terça-feira, 30 de setembro de 2014

Prudência impressa

Alguns livros de minhas estantes acordaram muito excitados ontem pela manhã. Logo ao me verem em pé, invadiram meu moroso processo de transição entre o sono e o despertar exigindo que eu escrevesse a crônica de hoje tendo como tema o significado importante da data de 30 de setembro para o universo da literatura. “Ué, mas ce qui se passe?”, perguntei a eles, misturando línguas, fenômeno típico de meus acordares, mas preocupante porque, desperto, sequer arranho o francês.
 Pulando nas prateleiras como passarinhos no ninho excitados com a chegada das minhocas no bico da ave-mãe, os livrinhos mais salientes me informaram que hoje, 30 de setembro, comemora-se a publicação da Bíblia de Gutenberg, ocorrida nesta data no ano de 1452, marcando o nascimento dos livros impressos. Motivo suficiente para estarem bem alegrinhos, uma vez que foi a invenção de Gutenberg que permitiu a existência de todos eles.
Achei justa a reivindicação e decidi que, sim, escreveria sobre isso. Porém, não pude deixar de estranhar o silêncio reservado de minhas enciclopédias, dicionários e biografias ali no canto. Sei que eles são mais contidos por natureza, mas ficou algo no ar, até porque, os arautos da reivindicação eram justamente aqueles meus livrinhos assim, digamos... mais superficiais.

Antes de meter dedos ao teclado, achei prudente investigar. Sim, a internet, em diversos blogs e sites, indica a data de hoje como sendo relativa à publicação da Bíblia de Gutenberg. Mas senti falta de uma fonte histórica mais confiável, uma vez que a internet aceita tudo e é muito fácil um blog copiar do outro sem proceder a uma peneirada mais criteriosa das informações. Após muito navegar, decidi me levantar e lançar mão à consulta direta daqueles meus sempre confiáveis dicionários, biografias e enciclopédias impressos, que esperavam por mim ali, no cantinho deles. E batata: há controvérsias. Gutenberg levou anos compilando sua primeira edição impressa da Bíblia, mas não se sabe exatamente quando ela veio a público. Portanto, não poderei escrever esta crônica. Afinal, é preciso confiar desconfiando, como nos ensina sempre a boa literatura... impressa!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de setembro de 2014)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Só é dino quem quer

Estamos calvíssimos de saber que quem sobrevive são aqueles que demonstram melhor capacidade de se adaptar ao meio. Trata-se de uma lei natural que rege os destinos dos seres vivos desde que se sabe da existência de vida no mundo. E como o cenário externo é mutável, sobreviver significa não só capacidade de se adaptar ao meio mas, principalmente, possuir também destreza para acompanhar o ritmo das mudanças. Melhor ainda é conseguir se antecipar a elas.
A história do mundo é repleta de páginas destinadas a elencar criaturas que não souberam se adaptar às mudanças do meio e, por isso, acabaram sendo extintas. Que o digam os tigres dente-de-sabre e os gliptodontes. Mesmo entre os seres da mesma espécie, sobrevivem os indivíduos que se viram melhor nos 30. A girafa de pescoço mais alto conseguirá comer as folhas mais nutritivas do que a girafa de pescoço mais curto, e aumentará suas chances de sobrevivência. A zebra veloz escapará do ataque da leoa faminta, que optará por devorar a zebra manca.
Assim também se dá em diversas outras áreas da existência, como nas profissões, por exemplo. Quem não sabe se adaptar à evolução da sociedade, acaba sendo extinto. Não faz muito sentido insistir em fabricar rodas de carroça desde o advento dos veículos automotores. Ou fabricar disco de vinil na era da música digital. Máquinas de escrever são peças de museu no mundo dos computadores pessoais. Alfaiates são raridades na sociedade das roupas industrializadas feitas em tamanhos padronizados.
É preciso estar atento para não acabar ficando atolado em conceitos que rapidamente vão sendo engolidos pelo ritmo alucinado das mudanças. Loja que não atende bem ao cliente acaba consolidando a opção pelas compras por internet, que ganham cada vez mais terreno. Bares, cafeterias e restaurantes que não oferecem wi-fi ao público vão acabar vendo essa clientela migrar para a concorrência. Prestador de serviço relaxado vai ser riscado da lista de opções da freguesia. Até ônibus intermunicipal oferece filminho a bordo, internet, jornal, bolachinha e água de graça, para fidelizar seu público.

Hoje em dia, só vira parceiro de dinossauro quem insiste em permanecer cego ao mundo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de setembro de 2014)

domingo, 28 de setembro de 2014

Feira de sinceridade

Saber receber uma crítica é uma questão de maturidade pessoal, dizem os psicólogos. Os românticos diriam que ter encaixe para absorver as críticas é, na verdade, uma arte. Já eu, que faço o estilo dedo-destroncado, digo que aguentar no osso do peito as pauladas sem rugir é coisa para quem tem estômago.
Sim, porque nem sempre é fácil ser alvo da sinceridade alheia. E, se existe uma categoria profissional que possui estômago de ferro e sabe exercer a arte de receber críticas com maturidade, é a dos feirantes. Circule por entre as tendinhas de uma das várias feiras de produtor que existem pela cidade sempre que desejar constatar in loco o exercício desbragado da sinceridade do consumidor sendo exposta diretamente aos fornecedores do produto. É batata!
Defronte ao tabuleiro repleto de produtos, estacionam as donas de casa que, exigentes, passam a exercitar ali seus direitos de consumidoras com uma destreza que deveria ser modelo para a atuação de todos nós, em todos os estabelecimentos e frente a todos os prestadores de serviços existentes. “Barbaridade, mas estão feios esses tomates, hein, vizinho”, exclama uma delas, frente ao sorriso amarelo-cenoura do produtor. “Foram as chuvas, vizinha, mas deixa eu escolher os melhores aqui para a senhora”, replica ele, amansando a freguesa com um sorriso e não perdendo a venda. “Ma zio, mas o preço da tua cebola está o mesmo que no mercadão”, reclama o senhor de boina. “Sim, mas olha a qualidade, vizinho, aqui tem qualidade”, sai o feirante em defesa de seu produto.

De fato, trata-se de uma arte. Na verdade, da arte do bom humor fraterno camuflado sob um falso véu de indignação, porque é na feira, junto aos simpáticos feirantes, que se pode extravasar as indignações verdadeiras que vão sendo recalcadas no dia a dia contra o serviço de telefonia, contra o serviço de televisão paga, contra o mau atendimento nos bancos e na saúde pública, contra as estradas que ninguém conserva. Enxovalhando o tomate do feirante, atiram-se tomates podres simbólicos naqueles que de fato nos oprimem. Como já dizia o poeta aquele, “tudo é símbolo e analogia”...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de setembro de 2014)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Cinema Pioneiro

