sábado, 29 de novembro de 2014

Ora, Papai Noel

Estava andando pelas ruas centrais da cidade manhã dessas e de repente recebi um encontrão de um Papai Noel apressado. Ele acotovelou-me nas costas, abrindo passagem entre o grupo de pessoas que aguardavam na esquina a abertura do sinal para pedestres, e foi-se reto rumo não à casa de alguma criança comportada que merecerá ganhar presentes, mas provavelmente em direção à loja ou ao shopping que o contratou para animar as vendas.
Mas a questão aqui é que ele não pediu desculpas. Quem esbarrou foi ele; quem recebeu o encontrão fui eu. E a matemática da vida em sociedade, nesses casos, tem uma equação bem clara: quem esbarra deve pedir desculpas a quem é esbarrado. Mesmo que o esbarrante seja o Papai Noel. A não ser que Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Bicho-Papão e a Cuca tenham imunidade que lhes absolve da necessidade de pedidos de desculpas. Ou talvez eles pensem que, uma vez que são celebridades perenes, a lógica deva atuar de forma invertida e o esbarrado pedir a eles desculpas pelo esbarro que eles próprios provocaram. Mas acho que não.
O fato é que isso comprova que muita coisa anda mudando e andando do avesso nesses dias de hoje. Primeiro, que Papai Noel não tem de ficar andando a pé e apressado pela cidade, mas o que fazer se, com esse trânsito caótico, precisou estacionar o carrinho com as renas várias quadras longe de seu objetivo? E hoje em dia também não importa mais se a criança se comportou e tirou notas boas no colégio. O comércio deseja vender, as pessoas querem consumir e a presentaiada forra tanto os sacos do Papai Noel que ele precisa empregar representantes diversos para dar conta do recado.

No meu tempo, criança que não se comportava recebia uma varinha de marmelo que Papai Noel colocava no topo do pinheirinho de Natal. Nunca era usada, mas funcionava como aviso. Hoje em dia, quem é que vai exigir bom comportamento das crianças se os adultos, que deveriam dar o exemplo, jogam lixo nas ruas, desobedecem às regras de trânsito, furam filas, sonegam impostos? E eu aqui, me impressionando com um pobre e apressado Papai Noel esbarrante...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de novembro de 2014)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Sobre guirlandas e luzes

Imbuída de espírito natalino, minha esposa já está se ensaiando para ornamentar nossa residência com os tradicionais enfeites de Natal. Também, já é hora, afinal, estamos a menos de uma semana da entrada de dezembro e o jingle bells há tempos que pode ser escutado saindo das caixas de som postadas defronte às entradas de diversas lojas pela cidade.
Como aqui em casa reina uma democracia na qual quem manda é ela, acredito que o tal procedimento de enfeitamento natalino do lar desse final de semana não passa. E aí é aquilo: lá vai o Marcos tratar de pendurar a guirlanda na porta de entrada, instalar metros de luzinhas piscantes no parapeito da sacada, revirar metade da casa à procura da árvore artificial que todos os anos é guardada em um lugar específico e mesmo assim todos os anos não se encontra no tal lugar específico porém em algum lugar incerto e não-sabido com o único propósito de testar os limites de minha paciência natalina. Mas é Natal, releva-se.
O que se passa comigo é que eu não consigo fazer despertar em mim um sentimento genuíno de Natal antes do mês de dezembro, como parece acontecer com boa parte das pessoas que, nem bem entrado novembro, já se botam a enfeitar lares, restaurantes, lojas, shoppings. Que os estabelecimentos comerciais se antecipem eu até entendo, afinal, trata-se de estratégia vital e válida para aquecer seus negócios. Mas não consigo absorver essa exigência de antecipação para dentro de minha vida particular. Coisa minha, eu sei.
Para mim, é o mês de dezembro o período que resguarda o espírito natalino, com as cores do Natal, os cheiros do Natal, as expectativas do Natal, a presença do Papai Noel rondando as casas e analisando o comportamento de todos ao longo do ano para bater o martelo quanto à entrega ou não dos pedidos feitos. Mas tudo isso, para mim, em dezembro, em dezembro, ali em dezembro. Antes disso, ainda me sinto ancorado na realidade mais crua do cotidiano que tanto nos absorve.

Pensando bem, depois disso tudo que escrevi aí em cima, não vejo a hora de começar a cumprir as determinações em relação a guirlandas e luzinhas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de novembro de 2014)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Segredo de pescador

Havia lá em Uvanova (Uvanova vocês já sabem, né, é aquele lugarejo de colonização italiana, encravado no alto da Serra gaúcha, limítrofe às cidades de Tapariu e Vila Faconda) um pescador que era muito conhecido pela sorte que tinha com os peixes. Todos os dias ele encilhava sua mulinha bem cedo de manhã, se o tempo estivesse bom, e seguia rumo ao Rio das Antas, em um local ali que só ele conhecia, de onde voltava à noitinha com a sacola repleta de peixes. Alguns serviam para alimentar a família e a sobra era comercializada entre a vizinhança, rendendo vitais fiorins para seu bolso.
O pescador se chamava Luigi ou Levídeo, não recordo direito. Todos o conheciam em Uvanova e sempre compravam seus peixes, fresquinhos, graúdos, saborosos para comer ensopados e acompanhados de polenta mole, uma delícia local. Mas qual era o mistério, qual era o segredo que fazia com que o pescador Luigi (ou Levídeo) conseguisse pescar tantos peixes e nunca voltar de mãos vazias?
Passadas décadas, sabe-se hoje que não havia mistério nenhum. Levídeo (ou Luigi) simplesmente acordava, tomava sua xícara de café com leite preparada pela esposa, comia uma fatia de pão com rodelas de salame e formaggio e botava-se com a mula rumo às Antas. Lá chegando, arregaçava as mangas e começava a trabalhar. Primeiro, capinava a terra úmida e fofa das margens do rio, à cata de minhocas. Achava as minhocas, separava-as em uma latinha e ia preparando as iscas. Enfiava uma minhoca graúda em cada anzol e minava a margem daquele cantinho do rio com suas linhas.

Aquilo dava trabalho, muito trabalho. Aprendera as técnicas de pescaria desde muito cedo, com seu pai, e fora desenvolvendo e aprimorando o ofício ao longo dos anos. Sempre com muito trabalho, sempre com muita dedicação, sempre com muito esforço, sempre com perseverança, sempre à custa de muito suor. Esse era o mistério, esse era o segredo. Os peixes não pulavam de graça dentro de sua sporta. Eram fruto de trabalho, de muito trabalho. Luigi (ou Levídeo) era uma metáfora ambulante a ser pescada por quem tivesse olhos para ver. E segue sendo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de novembro de 2014)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A sombra de Clara

