito uvanovense. Alegando a intenção de incentivar o crescimento cultural da cidade, o proativo alcaide encaminhou projeto de lei criando incentivos e isenções fiscais que estimulam a instalação de pizzarias no município, o que produziu bate-boca interminável que se prolongou noite adentro, gerou fome nos edis e redundou na encomenda de pizzas que foram prontamente tele-entregues no prédio do Legislativo, sem qualquer licitação, uma vez que, àquelas horas, só uma das duas pizzarias da cidade ainda estava atendendo. Ao menos naquela noite, o negócio acabou, sim, em pizza, mas literalmente falando, e de boca cheia.
Só que a lógica do prefeito extrapola a visão curta dos que o criticam, por não entenderem as motivações que embasam sua iniciativa. Não é verdade o que diz o vereador do POP (Partido de Oposição Permanente), que o prefeito confundiria cultura com comilança ao ligar incremento cultural com a instalação de pizzarias, eternizando um preconceito antigo que recai sobre os habitantes da Serra Gaúcha, de que preferem gastar em pizza do que em produtos culturais. Nada disso.

A verdade é que andou chegando às mãos do prefeito uma pesquisa revelando que, na vizinha e mais desenvolvida Vila Faconda, existem dez pizzarias para cada livraria. Ora, como Uvanova possui duas pizzarias e nenhuma livraria, o prefeito deseja incentivar a instalação de pelo menos mais oito restaurantes desse tipo para que, assim, surja finalmente a primeira livraria em Uvanova, tão aguardada pela comunidade literária local. Todo o apoio à proposta do prefeito, ora! Que venham as pizzas e, de sobremesa, a primeira livraria! Empreendedores da Serra, habilitai-vos!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2014)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A saga de Sid ao Sul

Dia desses andei lendo – meio por alto, confesso –, na imprensa navegada e folheada, acerca de um bicho-preguiça que, em abril deste ano, apareceu aqui no Rio Grande do Sul na boleia de um caminhão. O caroneiro secreto só foi descoberto quando o caminhoneiro chegou em casa, na região metropolitana de Porto Alegre, após uma longa viagem de dois meses e cerca de 1,5 mil quilômetros percorridos, desde Minas Gerais. Que jornada fez o bicho!
Encaminhado ao Zoológico de Sapucaia, o visitante inesperado logo recebeu todos os cuidados da equipe de veterinários, que tratou de adaptá-lo às variações insanas de nosso clima (eu, que nasci aqui há quase meio século, ainda não consegui me adaptar... acho que me faria bem uma temporada de internação aí no zoo, onde costumam bem receber bichos-preg... epa, nada de gracinhas aí!) e de cuidar de sua saúde, a fim de habilitá-lo a retornar a seu habitat natural. O turista acidental mineiro (supõe-se que seja mineiro, apesar de o caminhoneiro desconfiar de que o “carona” tenha jogado a mochila e subido a bordo no Paraná, onde foi sua última parada antes de chegar em casa) recebeu aqui o nome de Sid, e agora uma operação especial providenciou seu retorno à natureza, porém, não em Minas, mas em Tocantins. Ah, e dessa vez foi de avião. Nem precisou utilizar as milhas de seu cartão de crédito.
O que ninguém conseguiu me esclarecer - e aí é que faço a crítica a meus colegas jornalistas – é o que motivou Sid a desejar tanto vir passear aqui no Rio Grande do Sul, a ponto de encarar uma aventura dessas? Queria ver o pôr-do-sol do Guaíba? Visitar os encantos da Serra Gaúcha e degustar uma polenta brustolada sobre a chapa de um fogão a lenha? Conhecer a história silenciosa que paira no entorno das majestosas ruínas de São Miguel das Missões? Experimentar uma costela gorda assada em espeto de pau fincado no chão em volta de uma fogueira enquanto sorve um chimarrão preparado por um autêntico peão de estância?