Quem faz aniversário hoje, neste 26 de setembro, é o cinema mais antigo do mundo em funcionamento, o polonês Kino Pionier, o “Cinema Pioneiro”. O local abriu as portas em 1909, 105 anos atrás, e permanece atraindo cinéfilos para dentro de suas salas ao longo de todas essas décadas. Que magia será essa?
Localizado na cidade polonesa de Szczecin, o cinema sobreviveu à passagem de duas guerras mundiais cujos epicentros sempre tiveram aquela região como foco (quando de sua criação, em 1909, a região pertencia à Alemanha). Isso pode ser impressionante, mas o que realmente chama a atenção é o estabelecimento permanecer firme e atuante na condição de cinema de calçada, que é como se denomina hoje em dia os locais de exibição de filmes construídos especificamente para esse fim, e que não se encontram enfurnados dentro de shopping centers.
No Brasil, os cinemas de calçada entraram em rápido declínio a partir da década de 1990, devido à proliferação de shopping centers, e seu fim alternou-se entre duas mortes preferenciais: demolição para dar lugar a prédios ou a estacionamentos rotativos ou transformação do espaço em templo para igrejas. Mas o fenômeno da extinção dos cinemas de calçada não foi um processo tão rápido e definitivo assim em todas as partes do mundo, em especial em alguns países da Europa cujas populações não aderem tão alegremente aos ditames do estilo norte-americano de vida.
E é por aí que se deve buscar a explicação para o fenômeno da longeva existência do Kino Pionier e seus 105 anos celebrados hoje. Os habitantes de Szczecin, pelo visto, cultivam como traço cultural hereditário o amor não só pelos filmes, mas também pelo ritual de se dirigir a um cinema situado fora de um shopping center, como faziam seus ancestrais desde o início do século passado. Aliam-se a isso outros fatores, claro, como a questão da segurança, que certamente é mais elevada em lugares como Szczecin, bem como a mobilidade urbana e outros fatores que envolvem o termo “qualidade de vida” em sua total abrangência.

Longa vida ao Kino Pionier, um bastião de resistência cultural encravado no noroeste da Polônia!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de setembro de 2014)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tudo o que quis

Agora ando viciado em responder aos quiz, esses jogos de perguntas e respostas que infestam as páginas de abertura de boa parte dos sites pelos quais navego pela internet (“mas por onde é que tu anda navegando, hein, ô, Marcos Kirst?”). Ah, mas pois é, fazer o quê? Cada um com suas manias. A minha, agora, é essa, uma vez que já faz décadas que parei com aquela coisa de querer aprender a jogar tênis por causa da minha (falta de) coordenação motora, que impedia um casamento harmônico de movimentos entre meu braço, a raquete e a bolinha, elementos que nunca se encontravam na quadra.
Então, já que parei com aquilo, acho que posso agora, pelo menos, me dedicar a isso, que é bem menos perigoso para a integridade física das janelas da vizinhança dos clubes de tênis por aí. Como também desisti de aprender a nadar, já que minha tendência nas aulas de natação sempre foi a de praticar o estilo livre direto ao fundo da piscina sem escalas e borbulhando bastante, agora respondo aos quiz no conforto do meu escritório, quando termino os afazeres e me boto a conhecer um pouco mais sobre mim mesmo.
Sim, porque, a partir de alguns quiz recentemente respondidos, descobri, por exemplo, que o melhor lugar para eu morar aqui no Rio Grande do Sul seria a cidade de Alegrete, haja vista as respostas que andei dando, tipo o lugar em que mais gosto de tomar mate e qual a minha função quando acontece um churrasco. Achei interessante, resta saber se Alegrete me quer por aquelas bandas. Noutro, descobri que, a julgar pelos meus hábitos, bons e maus, eu tenho uma idade física uns cinco anos menor do que a cronológica (“parabéns, Marcos, mas a mental você não vai revelar, não é mesmo?”).

Assim, de quiz em quiz, vou descobrindo sobre mim o que sempre quis. Repondo daqui, respondo dali, confiro as respostas e vejo se me agrada a forma como sou retratado pelos organizadores das perguntas. Bem mais barato e bem mais instantâneo do que sessões de terapia? Só não sei até que ponto confiáveis. Nem qui(z)s saber...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de setembro de 2014)

O tempo passado

Diz-me teu passatempo e dir-te-ei quem és. Lendo assim, de supetão, a frase com que inicio a crônica hoje soa pretensiosa. Fica parecendo que possuo a capacidade sobrenatural de definir o perfil do leitor simplesmente avaliando o tipo de atividade a que ele se dedica para fazer passarem as suas horas de ócio. Balela. Quem sou eu para ousar querer parecer poder tanto fazer (já viram tantos verbos no infinitivo enfileirados juntos assim antes?). Pois, que nada!
A frase pretensiosa ali de cima não passa de um artifício de cronista para capturar a atenção de leitores como você, que pousou os olhos ali, leu aquilo e já se encontra aqui, quase na metade do segundo parágrafo. Você, eu tenho certeza de que irá adiante até o fim do texto. Fisguei-te! Agora, vamos. Pois, então: a frase de efeito ali do início foi pensada para introduzir com certa pirotecnia o tema que desejo abordar, que é a questão dos passatempos, essas bobagenzinhas a que nos dedicamos quando nada de melhor temos a fazer, recursos aos quais jamais lançaríamos mão caso deixássemos a inércia de lado e fôssemos mais criativos, porque é óbvio que sempre haverá algo melhor para se fazer, porém, que fazer...
Um de meus passatempos atuais, como já devem ter notado, é costurar frases quilométricas repletas de vírgulas, como a última do parágrafo anterior, uma vez que, para isso, ainda não pago impostos e é uma forma de verificar se tenho mesmo fôlego para escrever tanto sem ser xingado pela minha consciência, que me parece andar meio que desligada ultimamente, haja vista que já na sequência emendo outra frase quilométrica e ninguém faz nada. Houve tempos em que eu apenas preenchia palavras-cruzadas. Livrinhos impressos, os quadradinhos preenchidos a caneta, mesmo. Nada de virtualidades computadorizadas.

O mesmo com os jogos de paciência. Pegava baralhos físicos, dispunha as cartas sobre a mesa da cozinha e passava horas perdendo para mim mesmo. Houve a fase dos quebra-cabeças de 500, 800, mil peças! Os modelos de armar, a coleção de selos. Mas hoje, hoje não há mais tempo nem mesmo para os passatempos. Passou-se o tempo. E sequer sei dizer quem sou.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de setembro de 2014)

A ilha deserta

Quem nunca sonhou em possuir uma ilha deserta só para si e refugiar-se lá das agruras do mundo, transformando-a em seu paraíso pessoal, com a sua cara, com seus livros e discos preferidos, local mágico em que tudo o que você deseja lhe caísse aos pés ao estalar de seus dedos, sendo assim feita a sua vontade? Eu já. A senhora ali, meneando a cabeça, também? Que bom!
Pois então, senhora, olha só, sonhe comigo, ajude-me a formatar melhor esse desejo fantasioso compartilhado por grande parcela da humanidade, sempre que cada um sente pesar sobre suas costas o fardo do mundo. A imagem da ilha deserta nos vem à mente quando nos sentimos oprimidos no trabalho, ou quando estamos infelizes em casa, ou quando as dívidas começam a nos devorar pelo calcanhar, ou quando bate aquela angústia vinda não sabemos de onde e que vai nos consumindo aos pouquinhos, a ponto de só vermos salvação... na ilha deserta!
Vamos para lá? Quer dizer, vamos, nada. A senhora vai para a sua e eu vou para a minha, afinal, se a senhora for junto para a minha, ela deixará de ser deserta. Eu mesmo, habitando a minha ilha deserta, farei com que ela deixe de ser deserta, mas a minha ilha foi feita para acolher a mim e aos meus devaneios, e a senhora até pode vizinhar a minha ilha, posso abanar para a senhora de longe, sempre que a maré baixar, mas a senhora na sua, eu na minha. Cada um com os seus desertos, combinado?