Clara é o nome de uma jornalista de cerca de 25 anos, solteira, desempregada, que anda vivendo uma crise pessoal sem precedentes. Tentando reorganizar os cacos de sua vida dilacerada, cujas pontas se agudizam com a ruptura recente com um namorado, Clara está mergulhando em um turbilhão caótico de eventos que só fazem piorar à medida em que vamos conhecendo mais intimamente os detalhes de sua vida. Caos e farsa são os elementos que parecem predominar ao seu redor.
Fora o fato de também ser jornalista, não possuo nada em comum (ao menos, em uma primeira análise) com Clara. Às vezes, quanto mais a conheço, chego até a pensar que somos de espécies diferentes. E conheço-a muito bem, por sinal. Tão bem a ponto de elencar outro aspecto no qual diferimos eu e ela profundamente: eu sou real, enquanto que ela é fruto de minha imaginação. Eu criei Clara, mas Clara me impressiona, me intriga e me surpreende.
A mais recente grande surpresa que ela me proporcionou ocorreu na noite de segunda-feira quando, no Teatro Renascença, em Porto Alegre, ela foi responsável por me fazer conquistar a maior premiação que já obtive em minha carreira literária. Clara é a protagonista de meu romance “A Sombra de Clara”, contemplado com o Prêmio Açorianos de Criação Literária, categoria integrante do mais renomado prêmio literário gaúcho, destinada a publicar obras ainda inéditas. O livro já está em fase de pré-produção (contrato assinado e tudo) e virá a público na Feira do Livro de Porto Alegre no ano que vem.
O desafio que me impus na produção desse texto foi assumir a voz narrativa e a visão de mundo da personagem, uma vez que é Clara quem conta a sua história ao leitor, do seu jeito, em seu estilo próprio, a partir de suas próprias convicções. Parece que funcionou, porque os jurados me confessaram que, ao ler o livro, juravam que ele tinha sido escrito por uma autora feminina. “Você deve conhecer muito bem as mulheres”, disseram-me os jurados. Não sei, penso eu. Conheço bem Clara. Quer dizer, Clara é um mistério em si mesma, que cabe aos leitores tentarem desvendar.
Calma, novembro de 2015 está logo aí. Desde já, todos convidados para a sessão de autógrafos.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de novembro de 2014)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Prêmio Açorianos

AUTOR CAXIENSE É O VENCEDOR DO PRÊMIO AÇORIANOS DE CRIAÇÃO LITERÁRIA
Romance inédito de Marcos Fernando Kirst será editado em livro no próximo ano

(Pela Assessoria da Coordenação do Livro e da Literatura, da Prefeitura de Porto Alegre)

O Prêmio Açorianos de Criação Literária 2014, tradicional iniciativa da Secretaria da Cultura de Porto Alegre voltada para textos inéditos e que em sua quinta edição se voltou para o gênero Narrativa Longa (romance, novela ou ficção), teve como vencedor o caxiense Marcos Fernando Kirst, cujo texto “A Sombra de Clara” foi eleito dentre 50 trabalhos inscritos, todos de alto nível. Ao receber o troféu no palco do Teatro Renascença, em Porto Alegre, durante a cerimônia “Noite do Livro”, o autor ressaltou a tradição da Serra gaúcha em gerar bons escritores.

O júri do concurso, formado pela psicanalista Lúcia Serrano Pereira, pelo professor Ruben Daniel Castiglioni e pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann, escolheu “A Sombra de Clara” pela originalidade da escrita, “coloquial mas com um estilo fluído e giros inesperados, em uma narrativa que prende o leitor e propõe variações ao longo do enredo, jogando com ambiguidades e levando a um final surpreendente, tudo isso permeado com senso de humor”.

Além do troféu criado pelo saudoso artista plástico Xico Stockinger e de um prêmio de R$ 10 mil, Marcos Fernando Kirst terá o seu novo romance publicado, em 2015, pela Coordenação do Livro e Literatura/SMC, através de sua Editora da Cidade.


Crédito das fotos: Luciano Medina Martins / SMC



Charme tem cor e marca

Lá vêm as pesquisas! Adoro ler matérias sobre resultados de pesquisas. Larguei as palavras-cruzadas, os caça-palavras, os jogos de paciência com cartas de baralho de verdade e até os joguinhos de computador, que costumeiramente, em épocas distintas, desempenhavam a função de passatempo e aliviadores do estresse acumulado ao longo dos dias, para me dedicar a me divertir com pesquisas. Quanto mais estapafúrdias, melhor. Acho até que vou começar a colecioná-las, agora que larguei os selos, as tampinhas de refrigerante, as garrafas de cerveja, as figurinhas, os chaveiros.
Para o topo da pilha, entre as pesquisas mais bacaninhas, colocarei de cara essa que li ontem e que faz referência à relação aparentemente existente (assegura a pesquisa) entre o grau de charme e atração dos homens e mulheres a partir do automóvel que possuem. A pesquisa, esclarece logo a matéria, não é científica (aspecto que não a impede de figurar na minha coleção: basta ser pesquisa e interessante, que já entra), foi realizada por uma companhia de seguros dos Estados Unidos, a partir das respostas de seus clientes obtidas por meio da aplicação de um questionário.
Eis o que descobriram: homens que possuem picapes, e da cor preta, são vistos como mais atraentes pelas mulheres. E da parte dos homens, eles acham mais atraentes mulheres dirigindo automóveis da cor vermelha. Se for uma BMW, então, a moça vai disparada para o topo da lista do charme e da atração. A cor do carro influencia bastante, e as mulheres, além de prestarem mais a atenção aos homens que possuem carrões pretos em primeiro lugar, também dão lá uma olhadinha para os que têm automóveis prata (segundo colocado) e vermelho (em terceiro). Não falam nada sobre carros populares, mas óbvio que a marca do carrão influencia também bastante.

Bacana, né? Importante saber disso (vital, até) na hora de você, amigo leitor, amiga leitora, trocar seu carro na próxima vez, dependendo de suas intenções. Já eu, que há anos estou fora desse tipo de disputa, me contentarei com qualquer carrinho que ande bem, gaste pouco e pode ser branco mesmo, bege, azul, amarelo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de novembro de 2014)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Isto cheira bem

Nos tempos de antanho, quando nós humanos éramos animais mais irracionais do que hoje, utilizávamos com mais destreza o sentido do olfato, que acabou se transformando em um sentido de segunda classe à medida em que fomos evoluindo e dando primazia para a visão, a audição, o paladar e o tato. O olfato virou o patinho feio dos cinco sentidos, passando a andar meio anestesiado durante a maior parte do tempo de nossas vidas, exceto quando entramos naquele banheiro suspeito de lanchonete de beira de estrada ou quando lemos notícias referentes a escândalos de corrupção, sempre malcheirosas.
Foi refletindo sobre isso que eu, contagiado pelo espírito empreendedor que rege o DNA desta região, fui acometido por uma ideia brilhante: criar uma linha de odores, a serem vendidos em vidrinhos, que possam ser usados terapeuticamente pelas pessoas a fim de não só exercitarem o redespertar do olfato, como também para viajarem no embalo das emoções evocadas por cada um deles. Ficarei rico, esnobe e, claro, cheiroso, muito cheiroso.
Já coloquei mãos à obra e estou a elencar os primeiros odores a saírem de minhas futuras linhas de produção. Sem medo de concorrência, revelo alguns deles: cheiro de pó de café em embalagem recém aberta; cheiro de pão saltando da torradeira; cheiro de terra molhada pelos primeiros pingos de chuva; cheiro de manteiga fritando na panela; cheiro de fronha limpa recém passada; cheiro do amor de sua vida quando acaba de sair do banho; cheiro de bebê em qualquer situação, porque bebê sempre é fofo; cheiro de carro novo; cheiro de gatinho com talco; cheiro de churrasco que vem da vizinhança; cheiro de bom vinho tinto despejado na taça; cheiro de disco de vinil guardado no plástico; cheiro de livro novo; cheiro de casa de avós; cheiro de pessoa feliz que irradia luminosidade; cheiro de casa bem faxinada; cheiro de pipoca antes de jogo de futebol; cheiro de perfume discreto quando ela (ele) passa; cheiro de começo de final de semana.