Pois é, fiquei sem saber. Ninguém entrevistou o Sid e ele foi-se embora, embrenhar-se nas matas do Tocantins. Eu aqui, chimarreando em casa, tenho uma desconfiança: Sid até queria viajar para conhecer as maravilhas de nosso Estado. Porém, ao cruzar a fronteira a bordo do caminhão e ter uma degustação da situação precária de nossas estradas, achou melhor desistir, permanecer umas semanas no spa do zoológico sendo tratado como rei e voltar correndo para o alto das árvores, onde está bem mais seguro. O bicho pode ser preguiça, mas definitivamente não é burro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2014)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Um pinguim no Saara

Meu corpo não possui o mesmo ritmo alucinado que identifico no clima da região em que moro, a saber, a Serra Gaúcha. Não tenho essa rapidez toda em me readaptar de acordo com a súbita alternância extremada de temperaturas, que seria conveniente para a saúde. Meus processos pessoais de degelo e de superaquecimento são excessivamente lentos, o que costuma me causar complicações no cotidiano, como é de praxe, em eu sendo insistentemente eu mesmo.
No degelo, por exemplo, sou um mamute. Se está frio, muito frio, e ando para lá e para cá plenamente rocambolado dentro de blusões, casacos e sobretudos, não consigo, já no dia seguinte, quando a manhã nasce surpreendentemente ensolarada e quente (coisa que só os meteorologistas sabiam mas não contaram para ninguém), os termômetros saltando de trampolim de 4 graus centígrados para 31, não tenho a destreza necessária para me desfazer de imediato de todos os blusões, de todos os casacos e das mantas e dos sobretudos e dos capotes e dos palas e das luvas e dos gorros e das ceroulas. Não, eu sou mamute, sou bem mais lento.
O que acontece então? Ora, acontece de lá vir o Marcos, descendo a ladeira da Sinimbu, naquele calor todo de torrar minhoca no asfalto, embrulhado dentro de um sobretudo, suando bicas. O Marcos e sua pastinha, mamute sendo degelado à força nos cruzamentos da Praça Dante. Eita, quadro! Nem Salvador Dalí imaginaria cena tão surreal. Talvez imaginasse se me visse na situação inversa, dois dias adiante, quando, enfim acostumado com o retorno do calor, finalmente saio para a rua trajando apenas uma leve camisa de abotoar quando, pimba... De repente, a temperatura escorrega e desce o morro da Vó Sovelina, despencando para dois, três graus, e eu ali, praticamente de chinelo de dedo e bermuda, de novo na Sinimbu, a tiritar de frio como um camelo encerrado dentro de um iglu.

Isso sou eu, o inadaptável. Eu, aquele do termostato interno quebrado. Eu, o pinguim desavisado que acredita nas previsões da meteorologia. Eu, o habitante da Serra Gaúcha que, apesar de tudo, gosto daqui especialmente por saber que jamais morrerei de tédio climático. De choque térmico, pode ser, mas de tédio, jamais.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de agosto de 2014)

sábado, 2 de agosto de 2014

Medo da dentista

Tenho medo de ir ao dentista. Não, errado. A frase correta, que se aplica a meu caso (porque é de meu caso que estamos falando aqui, a princípio, ou seja, partimos, como toda crônica requer, do caso pessoal do cronista para que se possa produzir o fenômeno da universalização do texto, obtendo assim a identificação com as experiências pessoais de todos os leitores). Fechei parêntesis e não concluí a frase. Isso é um erro, cometido pelo abuso da prolixidade e pela desnecessária aula sobre a essência da crônica. Comecemos de novo.
Dizia que tenho medo de ir ao dentista, mas que a frase assim, generalizada, estava errada ou, melhor, imprecisa. O correto, em se tratando de meu caso, seria dizer que tenho medo é de ir à minha dentista, em específico. Ou seja, não temo o ato simples e prosaico de me dirigir até o consultório de qualquer um desses tão importantes profissionais e abrir-lhe a boca, a fim de que ele proceda aos procedimentos (aviso de repetição empobrecedora de texto) necessários para a manutenção de minha saúde bucal. Não, esse tipo de paúra (“medo”, em dialeto, eis que eu agora uso singelos termos em dialeto), pois que a abandonei junto com a infância.
Meu temor agora é de outra natureza, mais brando, mais próximo, já que o negócio aqui precisa ser preciso (novo aviso de repetição empobrecedora de texto), mais próximo do simples receio. O que tenho, então, para ser preciso, é receio de ir à minha dentista. Pronto. Conseguimos, com a ajuda dos pacientes leitores, encontrar a frase correta para o início deste texto: tenho receio de ir à minha dentista (agora vamos ao motivo).
Tenho receio porque ela, compenetrada sempre na sequência do manuseio de seus aparelhos, a enfiá-los e retirá-los, cada um por sua vez, de forma alternada, dentro de minha boca (a broca, a pinça, a haste de metal que cutuca, o algodão, o sugador, o ferrinho nem-ouso-imaginar-para-que-serve, o caninho de enxágue), ela acaba me descabelando todo e salpicando minhas bochechas e minha testa com respingos de água e de diversos produtos. Arruma meu sorriso e desalinha o conjunto. Saio da cadeira e ganho as calçadas parecendo ter acabado de fugir de uma das trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