Mas agora, minha senhora, esse nosso sonho ficou possível de ser transformado em realidade. Chega-nos a notícia de que o governo das Ilhas Maldivas, aquele arquipélago paradisíaco localizado lá no meio do Oceano Índico, está colocando à venda uma ilha deserta que é a nossa cara: 14 hectares de puro mar azul, natureza, árvores, calor, sol, e a mais completa solidão. Tudo isso pela bagatela de 14 milhões de dólares. Viu? Basta pararmos de sonhar com bobagens, trabalharmos bastante nossas vidas inteiras juntas (e mais as de milhões de outros sonhadores iguais a nós), que compramos a ilha. Ou seja: para obtermos a ilha de nossos sonhos, precisamos antes é de muito choque de realidade. Sonhozinho mais caro esse nosso, hein, amiga?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de setembro de 2014)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Chinelinho lilás

Ah, o valor de um chinelo velho! Escrevi aqui, semana passada, sobre certos objetos antigos que insistimos em manter ao nosso redor por razões afetivas obscuras que causam espanto até mesmo a psicólogos experientes. Tentei entender o que nos motiva a manter nos pés aquele chinelo quase furado que nos conduz pelos corredores da casa no piloto-automático; aquela xícara com a borda lascada na qual bebemos o mais aconchegante café da manhã todos os dias; aquele blusão repleto de bolinhas desfiadas que, de traje social, se transformou em pijama fofinho.
Recebi e-mails de psicólogos e também de leitores variados, compartilhando suas paixões inexplicáveis e profundas pelas pequenas velharias de seus cotidianos que, a bem da verdade, representam pedacinhos de si próprios, hábitos arraigados, zonas de conforto, essas coisas. E da amiga, escritora e colega da Academia Caxiense de Letras, Maria Angélica Graziottin, recebi o comovente relato que reproduzo a seguir:
“Marcos: É com pesar que comunico, com extremo sofrimento, que consegui descartar meu chinelinho de tecido floral de cor lilás. Que eu amo de paixão, já sem tecido no calcanhar, desfiado e com o dedão cutucando e querendo aparecer embaixo do pano. Tinha em casa um novinho em folha, branco com vermelho, liiiindo, também de tecido, mas... não me motivava!
Mas, com sua crônica, criei coragem, peguei na mão aquela belezura lilás e, com um esforço extremo, dei para o meu filho e disse: ‘Podes colocar no lixo por mim?’ E lá se foi para dentro do saco sem ele imaginar o esforço que fiz. Estou nos pés com a lindeza do chinelo novo, branquinho, com vivo vermelho, desenhos da mesma cor, de coraçõezinhos e uns risquinhos imitando o batimento cardíaco dos eletrocardiogramas.  Provavelmente deve ser o meu coração chorando de saudades do floral lilás. Obrigada pela força”.

Ao ler o email, sofri com Maria Angélica a dor que ela sentiu ao decidir abandonar seu antigo e parceiro chinelinho floral lilás. Se alguém encontrar esse chinelinho em algum contêiner de lixo aí da cidade, mande-o aqui para casa! Meu velho e furado chinelo marrom vai adorar conhecer a floral lilás...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de setembro de 2014)

domingo, 21 de setembro de 2014

Poetisa farrapa

Os historiadores sabem, mas a gente até que estuda (só para a prova, claro) essas coisas na escola e, depois, displicentemente apaga da memória, o que é um crime não só contra a história em si, mas especialmente contra nós mesmos, uma vez que somos frutos diretos das ações de todos aqueles que nos antecederam para criar esse aqui e agora em que vivemos. A Revolução Farroupilha, que celebramos neste 20 de setembro, é um acontecimento histórico dos mais significativos já vivenciados pelo povo gaúcho, repleto de episódios interessantes que ou desconhecemos por completo ou simplesmente relegamos para o baú de nossas memórias. Vale a pena relembrar alguns deles.
É interessante constatar que nem tudo foi harmonia e entendimento entre os líderes revolucionários que capitanearam a revolução gaúcha naqueles idos de 1835. Os primos Bento Gonçalves e Onofre Pires, por exemplo, eram parceiros revolucionários de primeira hora, porém, com o passar dos anos, acabaram se desentendendo. E feio.
 Mas tão feio que concordaram em aparar suas arestas por meio de um duelo, que teve lugar em Santana do Livramento, às margens do Rio Sarandi, no dia 27 de fevereiro de 1844. Quem levou a melhor foi Bento Gonçalves, que atingiu Onofre Pires com um tiro no braço. O duelo foi interrompido e o próprio Bento ajudou a socorrer o primo vencido. Onofre Pires morreu por causa da gangrena, quatro dias depois e um ano antes do fim da Revolução Farroupilha. Bento Gonçalves virou até nome de cidade aqui na Serra, mas Onofre Pires, hoje em dia, fica meio à sombra dos personagens históricos mais lembrados da Revolução.

Interessante é constatar alguns laços familiares de personagens como ele. Onofre tinha uma irmã, chamada Antônia Clara Barbosa de Menezes de Campos. Ela era casada com o médico porto-alegrense Manoel José de Campos, o Barão de Guaíba. Este, por sua vez, era padrinho de Paulo de Campos Cartier, pai da poetisa Vivita Cartier (patrona da cadeira 11 da Academia Caxiense de Letras). Ou seja, o padrinho do pai de Vivita era cunhado de Onofre Pires. Dado que nos permite deduzir que Vivita Cartier também tinha alma farrapa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de setembro de 2014) 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Temas em fila

“Quem inventa, aguenta”, dizia o ditado que usávamos em nossa infância, quando queríamos nos livrar de algum abacaxi e empurrá-lo às mãos de outro coleguinha, irmãozinho, priminho. Mas o dito também tem uso autoaplicativo, e serve como uma luva quando não temos a quem culpar por nossas escolhas e decisões, a não ser a nós mesmos. E é assim: inventou, tem de arcar com as consequências. Aguente.
Eu, por exemplo, que inventei de ser cronista, agora, eu que aguente. Inventei de ser cronista e, ainda por cima, de optar por tentar exercitar aquela espécie de texto focado nas pequenas irrelevâncias significativas do cotidiano, nas quais o insumo básico consiste em uma mescla de bom humor, sensibilidade, observação acurada, uso indiscriminado das metáforas, temas para o debate nas entrelinhas, a experiência pessoal servindo de base para a reflexão universal, essas coisas. Para isso, tenho de buscar inspiração e assunto em tudo o que me cerca, tirando leite de pedra quando a vaca ameaça ir para o brejo. Inventei, tenho de aguentar.
Ontem, por exemplo, tergiversei aqui (também uso palavras pouco usuais às vezes, para valorizar o meu passe) sobre a importância psíquica de pequenos objetos do cotidiano como uma xícara lascada, um blusão esgarçado e um velho par de chinelos. Mas, para quê! Bastou isso para que agora todos os pequenos objetos que se julgam significativos aqui de casa passassem a pensar que também devem ser vistos como tema para minhas crônicas. E há agora uma fila deles aqui em volta do meu computador, querendo ser citados.
Estão ali o molho de chaves da casa, a cadernetinha onde anoto ideias, o calendário de mesa em que vou riscando os dias, o bottom dos Beatles adquirido em Buenos Aires, o bonequinho de John Lennon que desgarrou dos outros três parceiros lá da sala, o relógio de bolso que era de meu avô, a pequena ampulheta com areia cor-de-rosa, a esfera transparente que remete ao livro borgeano “O Aleph”, o canivete suíço de trocentas utilidades, o tênis velho que está com ciúmes do chinelo de ontem, até mesmo a almofada para carimbo.