Encomendas para este e-mail.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de novembro de 2014)

domingo, 23 de novembro de 2014

Eu só quero chocolate

Ah não! Agora essa! Notícias apavorantes circularam esta semana nos sites dos jornais, aventando a possibilidade de, em um futuro próximo, acabarem-se as reservas de chocolate no planeta! Que coisa terrível! Nervoso após ler a ameaça, passei a madrugada insone, com dor de barriga, por ter devorado sozinho uma caixinha de Bis Lacta, ansioso que fiquei.
E quem avisa da iminente tragédia são justamente as indústrias chocolateiras, impressionadas com o ritmo do aumento do consumo de chocolate ano a ano no planeta. Andamos devorando tanto chocolate, com tanta avidez e alegria, que a indústria não está mais dando conta e as plantações de cacau estão se vendo pequenas frente a tanta demanda. Anos atrás, na década de 1980, surgiu no mundo a paranoia de que o petróleo iria acabar porque se tratava de um recurso natural não renovável. Ora, passaram-se três décadas, o número de veículos rodando pelo planeta só fez aumentar e ninguém fala mais em perigo de fim do petróleo. Até porque, trata-se de um combustível fóssil, tem origem nos restos de dinossauros sedimentados no fundo dos oceanos e, pelo que eu saiba, o que não falta é arqueólogo desencavando ossinho de dinossauro por todos os cantos do mundo, o tempo todo. Cada fêmur de tiranossauro-rex encontrado é um litro de gasolina a mais no meu Opalão.

Mas com o chocolate a coisa é mais amarga. Se ninguém plantar mais cacau e continuarmos a devorar sem parcimônia os Chokitos, Prestígios, Sensações e Sonhos de Valsa, o leite vai azedar rapidinho. Um mundo desprovido de chocolate é inimaginável. Tão grave, na minha concepção, quanto um mundo desprovido de mico-leão dourado, de baleias, de tigres-de-bengala e de pessoas gentis, essas coisas todas que sabemos que andam em franco processo de extinção. Suportaríamos até mesmo um mundo desprovido de petróleo, pois retornaríamos ao transporte por carroças, a pé e de carrinho-de-mão (os mais novos empurrando os mais velhos, já vamos combinando agora). A energia para isso? Ora, tiraríamos das indispensáveis e vitais barras de chocolate, que não podem, não podem, não podem acabar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de novembro de 2014)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O Ovni era um Vant

Que sem graça: o Objeto Voador Não-Identificado (Ovni) que sobrevoou a região de Santa Maria na madrugada da última quinta-feira foi plenamente identificado. Ele tem nome, número de série, pertence à Força Aérea Brasileira e, se formos mais a fundo, é capaz até de ter RG, CPF e conta bancária. De não-identificado, portanto, não tinha nada e, de parentesco com um disco voador, somente a sensação que causou nos santa-marienses insones que filmaram as luzinhas coloridas que piscavam no céu.
Bastou as imagens ganharem as redes sociais para que, poucas horas depois, um comandante da Base Aérea de Santa Maria viesse a público explicar que o tal objeto se tratava de uma aeronave não-tripulada pertencente à Base, conhecida como Vant (Veículo Aéreo Não-Tripulado). Os Vants, equipados com câmeras, são usados para monitoramento aéreo. Vai saber o que o Vant estava monitorando àquelas horas da madrugada, mas, enfim, o mistério está desfeito: não era disco voador, não vinha de outra galáxia para estudar a raça humana e nem para fazer contatos imediatos. Nada disso.
Em que pese a frustração dos ufólogos e dos aficionados por ETs, fico eu cá pensando por que diabos haveriam de vir até aqui, provenientes de lá das funduras do espaço exterior, objetos voadores construídos por seres extraterrestres a fim de investigar na surdina o que andamos nós, terráqueos, fazendo por essas baixezas terrenas? Ora, em concordando que os tripulantes dos discos voadores são seres muito, mas muito mais evoluídos do que nós, e mais inteligentes, é de se supor que eles há muito tempo já sacaram qual é a nossa e, se forem mesmo espertos, já nos largaram de mão.

Para que insistirem em continuar vindo até aqui com seus aparelhinhos piscantes apenas para comprovar que, entra século, sai século, continuamos os mesmos bárbaros egoístas, competitivos, violentos e atrasados de sempre? Isso eles já estão carecas e verdes de saber. Deve haver coisa mais interessante do que nós para investigar pelo universo afora. A nós resta seguirmos nos maravilhando com as luzes de um prosaico Vant cruzando as madrugadas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de novembro de 2014)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

De cara com o tigre

Sempre que ouço falar em tigres, lembro do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que era fissurado por esse felino. Borges expressou esse seu fascínio pelo animal em diversas páginas de sua extensa obra, tanto em poemas (“O Ouro dos Tigres” é um dos mais famosos) quanto em prosa. A majestade do porte, a beleza das listras alaranjadas e pretas, a elegância felina mesclada com a ferocidade selvagem, tudo isso compunha o mistério que Borges pinçava da natureza para transformar em literatura, na segurança e tranquilidade dos quartos em que escrevia.
Bem diferente da história do pescador Jamal Mohumad, habitante de Bangladesh, na Ásia, que contabiliza, ao longo de algumas décadas, a incrível marca de ter sobrevivido a três ataques de tigres ferozes, famintos e nada literários. Se Borges era fascinado por tigres, Mohumad é assombrado por eles, na vida real mesmo. Por escapar com vida tantas vezes, o pescador se transformou em lenda viva (vivíssima) na região em que mora, onde é comum ocorrerem cerca de 60 encontros entre tigres e humanos por ano (metade desses contatos termina com os humanos servindo de banquete para os belos felinos de Borges).
Mas Jamal Mohumad, que é um osso duro de roer, virou notícia mundial após protagonizar seu mais recente encontro com um tigre faminto. Ele conta que estava coletando madeira à beira de um rio quando avistou um tigre a alguns metros dele. Assim que o bicho detectou sua presença, levantou-se e veio em sua direção. Experiente nessas coisas de tigres, Mohumad sabia que, se corresse, era batata que o bicho o pegaria e comeria. Resolveu ficar parado e encarou a fera, que se botou a rugir a um metro dele. Mohumad fez então caras muito ferozes e botou-se a rugir também. Rugiu tanto, e tão alto, por tanto tempo, que sua garganta chegou a sangrar. O tigre, estupefato, com aquilo, acabou dando no pé (ou nas patas) quando chegaram os amigos de Mohumad, que haviam escutado aquela balbúrdia.
Resumo da história: Mohumad botou o tigre a correr ao enfrentar a fera olho no olho. Às vezes, a coragem do encurralado faz toda a diferença.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de novembro de 2014)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ouçamos o papa Hilário