E como recebo esses olhares espantados e estranhados no caminho até o carro? Ora, alargando orgulhosamente o sorriso, agora reluzente e brilhante. Afinal, o resultado de enfrentar os medos acaba sempre sendo positivo. E, semana que vem, retorno ao consultório municiado de pente e lenço, porque também não dá pra seguir a vida toda sendo baúco (outra vez o dialeto... esse não vou traduzir).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2014)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Santa realidade, Batman!

O que eu mais gostava no Batman, na minha infância, era o seu cinto de utilidades. Uso o verbo “gostar” no passado não porque Batman deixou de trajar seu cinto de utilidades (“bat-cinto”, não seria isso?), mas pela razão óbvia de que estou desterrado da infância já faz décadas, tendo de pinçar do passado qualquer coisa que se relacione a ela (“um passado cada vez mais longínquo, por sinal”, cochichou alguém aí, do outro lado da página... eu sei, eu percebi...).
O Batman, por sua vez, que já nasceu adulto no final dos anos 1930, enfrenta a passagem dos anos sem o acréscimo de uma ruguinha sequer por trás daquele carnavalesco pijama colante. Vai saber que tipo de creminho milagroso transporta em algum dos compartimentos daquele cinto...
Mas então, o cinto de utilidades do Batman. Pois, me fascinava. A cada nova aventura que eu acompanhava, fosse pelas revistas em quadrinhos da extinta Editora Ebal ou pelos episódios em preto e branco (em Ijuí nos anos 1970, nossa televisão Telefunken só transmitia em branco e preto) do seriado estrelado por Adam West, o herói mascarado orelhudo (sim, a máscara dele tem orelhas pontiagudas, observe... tá, tá, vou parar de esculachar...) sempre recorria ao cinto para sacar dali algum bat-produto surpreendente que lhe era crucial para sair das enrascadas articuladas pelo Coringa, pelo Charada, pela Mulher-Gato (alguém aí suspirou “Michelle Pfeiffer”, por acaso?). Genial! Santa precaução, Batman!
Desligada a televisão ou terminada a leitura do gibi com um arremesso da revistinha ao redor do meu quarto, lá vinha o Marcos, descendo a ladeira da sua própria fantasia, metendo-lhe pau na criatividade e imaginando possuir também um cinto de utilidades repleto de coisaradas de que necessitaria para seu cotidiano de criança (muitas merendinhas Mirabel para comer a qualquer hora da tarde sem ter de atacar a lata de biscoitos na cozinha; gibis de todos os tipos para ler debaixo das árvores do pátio; spray imobilizador do cachorro malvado da vizinha que tem fixação pelos meus calcanhares – o cachorro, não a vizinha –; mertiolate instantâneo para curar esfolamentos no joelho sem causar dor, coisas do gênero).
Mas foi-se a infância e restei-me aqui, décadas mais velho, invejando aquele Batman estacionado em sua maturidade eterna. O vigilante mascarado segue portador de seu inseparável cinto de utilidades. Eu, no mundo real em que agora vivo, atrolho os bolsos ao sair de casa com chaves do apartamento, chaves do carro, talão de cheques, celular, caneta, bloco de anotações, moedas para o parquímetro, cartão de crédito, cartão de débito, cartão do plano de saúde... Um batalhão de utilidades. Todas inúteis para descer a ladeira da imaginação.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de agosto de 2014)