E agora, o que faço? Inventei, aguentarei. E dê-lhe ideia para crônica...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de setembro de 2014)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A xícara lascada

Aquele velho par de chinelos de lã esgarçado pelo tempo e pelos dedões do pé, cuja ponta já começa a ficar ralinha, prenúncio de furo a rebentar logo, logo. Aquele blusão de dez anos atrás, que já passeou pelos agitos da noite, cujo uso agora ficou restrito aos domínios da casa, ou melhor, do quarto de dormir, transformado no mais confortável e aconchegante pijama do planeta. Aquela xícara que veio nem sabemos de onde, mas que compõe a mesa do café da manhã todo o santo dia há anos, mesmo com a lasquinha na borda decorrente de uma lavada estabanada de louça, e na qual o sabor do café com leite fica inigualável. O que essas peças têm em comum?
Primeiro, que, se depender de nossa vontade, são objetos que jamais irão para o descarte. As campanhas sazonais de doações de roupas receberão, sim, aquela calça de dois anos atrás, o casaco em ótimo estado que sai do guarda-roupas por uma questão de espaço, o par de sapatos que ainda reluz como novo, sim. Esses a gente doa adiante sem sofrer a dor da separação.  Mas o chinelinho aquele de quase-furo, que envolve nosso pé por já ter se transformado em uma cápsula anatômica perfeita, totalmente personalizada (ou seria pé-sonalizada?), esse não sai de casa nem que a vaca tussa, e ainda assim, se tossir a vaca, tem aqui um xaropinho de ervas verdes que minha sogra faz que é milagroso e posso ceder uma colher ao bicho, caso queira limpar a garganta.
Segundo, são objetos de estimação que, de alguma forma (ajudem-me, psicólogas), produzem uma representação material, táctil e visual do conchego interno que buscamos nas pequenas coisas do cotidiano para simbolizar a segurança psíquica de que precisamos para enfrentar os desafios do dia a dia (acertei na percepção ou bati na trave?). O chinelo furado, o blusão esgarçado e a xícara lascada são bengalas psicológicas que nos permitem uma conexão com a sensação infantil de aconchego materno perdida com o processo de adultização a que somos submetidos pelo andar das horas.

Podemos deixar para trás o peito materno, os ursinhos de pelúcia e as espinhas. Mas aquela xícara lascada segue ali, firme, em mais um café da manhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de setembro de 2014)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A beleza da juíza

Mas tchê, te falo em mulher bonita essa juíza de Livramento que não se deixou abater pelos atos de vandalismo dos intolerantes bárbaros e preconceituosos que tacaram fogo no CTG. Sem se intimidar, ela conseguiu celebrar o casamento do par de lésbicas, no sábado passado. A cerimônia de casamento coletivo, que uniu 28 casais (27 de pares heterossexuais e um par homossexual), teve lugar no Salão do Júri de Livramento, mesmo. E pronto, a lei foi cumprida.
Quem queria casar, casou. Casaram porque se gostam e desejam construir vida juntos. E puderam casar porque vivemos em um país regido pelas leis, e a lei brasileira permite que as pessoas se casem entre si. Basta que para isso possuam os requisitos necessários e não haja impedimentos legais. E o fato de serem do mesmo sexo não é mais um impedimento legal. Ou seja, se as moças (ou moços) se gostam e querem casar, a lei brasileira permite que casem. É um grande avanço no sentido de abrigar na forma da lei o mais nobre sentimento que um ser humano pode nutrir pelo outro: o amor, independentemente do gênero da pessoa amada.
Viva a lei. E vivam os juízes que a fazem vigorar na prática no cotidiano da sociedade, enfrentando com coragem o preconceito, o barbarismo, o atraso, a fúria, o medievalismo de quem julga o mundo a partir da pequenez de seu próprio umbigo e não consegue admitir a riqueza das diferenças. Linda, a juíza Carine Labres, que não se intimidou com o vandalismo dos covardes retrógrados que tentam passar recado sem mostrar a cara. Linda porque tem determinação no que faz, porque sabe que é preciso fazer a diferença atuando na profissão que escolheu para sua vida (jornalista tem de fazer a diferença, encanador tem de fazer a diferença, professor tem de fazer a diferença, bombeiro, costureira...). Linda porque tem consciência de que a batalha contra todos os tentáculos da intolerância é uma batalha que se luta no dia a dia, com as armas do debate, do exemplo e das atitudes. Linda, a juíza.
Como? Se ela é loira ou morena? Branca ou negra? Alta ou baixa? Jovem ou idosa? Não sei, mas que é um exemplo de beleza humana, ah, isso é.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de setembro de 2014)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Nós, os vampiros

Somos seres paradoxais por natureza. O imediatismo é hoje um dos grandes males a afligir boa parte da humanidade que habita o mundo ocidental moderno. Queremos tudo para ontem, sendo que tudo aquilo que pertence ao ontem já recebe de nós, imediatamente, o rótulo de velho, antigo, ultrapassado. Almejamos o novo e, assim que o conquistamos, procedemos ao descarte para retomarmos o processo de nova caça.
Estamos abandonando a conjugação do ato da fruição em nossas vidas ansiadas, atribuladas, lotadas pela necessidade de consumir sem sedimentar. Um disco lançado ontem, hoje já não tem mais valor por ter perdido (aos nossos olhos vampirescos pelo novo) o frescor da novidade. Sim, porque amanhã já haverá outro disco e depois de amanhã outro e mais outro. E assim se dá com tudo, em qualquer outro aspecto de nossas vidas. Vidas voltadas ao descarte. Vidas voltadas ao consumir sem fruição, sem sedimentação, sem elaboração.
Devoramos com alegria tudo aquilo que o insaciável universo do descarte ininterruptamente nos oferece. Devoramos comida, devoramos filmes, jogos de futebol, relacionamentos, ídolos, novelas, cervejas, músicas, automóveis, promoções, tênis, roupas, jogos, computadores, softwares, hardwares, celulares, sapatos, lanches, gasolina, tudo, tudo, tudo e mais o que houver.