Para vocês verem como são as coisas. Até dois dias atrás, eu sequer sabia da existência do papa Hilário. Isso, por pura e absoluta ignorância minha. Hoje, transformei-me em um fã incondicional do papa Hilário, e vou explicar a razão.
Vamos lá. O papa Hilário nasceu na Sardenha (uma ilha mediterrânea autônoma, ligada à Itália) no ano de 415 d.C. Sagrou-se papa em 19 de novembro (hoje é 19 de novembro, sacaram?) de 461d.C. e morreu sete anos depois. Foi o 46º papa da Igreja Católica e, apesar desse curto papado, deixou marcas importantes na história da Igreja e também na da civilização ocidental. A principal de suas realizações foi a ordem que baixou, estabelecendo que, para que a pessoa fosse sagrada sacerdote, era preciso que ela possuísse uma sólida e consistente formação cultural. Além disso, determinou que pontífices e bispos não poderiam mais escolher diretamente seus sucessores, passando essa atribuição a colegiados.
Em resumo, Hilário, que de hilariante não tinha nada, preocupou-se em estabelecer critérios para o ingresso de representantes da Igreja na Igreja e, junto a isso, ocupou-se em eliminar o nepotismo e as indicações puramente pessoais para cargos vitais de comando da instituição. Colocou ordem na casa, mas uma ordem calcada na sobreposição do mérito, do preparo, do estudo, da competência, da qualidade. Ponto para o papa Hilário, por ter tido, lá na Idade Média, percebido que uma instituição só sobrevive se for gerenciada por profissionais.
Eu não seria ingênuo de afirmar que a história posterior da Igreja seguiu à risca a determinação instituída por Hilário, mas o que me chama a atenção é a essência do que ele propôs. Estava correta a visão do papa Hilário. Tão correta que segue sendo atual e moderníssima nos dias de hoje, em que empresas, governos e instituições que teimam em se gerenciar por meio do nepotismo, do compadrio e da valorização da mediocridade, acabam naufragando em meio a um atoleiro de desgraças plenamente evitáveis se agissem diferente.

Nessas horas, quando desaparece o motivo para o riso, é que se deveria evocar os ensinamentos do papa Hilário.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de novembro de 2014)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Apenas sonhos

Fosse eu jogador de futebol, não teria dúvidas: meu sonho seria fazer um gol de bicicleta. Mas não um gol de bicicleta qualquer (perdão, perdão, em se tratando de gol de bicicleta, nenhum pode ser classificado como “qualquer”, têm razão, leitores), e sim um gol de bicicleta que resultasse em virada histórica em partida decisiva para o meu time conquistar título há muito perseguido. Para ser consagrado pela torcida, penetrar para a eternidade dentro do coração de cada torcedor, ter estátua erguida na entrada do clube, ganhar placa (gol de placa, pois não?). Esse seria meu sonho, na condição de Marcos, o artilheiro.
Agora, se eu fosse compositor musical, meu sonho seria outro. Meu sonho seria conseguir criar uma canção que tivesse um refrão maravilhoso, que enchesse de boas sensações a alma de quem a escutasse e acabasse se transformando em hino de toda uma geração. Que inspirasse milhares de versões posteriores nas vozes de vários outros cantores, que figurasse nas coletâneas das melhores canções do século, que embalasse o início de romances, que fosse trilha sonora obrigatória nos momentos de felicidade de cada um. Esse seria o sonho do compositor Marcos.
Se eu fosse cientista, sonharia em descobrir a cura para alguma doença. Se ator de cinema, sonharia em protagonizar um papel que fizesse jus à arte dramática. Se bailarino, sonharia com a perfeição da leveza. Se eu fosse astrônomo, passaria as noites em meu observatório, olhos grudados nos telescópios, singrando estrelas e sonhando com a descoberta de um planeta habitado com vida inteligente, mas tão inteligente e generosa que fosse capaz de ensinar a nós, terráqueos, a suprema inteligência do convívio em paz e harmonia. Se eu fosse astrólogo, sonharia com conjunções astrais que emanassem poderosas vibrações positivas que envolvessem toda a Terra.

Ah, antes que eu me esqueça. Se eu fosse meteorologista, sonharia com uma semana inteirinha de acertos totais nas previsões do tempo, sem nenhum erro sequer, vaticinando chuva em dias em que chovesse e sol nos dias ensolarados, certinho, certinho. Isso sim, seria minha maior consagração pessoal! Mas são sonhos, só sonhos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de novembro de 2014)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Lábios de mel

Aconteceu alguns anos atrás aqui em Caxias do Sul, em um bate-papo sobre literatura com um escritor convidado vindo de fora. O auditório estava lotado, o público atento, a palestra dinâmica e atraente. Terminada a explanação inicial, o autor, experiente nessas coisas de palestras com leitores, abriu para as perguntas. Foi aí que aconteceu.
Lá de um canto, ouviu-se então a voz de uma senhora que havia levantado a mão e já ia fazendo a pergunta quando foi gentilmente interrompida pelo palestrante, que, antes de mais nada, desejava saber o seu nome. Deu-se mais ou menos assim o diálogo, que reproduzo a partir das falhas de minha memória:
“Como a senhora se chama?”, quis saber o escritor. “Ah, meu nome é Iracema”, respondeu a senhora. “Iracema! Prazer, dona Iracema. Que belo nome. É nome de uma famosa personagem de romance de José de Alencar, sabia? Iracema, dos lábios de mel. A senhora tem lábios de mel, dona Iracema?”, perguntou o escritor, brincando com o nome da leitora, evocando um dos autores mais importantes da literatura nacional e dando um show de gentileza. “Eu não sei”, foi a resposta da leitora.
Ela não sabia. Não sabia responder se ela, a exemplo da personagem literária, possuía também lábios de mel. Ela não sabia. Ao responder de forma tão imediata à inesperada pergunta, a sinceridade lhe aflorou aos lábios que, se não eram de mel, eram, no mínimo, besuntados de ingênua e sincera honestidade. Porque ali, exposta na frente de toda uma plateia, dona Iracema, a leitora de carne e osso, não sucumbiu ao apelo às vezes irresistível da autopromoção, nem aos ditames do ego, que tantas vezes nos induzem a sairmos por aí vendendo um peixe que nem sempre condiz à envergadura real de nossas nadadeiras.