Devoramos avidamente até mesmo as opiniões dos outros. E se forem preconceituosas e repletas de ódios, temos ainda mais rapidez em adotá-las e reproduzi-las, sem pensar a respeito, sem refletir. Viramos craques em dar “control C” e “control V” no processo de reproduzir as aberrações ideológicas dos outros. O paradoxal disso tudo é que, nessa ânsia insaciável de devorarmos vida aqui e agora, desejamos obter vida longa, porém, execramos o principal elemento que vem junto com o pacote da longevidade: a velhice. Os vampiros existem e somos nós, as pessoas reais desse insano moderno mundo, pois almejamos vida eterna com juventude perene. Só que não. O verdadeiro sopro de vida ainda se esconde no silêncio dos momentos de paz consigo mesmo. Se parar um pouco e der uma olhadinha, vai ver que ele ainda está lá.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de setembro de 2014)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Os sete neopecados

Luxúria, preguiça, inveja, ira, gula, avareza e soberba. Todos conhecem esses sete atributos, ou melhor, esses sete defeitos da condição humana, agrupados há séculos sob o conceito de pecados capitais, ou seja, erros difíceis de serem perdoados aos olhos da maioria das religiões. Se são difíceis de serem perdoados, fica intrinsicamente dado o alerta de que o melhor mesmo seria evitá-los.
Segundo o teólogo e monge grego Evágrio Pôntico (345 a 399 d.C.), essas deturpadas paixões humanas seriam o resultado de desequilíbrios que a ausência do divino provocaria nas pessoas. A luxúria seria o resultado do desequilíbrio na esfera do prazer e do sexo. A gula seria um desequilíbrio da alimentação; o orgulho, um desequilíbrio da autoestima e assim por diante. Com o passar dos séculos, os pecados capitais perderam o peso de condenações divinas para assumirem um papel de desvios comportamentais sociais a serem tratados especialmente nos divãs dos psicanalistas.
Claro, seguem valendo, seguem preocupando e suas consequências ainda podem trazer efeitos devastadores aqui mesmo nessa vida. Excesso de ira pode levar à cadeia; preguiça em demasia pode resultar em derrocada financeira; muita gula ameaça a saúde; luxúria demais pode trazer doenças e complicações passionais; inveja corrói por dentro; avareza afasta as pessoas e soberba produz antimarketing pessoal.

Mas nesses nossos tempos modernos, as notícias vindas pela mídia e a nossa própria experiência pessoal diária parecem apontar o surgimento de outro septeto de defeitos de caráter humano, que poderiam ser classificados como “Os Sete Pecados Atuais”. A meu ver, são esses: Intolerância (berço de aberrações como homofobia e racismo), Violência; Leviandade; Individualismo; Desamor; Materialismo e Imediatismo. As más notícias que nos chegam ao conhecimento todos os dias decorrem desses fatores que, a julgar pelas consequências nefastas que trazem, configuram-se em males maiores do que apenas pecados. Se o inferno religioso anda preocupando a poucos, o inferno na Terra é uma realidade perigosa que precisa ser duramente combatida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de setembro de 2015)

domingo, 14 de setembro de 2014

Coelho na cartola

“Temos de ganhar mais dinheiro”. Mesmo vivendo na minha Ijuí natal e tendo apenas 14 anos de idade, lá nos idos do início da década de 1980, eu e meu primo compartilhávamos na essência pelo menos um dos principais atributos dos habitantes da Serra Gaúcha, região que vim a habitar só muito tempo depois. Decidimos nos transformar em jovens empreendedores porque percebemos que os valores que cada um recebia de mesada dos respectivos pais não atendiam mais às nossas necessidades. Ele, porque queria mais grana para os lanches no recreio e eu porque desejava adquirir mais gibis de super-heróis.
Aquela situação não podia continuar. A Editora Abril estava lançando gibis próprios do Homem-Aranha e do Capitão América e eu simplesmente pre-ci-sa-va daquilo. Depois de conversarmos com um coleguinha que era filho de empresário rico, descobrimos que o segredo de sua fortuna residia na criação de coelhos que ele mantinha em uma de suas propriedades. Naqueles tempos politicamente incorretos, a pele de coelho andava valorizada no mercado da moda e aquilo nos pareceu um investimento promissor, afinal, coelhos se reproduzem como coelhos e bastaria investirmos em dois casais de matrizes para em breve vermos nossa criação duplicar, triplicar, quadruplicar, bem como nossos lucros e, com eles, os meus gibis do Homem-Aranha e os pastéis do meu primo.
Mãos à obra, bastava comprar os coelhos! Passamos uma tarde capinando um pedaço de terra nos fundos da casa onde minha família morava, a fim de construirmos ali o nosso futuro coelhódromo. Mas nosso empreendimento jamais avançou de um sonho tirado da cartola mágica da imaginação e de cinco metros quadrados de tiririca capinada nos fundos da nossa casa na Rua dos Viajantes. Isso porque jamais sobrou grana da mesada para adquirirmos os primeiros casais de coelhos. Afinal, havia gibis do Homem-Aranha todo o mês a serem comprados na Livraria Progresso e pastéis de carne a serem consumidos no barzinho do colégio na hora do recreio. Nunca sobrava para investir.

Foi assim que aprendi que coelhos, por si só, não fazem mágica. E que empreendedorismo não salta da cartola.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de setembro de 2014)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Café no bule

Meu afilhado está apenas com dois anos e meio, mas o tempo a gente sabe que voa e não vai demorar muito para ele estar grandinho e disparando perguntas cabeludas que vão deixar os adultos ao redor de saia justa. Principalmente os pais, que serão os alvos preferenciais de sua curiosidade, seguidos pelos professores. Mas depois vêm os dindos, e é aí que entro eu na jogada. Por isso que já estou aqui me preparando, porque não quero passar vergonha frente às novas gerações da família, já que João Vitor, além de afilhado, é sobrinho.
Fico imaginando aqui, fazendo uma projeção de futuro, alguns momentos eventuais em que os pais de meu afilhado, já exauridos de tanto responder perguntas e de rebolarem para se saírem bem das já citadas (mas sempre inesperadas) saias justas a que se verão confrontados, optarem por de vez em quando passar o abacaxi para o lado de cá, dizendo: “pergunta lá pro teu padrinho, que é jornalista”. E lá virá o João Vitor, perguntando: “Dindoooo, o que é café descafeinado?”. Para evitar aquela cara de tacho de quem nunca sequer pensou sobre o assunto, é bom já ir me preparando.
Café descafeinado, por exemplo. Pois é, o que é, hein? A senhora ali, saberia me dizer? Sim, claro, é café sem cafeína, mas a senhora acha que isso vai satisfazer a curiosidade futura de meu perguntativo afilhado? Não, né, terei de ir além. Afinal, sou o dindo jornalista. Existem, minha cara senhora, pelo menos cinco métodos para exorcizar para fora do café as moléculas de cafeína, sabia a senhora disso? Hein? Não sabia, né? Nunca deve ter perguntado isso ao seu padrinho. Ah, bem, é verdade, no seu tempo não havia essas coisas de café sem cafeína, verdade, tem razão a senhora. Mas existem cinco métodos. Pelo menos. E me dá uns dias que saberei detalhar um por um. Estou me preparando. Que venha o afilhado, com essas e com todas as outras que bem entender (ou que quiser entender).

Se bem que... bobagem, Marcos. Que padrinho jornalista o quê. Para tirar suas dúvidas, ele vai, no mínimo, fazer o mesmo que estou eu fazendo agora: uma rápida busca google. “Dãããã”, vai me dizer ele, no futuro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de setembro de 2014)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Razão ou sensibilidade

Uma coisa é sentir-se oprimido por determinada situação opressora e não ter o direito de revertê-la. Nesse caso, o que se configura é cerceamento de liberdade, a exigir a transformação desse quadro. Isso não impede que outra pessoa, vivenciando a mesma situação, não sinta essa opressão, o que significa conformismo e cumplicidade com a opressão.
Outra coisa é ter conquistado o direito de não vivenciar essa situação opressora mas, mesmo assim, optar por seguir mantendo tudo como está. Aí se trata de liberdade individual de escolha e não há o que fazer. Penso nisso ao findar a leitura de mais um romance escrito pela autora inglesa Jane Austen (1775 – 1817), “Persuasão”, no qual, a exemplo de seus outros trabalhos (“Razão e Sensibilidade”, “Orgulho e Preconceito” etc), a autora se debruça sobre a questão dos casamentos arranjados por motivações econômicas e sociais, às quais as mulheres eram submetidas naqueles idos dos séculos 18 e 19.
Via de regra, a escolha do marido estava a cargo de acertos entre os pais de família, levando em conta o que seria melhor para a sequência de sobrenomes, propriedades, títulos, descendências, coisas assim. O afeto, a compatibilidade de espírito, a união de projetos comuns não estavam em questão. O amor e a paixão, muito menos. As protagonistas femininas das obras de Jane Austen se rebelam contra esse status quo de sua época e assumem um anseio que começava a surgir e que viria, décadas mais tarde, a alterar essa situação para melhor.

Vivemos hoje, no século 21, um cenário diferente, ao menos, no mundo ocidental. Casamentos por conveniência econômica e social não são mais uma regra imposta. O que se espera quando um casal dá seu “sim” em uma igreja ou frente a um juiz de paz é que o estejam fazendo movidos pelo afeto recíproco. O resto (patrimônio, nome, carreira, família), supõe-se que irão construir juntos, a partir de um esforço comum. Optar por uma união de conveniência não é mais regra opressora. Mesmo assim, é de surpreender que ainda haja quem veja nisso uma opção de vida. Jane Austen há de se revirar no túmulo. Mas liberdade é isso, Jane, fazer o quê.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de setembro de 2014) 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Poeta, porém Patrícia

Nossa, compadre, te falo em ver um cara desolado! É nas crises pessoais, naqueles momentos em que você está atolado no fundo do poço, que se percebe quem é amigo de verdade, não é assim que as coisas são? Pois é, é isso mesmo.
Todos nós já estivemos, alternadamente, em alguma das pontas dessa equação importante dos relacionamentos humanos, a amizade. Tanto já estivemos no fundo do poço, precisando de uma mão amiga, quanto já estivemos na condição de sermos o dono da mão que deverá ser estendida ao amigo encalacrado no fundo do poço. Pois então, compadre, estou numa saia justa com meu amigo Argentino, porque o cara, tchê, está no fundo do fundo do poço e não sei o que fazer para ajudá-lo a sair de lá. Vou te contar o que se sucede, aguenta as pontas e sorve mais um mate enquanto escuta.
Argentino, você sabe, apesar de ser meio atabalhoado, é um homem generoso, romântico e de alma poética. Pois sendo assim, aconteceu, faz tempo já, de se apaixonar profunda e platonicamente por ninguém menos do que a jornalista e apresentadora de telejornais Patrícia Poeta. Linda, charmosa, inteligente e dona de sobrenome poético, a jornalista gaúcha arrebatou, sem querer e nem imaginar, o coração de meu amigo. Ele, nas solidões noturnas de seu quartinho alugado mal iluminado, dedica-se há anos a produzir longos poemas de amor a serem um dia endereçados a ela lá no centro do país, na esperança (vã, claro) de arrebatar a alma, as atenções e a paixão da encantadora jornalista.

Só que agora chega a notícia de que Patrícia Poeta acaba de adquirir uma mansão de frente para o mar, no Rio de Janeiro, no valor de 23 milhões de reais. Com isso, Argentino finalmente caiu na real e percebeu que não há no mundo verso poético bem cadenciado capaz de rivalizar com a poesia existente na conta bancária de um marido rico e poderoso. Argentino achava que ela era mais Poeta do que Patrícia. É, compadre, poeta mesmo, nessa equação toda, é meu amigo Argentino. Quem mandou se encantar pela Patricinha? Como consolar agora o cara? Acho que vou presenteá-lo com um livro de sonetos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de setembro de 2014)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O cão ou a salsicha?

Existem mistérios filosóficos que jamais desvendaremos. Entre eles, aquele que instiga a pensar sobre a precedência de algumas coisas sobre as outras, como “quem veio primeiro: o ovo ou a galinha”? Isso, jamais elucidaremos. Mas há outros que, com um pouquinho de pesquisa e de raciocínio, é possível sanar. Por exemplo: todos achamos que a raça de cachorro dachshund é apelidada de “salsicha” por causa de seu formato semelhante ao do embutido comestível, mas é o contrário. Surpresa, não?
Pois é, e como foi que descobri isso? Ora, minha senhora, pesquisando. Para sua informação, saiba que hoje, 9 de setembro, comemora-se a invenção do cachorro-quente, ocorrida há 130 anos, em 1884, nos Estados Unidos. Sim, até o prosaico cachorro-quente, sucesso das festinhas infantis de sábado à tarde, teve de ser inventado pelo engenho humano, não nasceu pronto em árvores como o xis-bacon ou o salame.
Pois consta que foi um imigrante alemão que se estabeleceu nos Estados Unidos em 1880 e passou lá a vender com sucesso uma salsicha quente criada por um patrício seu na Alemanha, décadas antes. Esse alemão na Alemanha, o das salsichas, batizou seu embutido compridinho de “salsicha dachshund”, devido à semelhança do acepipe com o formato de seu cãozinho de estimação. Assim, as salsichas eram inicialmente conhecidas como “dachshund” e também como “salsichas cachorrinho”. Como eram vendidas quente, viraram hot-dogs. Então, foi o cão que batizou a salsicha, e não o contrário. Não existe o cachorro tipo salsicha, mas sim a salsicha tipo cachorro. Porque obviamente o cachorro veio antes, né!

Já o alemão migrado para os Estados Unidos vendia seu lanche inicialmente acompanhado por um par de luvas, para que os clientes protegessem as mãos do calor e da gordura. Só que a maioria não devolvia as luvas e ele começou a ter prejuízo. Daí que (bingo!) veio a ideia de envolver a salsicha em um pãozinho sovado, dando origem então ao maravilhoso invento culinário que exatamente hoje faz anos. Já pode imaginar o que vou sugerir para celebrar a data e a ingestão de tanta informação nova...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de setembro de 2014)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Mea culpa

O clima não estava muito confiável no início da tarde do último sábado, quando saí de casa rumo ao centro a fim de cumprir compromisso agendado com bastante antecedência. Dizem os entendidos em gente que uma das principais características do ser humano é sua capacidade inerente em aprender com os próprios erros. Acredito nisso, mas acredito também que existem as exceções que confirmam a regra. Especialmente porque eu sou uma gritante exceção que confirma a regra.
Pois vejamos. Sair de casa sob a imprevisibilidade do tempo é uma situação bastante comum para qualquer indivíduo que resida em alguma das cidades integrantes da região conhecida como Serra Gaúcha. Aqui por essas bandas, é comum fazer sol pela manhã, ventar antes do almoço, fechar o tempo à uma, cair um toró às duas da tarde, limpar de tardezinha e desabar um frio de encarangar à noite. Sim, a gente sabe disso.
Pois bem, mas o que fiz eu no sábado? Cheguei no centro, estacionei o carro nas imediações do Parque dos Macaquinhos e rumei lépido, fagueiro e determinado ao local do compromisso, situado a pouco mais de cem metros dali. Levar junto o guarda-chuva? Nem pensar, pensei. Ele que fique ali no banco de trás do carro. Não vai chover.
Bom, choveu. Choveu, e choveu cântaros. Mas choveu mesmo foi exatamente na hora em que meu compromisso deu-se por encerrado e tive de retornar ao carro, dentro do qual me esperava meu guarda-chuva, sequinho, sequinho, ele, ali no banco de trás. Culpa de quem aquela chuva toda? Minha, senhores e senhoras caxienses. Minha culpa, minha máxima culpa. Caso alguém tenha se molhado com a repentina chuva de sábado à tarde e pego um resfriado, podem dirigir seus xingamentos a mim, porque a culpa é unicamente minha. Porque é certo que não teria chovido se eu tivesse transportado junto comigo o meu guarda-chuva.