Dona Iracema não sabe se tem lábios de mel. Aquele doce e suave e sincero “não sei” inundou o anfiteatro e não sei eu aqui se a profundidade poética daquele dizer ressoou também em outros ouvidos além dos meus. A aparente incerteza da resposta foi decorrente da convicção de uma alma sincera. Que raridade! No mínimo, naquele momento houve, sim, mel nos lábios daquela Iracema real. O raro mel da modéstia sincera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de novembro de 2014)

Anzóis poéticos

Nem sempre há poesia em um poema. Deveria haver, mas nem sempre há. Também não é somente dentro dos poemas que pulsa a poesia. Ela pode escolher como habitat o mundo inteiro, especialmente as pequenas coisas do mundo. Poesia pode haver no voo errante de um inseto, no entardecer em qualquer lugar, nos olhos de quem vê, nos ouvidos de quem escuta, no coração de quem vive, no cimento da construção, nas linhas de um secreto diário íntimo, nos risos, nas lágrimas. Até mesmo nos poemas.
Quem ensina isso com propriedade (e com poesia) é o professor e poeta caxiense Jayme Paviani, que, aliás, conversará sobre temas poéticos na segunda-feira, dia 17, a partir das 20h, dentro da programação do Grupo Órbita Literária, na Livraria e Café Do Arco da Velha (Rua Dr. Montaury, 1570), com entrada franca. Lembro essas coisas porque andou me caindo a ficha de que a poesia está se transformando em um poderoso auxiliar na busca pela sanidade humana nesses tempos tão duros, conturbados, ansiados e violentos que vivemos. Podemos não perceber, mas estamos precisando de grandes cargas de poesia dentro de nós para recarregar nossas energias vitais e prosseguirmos firmes nessa saga que é vivermos nossas vidas.
E viver a vida sem poesia nos enfraquece, fragiliza, desequilibra, endurece. Se endurecidos, vamos à batalha da vida desprovidos do jogo de cintura psíquico que uma alma plena de poesia consegue proporcionar. E sem jogo de cintura a gente dança. Precisamos de doses diárias de poesia, não apenas dessa poesia contida nos poemas dos poetas. Precisamos de poesia na vida, precisamos treinar nossos sentidos para que eles se transformem em anzóis pescadores da poesia que há no ar, já que ela não é vendida em cápsulas.

O Brasil perdeu esta semana um de seus maiores semeadores de poesia, o mato-grossense Manoel de Barros. Ele pegava a pinça de sua alma e extraía gravetos de poesia das pedras, dos rios, dos grilos. Semeou no mundo a poesia que germinava dentro dele. Compartilhava generosamente sua alma poética. Um grande mestre da vida. Também temos os nossos por aqui. Aprendamos poeticamente com eles.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de novembro de 2014)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Nua e crua verdade

A sensação do momento em Porto Alegre parece que é sair correndo pelado pelos parques e avenidas da cidade. Tudo começou quando, semanas atrás, uma moça portadora de problemas psiquiátricos livrou-se das vestes e saiu a correr nua pelo Parcão até ser detida pela Brigada Militar e a família chamada para socorrê-la. Bastou a notícia circular para que alguns resolvessem imitar o ato para fins de promoção pessoal.
E pimba, deu no que deu: pelados e peladas a saírem correndo livres, leves e soltinhos pelas quebradas da capital dos gaúchos. Está quase se transformando em atração turística (ao menos, enquanto forem razoavelmente belos os corpos dos praticantes da nova onda). Afastada do litoral por uma longa freeway, banhada por um rio que na verdade é lagoa e municiada com praia somente em nome de rua, Porto Alegre começa a ser invadida por seres desenroupados que parecem ter escapulido faceiros de alguma praia de nudismo, determinados a irem exibir suas peles e curvas em plena área urbana, à luz do dia. “O tempora, o mores” (“ó tempos, ó costumes”), como exclamaria o orador romano Cícero (106 a.C – 43 a.C.) ao abordar no Senado a decadência dos hábitos dos cidadãos em sua época.
Eu preciso ir a Porto Alegre neste final de semana e, de antemão, já estou preocupado. Altamente impressionável e influenciável como sei que sou, vai que, ao adentrar os domínios da capital, eu me surpreenda sendo invadido por essas aragens nudistas que andam soprando do Guaíba para dentro daquelas urbanidades e... pimba também eu! Hein? Olha, leitor amigo, te digo: isso não iria acabar bem. Andei dando uma verificada com atenção no conjunto geral hoje pela manhã na hora do banho e, francamente, estou longe de propiciar aos porto-alegrenses, avisados e desavisados, um espetáculo estético de primeira grandeza com minha eventual nudez.

Sem falar que essa coisa de andar pelado, no meu caso, só funciona no trajeto entre o quarto e o chuveiro, em mão dupla. Fora isso, não ter bolsos onde esconder minhas tímidas mãos e onde ancorar o celular e a carteira, está fora de questão. Não, eu não. Durmam todos tranquilos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de novembro de 2014)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Bebê a bordo

É cada vez mais astronômica a distância que vai se abrindo entre o comportamento de cidadãos habitantes de mundos civilizados e pseudocidadãos habitantes de terras de ninguém. Exemplo disso aconteceu dia desses em um voo doméstico nos Estados Unidos. Deu na imprensa do mundo todo e foi noticiado por aqui também, porque um brasileiro a bordo presenciou o ocorrido.
Foi assim: um casal embarcou no avião levando junto sua filhinha, um bebezinho de oito meses de idade. Para surpresa dos passageiros ao redor, os pais do bebê distribuíram cerca de 40 kits contendo um par de tampões de ouvidos, balas e um bilhetinho. A mensagem dizia assim: “Olá. Sou uma menininha de oito meses e esse é meu primeiro voo! Normalmente sou um bebê feliz, mas gostaria de me desculpar com antecedência se eu ficar inquieta, assustada ou chateada porque meus ouvidos doem. Mamãe e papai estão fazendo o possível para me acalmar, e esperamos que esses doces e tampões de ouvido ajudem a tornar sua viagem comigo um pouco mais fácil. Tenha um bom voo!”.
Genial! Sim, genial e, além disso, muito fofo também, admito. Genial e fofo. Mas muito mais do que isso: civilizado. Muito civilizado. Inconcebivelmente civilizada a atitude dos pais da bebê, para os padrões bárbaros e trogloditas que regem a (in)convivência humana entre as gentes de lugares que vão sendo transformados em pré-históricos devido às más atitudes de seus habitantes.
Onde já se viu, dir-se-ia por outras plagas incultas, pensar nos outros? Onde já se viu se importar se desconhecidos vão ficar incomodados com o choro de nosso bebê a bordo? Ora, cada um que cuide de sua vida, não é isso o que se pensa nessas plagas medievais? Os outros? Os outros quem? Que outros? Existem eu e eu, não é assim? Somos sozinhos no mundo, nós, os incivilizados. Somos sozinhos nos aviões, nos restaurantes, nos cinemas, nas filas, no trânsito, na vida.