Porque é sempre assim, eu não aprendo com meus erros. Mas pior do que isso é essa megalomania de achar que, tal como um pajé ancestral, posso influenciar as nuances do tempo a partir de meus atos rituais. De fato, devo ser alguma espécie de exceção à regra. Só ainda não sei de qual regra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de setembro de 2014)

sábado, 6 de setembro de 2014

Som na caixa

Uma boa trilha sonora é elemento fundamental para compor o clima ideal de diversas ocasiões em nossas vidas, é ou não é? Desde um encontro romântico minuciosamente arquitetado até o simples ato de fazer a faxina na casa, qualquer atividade humana é passível de ser qualificada e ressignificada a partir do momento em que conseguimos ter a felicidade de nela encaixar as músicas adequadas. Concorda aí, cidadão? Sim? Pois bem!
Ao longo das décadas, fui montando em casa uma coleção respeitável de CDs contendo centenas de álbuns dos artistas musicais que mais aprecio. Por isso, é natural que caiba sempre a mim a incumbência de ser o DJ da casa quando vamos receber visitas e também não me furto a encarnar a atividade em todos os momentos. Número um porque gosto e número dois porque tenho dificuldades em aprovar as seleções musicais deixadas a cargo dos programadores das FMs que de vez em quando insisto em sintonizar. Não, não, acabo sempre preferindo minhas próprias seleções.
Mas achei um achado o fato de o serviço de televisão a cabo que eu assino disponibilizar um canal só de músicas, no qual posso selecionar determinado gênero e deixar rolar o som enquanto lavo a louça, enquanto leio poesia na sala ou quando recebo visitas. Só que não. Acaba acontecendo a mesma coisa que ocorre em relação às rádios: toca uma, tocam duas boas músicas e pá: lá vem porcaria, uma atrás da outra. Como resultado, acabo invariavelmente desligando a tevê e recorrendo aos meus próprios discos.
Mas alguém lá na tevê a cabo deve ter escutado as minhas preces e, desde alguns dias, passou a disponibilizar uma opção específica exclusiva com músicas dos Beatles. Ah, aí não tem erro: um dos segredos do sucesso é saber focar seus esforços em busca da qualidade total. Sabendo focar e apostando na qualidade, as chances de sucesso são sempre as maiores possíveis. Um canal só com Beatles não tem errada, só vai fornecer música da melhor qualidade, uma atrás da outra, ininterruptamente, por pior que seja o programador.

Taí uma das receitas do sucesso: saiba focar naquilo que tem capacidade para fornecer qualidade total, e terá satisfação garantida. E come together.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de setembro de 2014)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sinfonia do meio-dia

Os elementos que compõem a sinfonia começam a se apresentar no cenário por volta das onze horas da manhã. Para detectá-los, é necessário afastar-se das ruas movimentadas dos centros das cidades, sejam elas grandes ou pequenas, porque, hoje em dia, até mesmo as pequenas cidades fomentam centros nervosos, conturbados, recheados de relógios, pressas e cotovelos.
Para encontrar os instrumentos dessa composição, se faz necessário rumar para lugares mais mansos e lá deixar-se estar. E aqui, é preciso também saber conjugar na alma esse verbo “estar”, que não é um verbo passivo, mas bastante ativo quando desejamos reacender aquela conexão que antigamente tínhamos mais afinada com nossa própria essência pessoal.
Para isso, é preciso ir para Uvanova, por exemplo, cidadezinha em que as casas ainda são maioria em relação aos prédios e aos restaurantes de comida a quilo, ou para os bairros distantes em nossas próprias cidades, onde o cenário de interior ainda rima com o passar mais lento e humano das horas. É nesses lugares em que a gente, quando está de verdade neles, consegue detectar o afinar dos instrumentos da sinfonia do meio-dia que a partir das onze da manhã já se desenha.
Então, de uma janela lhe chegam aos ouvidos o rugir de uma panela de pressão amolecendo os grãos do feijão que alimentarão a família. Da casa da esquina ressoam as pancadas de alguém que amacia um bife sobre a tábua de madeira. Dali do lado suas narinas são invadidas pelo cheirinho de cebola sendo frita na manteiga. O choque do arroz frito na panela com a água fervente que lhe é vertida antecipa a base do almoço de logo mais. Na casa verde haverá suco de laranja, pois o espremedor de frutas trabalha sem folga. Ali no fim da rua o cardápio só pode ser dos bons porque é para lá que saltam das moitas os gatos e cachorros da vizinhança, a fazer coro de olhares pidões aos pés da dona da casa.

Nada disso nos chega nos cruzamentos das avenidas ao rumarmos para mais um almoço cronometrado no meio do caos da cidade voraz. Metade do sabor da vida fica para trás em nossas lembranças, ou escondido nas Uvanovas da vida, onde nem sempre nos é possível estar estando.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de setembro de 2014)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Batman na sala

O Batman está lá na sala desde sábado à noite, quando foi esquecido embaixo do pufe por meu afilhado, que apagou no colo da mãe pouco depois de se lambuzar com algumas fatias de pizza. Na hora de ir embora, o mutirão para arrebanhar os brinquedos trazidos junto não contou com a participação do adormecido João Vitor, o único que sabia do paradeiro do vigilante mascarado, a transformar momentaneamente o pufe da sala em batcaverna.
Batman está aqui a nos fazer companhia desde então, esperando a hora de retornar ao convívio de seu legítimo dono, o que deve ocorrer nos próximos dias. Ontem ainda, ao puxar uma das cadeiras da mesa de jantar, pisei em algo que fez “quick” e era um carrinho de borracha representando personagem de um desses novos desenhos animados. Agora está lá ao lado de Batman, engrossando o kit de brinquedos a serem devolvidos.
Lembrei-me do ex-prefeito Mario David Vanin (1941-2011), que gostava de relatar a festa que fazia quando recebia a visita dos netos em casa aos finais de semana. Depois disso, passava os dias seguintes se deparando com brinquedos perdidos no banheiro, debaixo do travesseiro, sob o tapete da sala, por tudo. “De onde menos se espera, salta um bonequinho”, dizia. Quem tem neto, sabe. Quem tem afilhado, também.
Mas o Batman de meu afilhado provou ter serventia prática além de ficar adornando o topo da televisão da sala, que foi onde eu o pendurei a fim de estar à vista para ser lembrado no próximo encontro familiar (se eu lembrar do Batman, lembrarei também do carrinho de borracha que ficou enfiado dentro da caixinha dos controles remotos). Ontem foi dia da vinda da faxineira. E qual minha surpresa, à noite, ao perceber que Batman não estava mais sentado em cima da tevê, mas, sim, emborcado de cabeça para baixo na caixinha dos controles, espremido contra o carrinho.