Ah sim, os outros. Lembramos deles quando queremos que façam algo por nós, não é mesmo? Pois é. E assim, o fosso vai aumentando, uma vez que não temos sequer um décimo da civilidade de um bebê de oito meses de idade.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de novembro de 2014)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Flagrante delito

Ralei-me, minha esposa descobriu tudo. Andei meses tentando camuflar, esconder, dissimular e agora, por um descuido estúpido, em questão de segundos, foi-se tudo por água abaixo. A reação dela, claro, óbvio, lógico, não poderia ser outra: primeiro, gritou aquele atemorizante “aháááá”, que a gente daria tudo para jamais escutar; depois, cravou as duas mãos na cintura, uma de cada lado, adotando aquela postura de xícara balançante, sacudindo desaprovadoramente a cabeça; e, por fim, sacou da cintura a mão direita e me apontou para a cara o dedo indicador em riste, como a xerifa que saca a pistola para fulminar o bandido pego de surpresa no ato espúrio. No caso, o bandido da história sou eu, como o leitor atilado há muito já percebeu.
Bang! Fui fulminado e pego em flagrante delito. Não havia o que dizer, o que declarar, desculpa esfarrapada que fosse capaz de reverter a situação claríssima. Negar? Mas como negar? Os fatos falavam por si e eu ainda estava em minha posição suspensa no ar, como que congelado dentro da cena do crime com o candelabro na mão no salão de festas a espancar o Senhor Ninguém. Sim, era eu e eu tinha feito o que estava há muito fazendo. Não havia salvação, não havia escapatória, nenhuma palavra ou frase seria capaz de me redimir. Só me restava assumir a falta do alto da hombridade que ainda me restava e esperar que houvesse perdão.
Mas antes do perdão, foi preciso aguentar no osso do peito, firme e calado, a flauta. E que flauta! “Aháá”, começou ela (eu disse que o “aháá” dela é matador) e prosseguiu, chacoalhando o dedinho cada vez mais próximo da ponta de meu nariz. “Quer dizer então que é assim que o senhor vem camuflando o seu peso na balança, me dizendo que vem emagrecendo, é? Nada disso, coloca os pés direito, inteirinhos, sobre a balança! Agora sim! Esse é seu peso verdadeiro, e não aquele, dois quilos a menos, ficando só com os calcanhares na balança, seu aprontão!”.

Pois é... E eu achando que descobrira o segredo de como diminuir peso, subindo só com metade dos pés na balança. Mas pô, amor... Eu não estou preparado para o peso da realidade!!!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de novembro de 2014)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Memória afiada

Se alguém disser que o dia de hoje “anda meio esquecido”, é porque está tentando fazer uma gracinha. Bata nas costas do sujeito, dê uma risadinha dizendo “tá bom, tá bom” e siga adiante, afinal, isso não vai mudar o seu dia nem para melhor, nem para pior. Como existe atualmente dia para tudo, decidiu-se, não se sabe quem, nem onde, muito menos quando, que no 11 de novembro se comemora o Dia da Memória.
Daí a razão da tentativa de gracinha dita ali em cima, que alguém certamente tentará fazer, e não deixará de ter razão, afinal, quem é que se lembrava disso? Ou melhor: quem é que sabia disso? Eu é que não! E se alguma vez na vida soube, confesso que já havia esquecido. E não, não se trata de gracinha. Como lembrar-se de uma data que, no fundo, não tem significado algum? Quer dizer, claro que a memória em si é importante, fundamental para a existência humana e da civilização (o que seria dos historiadores se não fosse o resguardo da memória?), mas o que fazer de especial em um dia destinado a celebrá-la? Pensemos.
Talvez uma forma interessante de marcar a passagem do Dia da Memória seria destinar alguns minutos para praticar seu uso e recordar. Recordar dos tempos idos, da infância perdida, das pessoas que já se foram e nos marcaram, dos amigos com quem perdemos contato, da época da escola, da antiga rua em que vivemos, essas coisas. Podemos recordar atos dos quais nos orgulhamos de termos feito, bem como dos outros atos dos quais nos arrependemos e envergonhamos, afinal, conhecer nosso próprio passado e refletir sobre ele é a melhor forma de moldarmos nossa maturidade pessoal. Mas dá para fazer ainda mais nesse dia.
Além de evocarmos o passado, também prestaremos homenagens à memória se praticarmos a lembrança de afazeres que gostamos de deixar abandonados no esquecimento. Podemos lembrar de telefonar para aquela pessoa querida que passou por dificuldades, ou lembrar de pagar aquele empréstimo feito junto ao amigo, ou de devolver um favor, de fazer um convite, de ser gentil. Falando nisso, lembrei de algo importante: comprar presente de Natal para o afilhado. Que tal um jogo de memória?

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de novembro de 2014)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mãos prolixas

Pois é, mais de vinte anos morando aqui na Serra Gaúcha, não podia dar outra: acabei me aculturando em diversos aspectos. Absorvi hábitos, adotei costumes, ampliei o espectro de meus interesses gastronômicos, alarguei horizontes, coisa e tal. Vindo que sou da região noroeste do Estado, vizinho das Missões, até que passo por um gringo perfeito se me observarem de longe, à mesa, por exemplo. Viciei em radicci, pissacán, pien, codorna, sopa de agnoline e sopa de capeletti.
Mas, claro, há características que jamais nos abandonam, por mais que imaginemos estarmos imersos nas tradições, usos e costumes de determinada comunidade. Se me virem quieto, mastigando polenta com queijo e bebericando goles de vinho, tudo bem, me compram por gringo. Mas, se me escutarem pedir um copo de leiTE quenTE, que faz bem para a genTE, bom, aí entrego sem pudor as minhas origens alienígenas.
Mas o principal aspecto que comprova minha capacidade camaleônica de me inserir no meio em que passo a conviver é o fato de que há anos passei a “falar com as mãos”, como é costume antigo aqui por essas aragens serranas, em especial entre os descendentes de italianos. Ainda não falo alto, naquele volume dois tons acima do socialmente aceitável em outras localidades, mas definitivamente não consigo mais me comunicar se não puder utilizar as duas mãos e vários centímetros dos braços até os cotovelos, para auxílio gestual daquilo que estou dizendo.

Aprendi que não existe isso de usar somente o aparelho vocal e a língua portuguesa para dizer “eu fui até lá”, por exemplo. É preciso sublinhar a frase utilizando o braço todo, a mão em forma de punho, o dedo indicador em riste, e acompanhar o dito com um movimento largo de deslocamento, que explica a distância desse “lá” aonde andei indo. Mas ainda não tenho a destreza dos nativos, sou ainda um amador. Tanto é que, nos restaurantes, quando falo e narro uma história, minha mesa costuma estar permanentemente cercada por garçons que, de longe, imaginam que eu os esteja chamando com meus inábeis gestos. Preciso praticar mais e aprimorar minha comunicação, sei disso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de novembro de 2014)

sábado, 8 de novembro de 2014

O tempo passa

O susto se deu logo ao dobrar a esquina. Não poderia imaginar que uma surpresa dessas estaria atocaiada pelas tranquilas ruas do bairro, à espreita, durante uma curta caminhada no meio da tarde rumo ao mercadinho, a fim de dar uma pausa mental na trabalheira do dia e buscar um lanche. O ritual de espairecer observando o pulsar da vida cotidiano ao redor foi chacoalhado pela imagem que vi de súbito no quintal da casa de um vizinho: uma guirlanda natalina cravada na porta da frente! Nossa, que susto!
Então já é Natal! Quase Natal, na verdade. Foi-se o ano; foi-se o Carnaval; foram-se Páscoa, Dia das Mães, dos Pais, das Crianças, dos Avós. Foi-se a Copa do Mundo, foram-se as eleições, foi-se a Feira do Livro de Caxias. Foram-se os aniversários (ainda há alguns deles pela frente, bem lembrado), foram-se as dívidas velhas e vieram as novas, foram-se os salários e os ganhos, foram-se as folhinhas do calendário e da agenda, foram-se os dias e os dias, as horas, os minutos, foi-se o tempo voando e, num piscar de olhos, ao ressurgirem nas portas das casas as guirlandas de Natal, foi-se mais um ano.
Sim, que susto aquela guirlanda, mas especialmente o recado advindo dela. Nesses tempos de imediatismo e de tudo-para-ontem, os enfeites de Natal vão saindo das caixas cada vez mais cedo e alguns apressadinhos já estão ornamentando suas moradas nem bem terminado outubro. Eu, tradicional que sou em certas coisas, sigo partidário de que o espírito natalino só se aposse de mim em dezembro, apesar de já ter participado do sorteio do amigo secreto familiar, já ter retirado meu papelzinho e estar há semanas queimando pestanas para ver se descubro o que comprar para meu presenteado, já que, nesse caso, não posso contar com a crucial ajuda da esposa para a tarefa. Afinal, é segredo.