Significa que Batman foi tirado de lugar pela faxineira, e significa que ela, sim, limpou o pó de cima da tevê, conforme tratei de verificar ao recolocar Batman em seu devido lugar. Bonequinho útil, esse daí. Não sei se volta. Semana que vem, antes da nova faxina, pendurarei Batman em outro lugar estratégico...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de setembro de 2014)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Arroz sonífero

Quem me lê há tempos lembra que eu tenho um amigo chamado Argentino, cujo principal traço de personalidade consiste em ser crédulo ao extremo, especialmente em relação ao que vê na imprensa falada, escrita, televisionada e clicada. Argentino acredita em tudo o que lê e leva ao pé da letra qualquer notícia, atropelando entrelinhas, ignorando metáforas. Para ele, quadrado é quadrado, dia é dia e lua é lua.
É por isso que Argentino tem fissura por notícias sobre resultados de pesquisas feitas ao redor do planeta, revelando descobertas inimagináveis. Agora, por exemplo, está obcecado por arroz, desde que leu reportagem sobre pesquisas realizadas com dois mil voluntários que se atracaram a comer arroz e, como resultado, passaram a dormir melhor, muito melhor. Os arrozentos demonstraram ter conquistado uma qualidade de sono superior à qualidade de sono atingida pelos outros voluntários que comeram macarrão e pão antes de dormir. Conclusão da pesquisa: arroz produz bons sonhos. Resultado da divulgação da pesquisa: Argentino passou a devorar quilos de arroz por mês, na busca por uma melhor qualidade de sono.
Mas Argentino anda desconfiado de que justamente ele encarna a exceção que confirma a regra, pois, ao contrário do que esperava, anda mesmo é tendo pesadelos, dores de barriga e noites mal dormidas. Já sugeri a ele que passasse a comer apenas uma singela tigelinha de arroz antes de deitar ao invés dos dois pratos fundos de risoto, mas ele não me escuta. Afinal, a pesquisa não cita a quantidade ideal de arroz a ser consumida antes do apagar das luzes do quarto. Falha a pesquisa, ou falha o redator da notícia. Ou falha Argentino, esse exagerado.

Certo é meu avô, que há décadas dorme no chão, por acreditar que dorme melhor quem se posiciona com a cabeça para o nascente e fica o mais próximo possível do solo. Ele habita o quinto andar do prédio, mas segue firme dormindo embaixo da cama, de onde ninguém o tira até o amanhecer. Fazer o que, se diz que dorme bem. E eu aqui, com chazinho de alface, lençol cheiroso e colchão fofinho, peleando contra as insônias...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de setembro de 2014)

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Marguerita e portuguesa

Como é difícil sairmos da zona de conforto que nós mesmos tecemos em nosso entorno pessoal. Como é difícil alterarmos em nós os hábitos encravados em nossas essências há tantos anos pela simples repetição de nossos atos e de nossos pensamentos. Isso decorre diretamente da desvontade que temos em ousar, devido à preguiça em destinar esforços para palmilhar novidades.
Tememos o novo. Somos seres de hábitos, sem nos importarmos muito se esses hábitos são positivos ou negativos. Parece que basta ser hábito para que justifiquemos dentro de nós a repetição de seu uso e a imutabilidade de sua presença na consolidação de nossos atributos pessoais. Deixar de fumar? Sim, o fumante sabe racionalmente que seria bom para sua saúde abandonar o cigarro. Mas trata-se de um hábito, então... Emergir do fundo da fofura de nossos sofás, dando um chega prá lá no sedentarismo e passarmos a fazer exercícios pelo menos duas vezes por semana? Sim, sim... a partir da semana que vem... quem sabe... talvez... uhum...
Mas não pensem que estou aqui me travestindo de filósofo de botequim, a aspergir lições de moral trajando sunga no baile da gala, não. Trata-se mais de um mea-culpa do que de uma pregação respaldada em virtudes. Também eu coleciono cá minhas imutabilidades perenes. Basta ver a mim e à minha esposa em uma pizzaria, por exemplo. Caso o estimado leitor (ou leitora) nos visualize noite dessas em uma mesa de pizzaria, cada um com os olhos enterrados em seu respectivo cardápio, pode apostar com quem estiver com você: iremos pedir marguerita e portuguesa. É batata!
Nós chegamos, sentamos, recebemos os cardápios e ficamos ali, vários minutos em silêncio, cada um percorrendo com os olhos as dezenas de suculentos e apetitosos sabores para ao final, sempre, invariável e imutavelmente, pedirmos: marguerita (ela) e portuguesa (eu). A de dezessete queijos, a de atum com brócolis, a de costela com batata palha, a de aspargos e gorgonzola (humm) ficam sempre para a próxima vez. E, na próxima vez, pode apostar: será, de novo, marguerita e portuguesa.
Que coisa mais difícil mudar uma cisma. 
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de setembro de 2014)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Estamos todos surdos

Além do horror explícito latente em todos os aspectos relacionados ao caso do assassinato do menino Bernardo, há outros pontos chocantes, de horrores mais implícitos, que me perturbam. Tenho acompanhado o caso porque me uno ao desejo geral de justiça e porque tenho a convicção de que o fato é representativo de muitos outros maus tratos a crianças que ocorrem em ambientes familiares de ponta a ponta no país.
Precisamos aprender com a terrível experiência que culminou com o assassinato bárbaro de Bernardo. E o que precisamos aprender é a escutar os gritos de socorro. Eu assisti aos vídeos caseiros que escancaram o horror do cotidiano estabelecido entre Bernardo, seu pai e a madrasta. São cenas fortes e tristes. O que mais me choca, no entanto, são os reiterados gritos de socorro emitidos por Bernardo em todos os vídeos. Bernardo gritava por socorro literalmente e também implicitamente (o tal do horror implícito que citei antes). Mas não adiantou.
Vizinhos escutaram seus gritos. A polícia foi chamada e apareceu na casa várias vezes. E não só isso. Bernardo também gritou por socorro ao se dirigir sozinho até o Fórum da cidade e denunciar os maus tratos e o abandono a que vinha sendo submetido. Também eram gritos de socorro. Bernardo passava dias e dias fora de casa, dormindo nas residências de amigos, onde se sentia melhor acolhido do que em seu próprio lar. Também eram gritos de socorro. Bernardo perambulava pelas ruas, era trancado fora de casa, muita gente sabia disso e a própria situação escancarava em si um altissonante grito por socorro.

Ao ser dopado e morto pela madrasta e sua amiga e ser enterrado em uma cova rasa, Bernardo não conseguiu lançar aquele que poderia ter sido seu último grito de socorro. Nem adiantaria mesmo, ninguém iria escutar, assim como ninguém escutou todos os gritos por socorro que emitiu durante anos antes do trágico desfecho. O que me apavora, muito além disso, é essa surdez que estamos, todos nós, desenvolvendo contra os gritos de socorro, explícitos e implícitos, que podem estar sendo gerados ao nosso redor, todos os dias, por quem sequer imaginamos. Só os detectamos quando já é tarde demais.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de setembro de 2014)