Já o que não é nenhum segredo é esse empilhar de anos que vão cruzando pela gente em velocidade sempre maior à medida em que amadurecemos (sim, evitei o “envelhecemos” de propósito). Afinal, o tempo sempre é um bom assunto. Tanto o tempo que passa quanto o tempo da meteorologia. Em comum entre eles, essa velocidade dos ventos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de novembro de 2014)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O mundo sem Mecenas

Parei para fazer o cálculo. Fazer cálculos, para um homem que vive de enfileirar letrinhas, sempre se configura em uma atividade complexa, que requer o aguçar dos sentidos, por mais prosaica que seja a operação. No caso, tratava-se de uma simples soma, ou subtração, dependendo do ponto de vista (a matemática, apesar de ciência exata, também abre flancos para as idiossincrasias alheias, mas eis que tergiverso).
Primeiro, fiz de cabeça a operação, mas logo decidi repeti-la no papel, colocando números sobre os outros e tirando daqui e passando para lá, como aprendi a fazer ainda de calças curtas defronte ao quadro verde. O resultado foi igual. Bom sinal. Mesmo assim, para não passar recibo de anta frente aos leitores, achei por bem confirmar tudo com a máquina calculadora, essa que guardo dentro da primeira gaveta da escrivaninha e que sempre me salva na hora “h” e em todas as demais letras das horas possíveis e imagináveis (hora “a”, hora “m” et cetera).
Tudo isso para poder começar com convicção esta crônica (que estranhamente se inicia já pelo meio, coisas que nem a matemática mais avançada pode prever) afirmando que hoje, 7 de novembro de 2014, completam-se exatos 2022 anos que o mundo vive sem Mecenas. Mecenas com “m” maiúsculo, pois me refiro ao cidadão romano Caio Cornélio Galo Mecenas, nascido em 70 a.C. e que morreu em 8 a.C. O cálculo foi para agregar esses oito anos aos 2014 da Era Cristã em que vivemos, e quando se trata de a.C/d.C. , as coisas nunca são tão simples assim.

Caio Cornélio Galo Mecenas foi um poderoso conselheiro do imperador romano Otávio César Augusto (63 a.C. – 14 d.C.) e imortalizou seu nome na História por cultivar o hábito de cercar-se de artistas e sustentá-los, a fim de que pudessem se dedicar às suas criações livres de preocupações. “Mecenato” e “mecenas” se transformaram em substantivos em decorrência das ações do personagem histórico. Nos dias de hoje, o mecenato às artes se dá por meio das ações de empresas conscientes da relevância de seu papel social e por meio das leis de incentivo. Longa vida a essas leis e ao exemplo dado por essas empresas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de novembro de 2014)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Basta de mimimi

Estranha essa tendência que boa parte das pessoas tem de gastar energias reclamando de seus problemas, ao invés de direcionar esse esforço para as soluções. Na maioria das vezes, pequenas parcelas desse empenho já seriam suficientes para desemaranhar as questões que as incomodam, mas não: preferem passar ao largo da atitude proativa que transforma o entorno para permanecerem atoladas no mar das lamúrias, dos ataques, da raiva grosseira, da purgação verborrágica de suas insatisfações. Estranho.
Não é difícil verificar essa atitude ao redor. Basta dar uma olhadela e já é possível detectar ali um choramingas convicto, agarrado a um poste de lamúrias, reclamando do chefe, do colega, do marido, da esposa, do (da) namorado (a), dos pais, dos filhos, dos amigos, do prefeito, do presidente, do mundo, da chuva, do sol, e pipipi e popopó e mimimi. Vejo e fico me perguntando a razão pela qual o dito chorão não vai lá e enfrenta o chefe, externando a ele suas insatisfações e suas observações? O tempo e a energia dispensados reclamando, posso assegurar, são infinitamente menores do que o esforço necessário para enfrentar e solucionar a situação. Mas quem opta pela alternativa B? Poucos. Raros.
A tendência, no geral, é adotar a máxima do repasse do abacaxi. Mas isso fica realmente estranho quando as pessoas resolvem passar para você os abacaxis que são estritamente delas, criados por elas, decorrentes de demandas que são delas. Mas decidem que é você quem precisa resolver. É a materialização da tendência cultural de que os problemas devem ser resolvidos pela Providência e que nós, indefesas criancinhas, temos o direito de receber tudo solucionado dentro de nossos biquinhos de passarinhos abertos no ninho, esperando a minhoca que cai do céu.

De braços cruzados e roncando grosso do alto da colina, esperam que alguém faça por eles. Ah, e são cientes de seus direitos, possuem claríssimas as ideias de como acham que as coisas devem ser, mas não lhes peçam para trabalharem por elas. As soluções que se materializem a seus pés ao sabor de seus desejos. E assim segue adiante a nau dos insensatos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de novembro de 2014)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

As sombras de Suzane e Raquel

Vai virar filme a história de vida de Suzane Von Richthofen, a bonita loira paulista de classe média alta que, em outubro de 2002, arquitetou o assassinato dos seus próprios pais, crime que foi cometido com crueldade pelo seu namorado e o irmão dele, dupla que ficou conhecida como Os Irmãos Cravinhos. Suzane, a exemplo dos Cravinhos, cumpre longa pena na cadeia, mas vem figurando constantemente na imprensa, pois seus atos seguem chamando a atenção.
Agora, vai virar filme e, provavelmente, sua história vai lotar as salas de cinema em todo o país, evocando o mesmo sucesso obtido anos atrás quando a atriz Deborah Secco interpretou nas telonas a biografia da ex-prostituta de luxo e blogueira Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha. O que elas têm em comum que atrai como um irresistível ímã a atenção de todos nós aos detalhes de suas trajetórias e de suas psiquês? Nesses dois casos específicos, Raquel e Suzane convergem em um aspecto crucial: ambas são belas moças provenientes de famílias de classe média, das quais o senso comum espera que sigam vidas consideradas “normais” e “socialmente aceitáveis”, cursando faculdade, virando profissionais de carreira, mães de família.
Em algum momento, no entanto, ambas resolvem protagonizar uma guinada decisiva para caminhos distintos e inesperados, ao menos, para a maioria das pessoas inseridas nas mesmas condições de vida que elas. Uma, opta pelo crime bárbaro; a outra, pelo mergulho no mundo da prostituição, sem que, aparentemente, precisassem optar por isso. Por quê? Aí é que está. A resposta não é simples e jamais consegue satisfazer o tamanho do mistério que segue existindo.

Procuramos nelas os pontos de convergência junto a nossos lados obscuros, da mesma forma como tentamos nos identificar com nossos ídolos positivos. Em que aspectos existem pedaços de mim na maldade de Suzane ou na transgressão de Raquel? O fascínio reside nessa busca inconsciente (ou consciente) por essas respostas. Elas acabam purgando as sombras que carregamos conosco e que (felizmente) não ousamos concretizar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de novembro de 2014)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Um joelho esfolado

Foi tudo muito rápido (gosto dos clichês exatamente por essa capacidade que eles têm de resumir com eficiência um conceito, de expressar sem subterfúgios uma sensação ou uma situação). Por que, então, usar de artimanhas linguísticas para dizer de outra forma aquilo que um bom e batido jargãozinho consegue comunicar? Foi, sim, tudo muito rápido, conforme o clichê, e, quando dei por mim, eu já estava no chão, braços e pernas para todos os lados.
Fazia tempo que eu não caía. Sequer recordo quando foi a última vez que me estatelei no solo, desabando-me sobre mim mesmo, transformado de súbito em castelo de cartas que desmorona ao vento. A lei da gravidade existe desde que a Terra gira em torno de si e vale para todos, sem distinção. Dela não escapam crentes nem pagãos, papas ou bispos, reis ou súditos, homens, mulheres, idosos, crianças, ricos, poderosos, pobres. Quando é para cair, cai-se por completo, em um átimo, záz! O que estava em pé um segundo atrás perde, em um piscar de olhos, a compostura, a empáfia, o garbo, para apatrafar-se na horizontal de nariz ao solo, concretizando o ato da queda.
Como, senhora? Antes que eu prossiga, quer que eu explique o verbo “apatrafar”, que usei ali? Ah, não, senhora, vai me dizer que a senhora jamais caiu? Quem já caiu, sabe do que estou falando. A gente se apatrafa ao solo e pronto. Depois de apatrafar-se, resta à vítima erguer-se o mais rápido que lhe permitirem suas condições físicas e morais, recolher os pedaços de sua dignidade espalhados ao redor e recolocar-se na posição ereta, que é o que exige e convém à verticalidade de nossa vida em sociedade.

Mas, como disse, foi tudo muito rápido. Domingo à tarde, descendo o morro da chácara do sogro, carregando sacolas repletas de frutas, resvalei nas pedrinhas que recheavam o meio do caminho e foi o que bastou para que rolassem ladeira abaixo laranjas, pêssegos, limões e pedaços da dignidade de meu eu. Esfolei a palma da mão e um joelho e rasguei uma parte da calça. Foi quando descobri que a dor de um joelho esfolado tem sabor de infância. Tomara que ela ainda dure alguns dias mais...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de novembro de 2014)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Numa fria

Aconteceu assim: tempos atrás, minha esposa e eu decidimos que já estava na hora de adquirirmos uma geladeira nova, que substituísse à altura e com avanços os serviços até então prestados pela antiga geladeira que já ia se segurando aos trancos passados dez anos de uso. Confesso que relutei antes de efetivar a troca, porque sei lá, tenho em mim essa coisa de me apegar a alguns objetos que me prestam serviços fielmente, como a geladeira, o fogão, o sofá, a tevê, essas coisas. Parece que Freud explica, mas há coisas que é melhor nem tentar entender, deixa prá lá.
Assim foi que consegui então admitir a sessão desapego em relação à geladeira e passamos a visitar lojas e a consultar sites na busca por um eletrodoméstico mais moderno, amplo, com visual mais vistoso e repleto de funções. O grande ganho, na verdade, seria o freezer com portinha separada da geladeira em si, diferentemente da anterior, com aquele espacinho acanhado que mal conseguia abrigar um pote de sorvete napolitano e uma costela congelada presenteada pelo sogro depois de carnear mais um boizinho. Procura dali, compara preço de lá, olha, analisa, pensa, argumenta e pronto: encontramos a geladeira ideal, construída para atender aos nossos sonhos.
E a mudança toda já começava pela forma de chamar a coisa. “Geladeira, não: refrigerador”, passou me ensinando a esposa, toda faceira, enquanto desempacotávamos o novo habitante da cozinha. E olha só: repleta de luzinhas na porta que indicam as funções de gelar rápido, turbo freezer, relógio e sei lá quais mais traquitandas. Foi botar o treco a funcionar que me curei rapidinho da nostalgia que ainda queria sentir pela velha geladeirinha que passando adiante e foi fazer a alegria de outras pessoas em outro lar, no qual certamente foi também muito bem acolhida.

Só que estou decepcionado! Com o calor intenso da última semana, achei que a única solução seria me abrigar uns minutinhos dentro do freezer, mas só coube um de meus braços até o cotovelo lá dentro. Sim, certo, nem tudo é perfeito, mas que fiquei chateado, fiquei. Esse calor, realmente, não me faz muito bem...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de novembro de 2014)

A vida é sonho

“A vida é sonho”, afirmava o dramaturgo e poeta espanhol Calderón de la Barca (1600 – 1681) em uma de suas mais famosas peças, intitulada exatamente com essa frase. Por meio da trama desenvolvida pelos personagens, o escritor passa nas entrelinhas e no subtexto o conceito de que a vida que viemos aqui na Terra não passa de uma miragem, de um devaneio longo e coerente, do qual despertamos para a verdadeira existência por ocasião de nossa morte terrena.
Segundo ele, essa vida que estamos a compartilhar aqui e agora não passaria de sonho. Argumento interessante a ser pensado nesse dois de novembro, Dia de Finados, reservado para prestarmos homenagem à memória dos nossos entes-queridos que já saíram de cena. Teriam eles então despertado do sono? Não sabemos e, quando for o momento, teremos, cada um de nós, o privilégio de também conhecer a resposta.
Mas enquanto seguimos aqui, “sonhando”, vale a pena dedicarmos alguns momentos deste domingo para refletir sobre as particularidades das vidas (sonhadas?) que levaram aqueles a quem homenageamos com saudades e, desses exemplos, tirarmos lições para o aprimoramento do “sonho” que vamos tecendo cada um de nós em nossas próprias jornadas por aqui. Nossos parentes, amigos e conhecidos já partidos deixaram universos inteiros atrás de si e é por meio do resgate da memória deles que podemos obter esse patrimônio precioso que é a sabedoria.

Meu avô, que já ultrapassou a marca dos 90 anos, gosta de frases de efeito advindas das elucubrações que o caracterizam, e uma delas diz respeito a esse tema. “Cheguei em uma fase da vida em que a maioria das pessoas que eu conheço está nos cemitérios”, falou, certa vez. Esse é um dos preços necessários de se pagar por quem conquista a tão almejada longevidade. Com o passar dos anos, as partidas vão se acumulando à nossa volta e às vezes somos invadidos por um estranho sentimento de assozinhamento, parecido com a sensação que assalta o anfitrião a quem cabe apagar as luzes da festa e trancar a porta. Creio que o desafio que nos é imposto é o de tentarmos sonhar o mais lucidamente possível, até a hora do despertar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de novembro de 2014)