sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O gato zumbi

Aconteceu na Flórida, nos Estados Unidos. Tudo pode acontecer nos Estados Unidos, ainda mais na Flórida. O protagonista do feito bizarro foi Bart, o gatinho. Como costumam fazer os gatos – todos os gatos, não somente os que vivem na Flórida –, Bart botou-se a passear pelas redondezas da casa em que vive, dividindo a atenção entre passarinhos que cantam, cachorros que latem, crianças que cruzam de bicicleta, chafarizes que respingam água, essas coisas. Até que (pausa para o novo parágrafo)...
Distraído como estava, Bart foi atropelado por um automóvel. Plaf! Espatifou-se o pobre Bart ali, no meio da rua, o rosto esfacelado, o corpinho sem vida. Momentos depois, Bart foi encontrado por seu dono, Ellis Hutson (sabemos até o nome do dono, o que confere maior credibilidade à narrativa), de 52 anos, que apavorou-se com o que via: Bart ali, atropelado, mortinho da silva, no meio de uma rua em Tampa Bay, na Flórida (logo na Flórida, onde acontece de tudo). E o que fez então Ellis Hutson, o dono de Bart, o gatinho que morreu atropelado? Pausa para um novo parágrafo...
Ora, Ellis Hutson, como todo o amoroso dono de bichinho de estimação, enterrou Bart nos fundos do quintal, lógico. Só que, passados cinco dias, quem é que de repente aparece na sala de jantar da casa de Ellis Hutson, o maxilar esfacelado, um olho vazado, as orelhas rasgadas, o pelo sujo de terra e até vermes comendo parte de sua bochecha? Ele: Bart, o gato-morto-vivo, o gato-zumbi, renascido dos mortos! Sim, Bart ressuscitou no quinto dia, cavou a terra e voltou à vida e aos braços de seu dono. Afinal, Bart é gato, mas vive na Flórida, onde tudo não só pode acontecer, como acontece mesmo.
O final da história é feliz: Bart está se recuperando em uma clínica veterinária, onde passou por cirurgias e estará logo pronto para gastar outras de suas vidas, já que, nos Estados Unidos, gatos têm nove vidas, e não apenas sete como aqui no ainda subdesenvolvido Brasil. Sem falar que, por aqui, quem morre, morre mesmo: gato, dono de gato, esperança, credibilidade em políticos... Ainda continuamos a estar bem longe da Flórida.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de janeiro de 2015)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Batata quente, batata fria

É batata. Ao menos, comigo, é sempre batata. Eu já posso contar que vai ser batata, e não tem outra: acaba sendo batata mesmo. A situação chega a se assemelhar com aquela máxima do Barão de Itararé (Barão de Itararé era o pseudônimo do escritor e jornalista gaúcho Apparício Torelly, falecido em 1971, que fazia sucesso com suas frases de efeito), que dizia assim: “De onde menos se espera, dali é que não sai nada mesmo”. Pois em se tratando de mim, é mais ou menos assim: batata pura.
A tal da batata se dá sempre que vou receber visitas para o jantar. Sempre. Não importa se a visita é chegada (mãe, sogros, cunhados, amigos íntimos) ou não tão chegada (amigos não-íntimos, inimigos, completos desconhecidos, astros de Hollywood). A batata vai se materializar sem dó nem piedade, porque sofro da maldição da batata. Ela varia um pouco, porque uma das características da batata é ser criativa e sempre conseguir me pegar desprevenido, de calças curtas ou com as calças na mão. Nunca consigo, portanto, me prevenir a contento contra a batata, apesar de meus reconhecidos esforços.
Noite dessas, ao receber visita (da categoria dos íntimos), a batata aprontou em relação à temperatura ideal daquilo que deveria ir para a mesa. Traduzindo em miúdos: o que deveria estar quente estava frio e o que deveria estar gelado estava quente. E não houve jeito de inverter a equação, pois que era batata, estava dado que seria assim e assim foi. Os filés à parmegiana e a lasanha aos cinco queijos, adquiridos previamente em estabelecimento local de reconhecida qualidade, não houve Cristo (e forno) que os fizesse adquirir a temperatura ideal de borbulha para serem devidamente saboreados à mesa. Por sua vez, não houve turbo-congelamento do freezer ou baldinho de gelo que conseguisse deixar o espumante brut, obtido diretamente na cave artesanal de produtor bassanense, na gelada temperatura que a quentíssima noite exigia.

Assim, brindamos com espumante morno e saboreamos lasanha gelada, alegres com o reencontro, esse sim, devidamente caloroso, na temperatura ideal que o cultivo das relações exige e requer. De resto, no entanto, foi, como sempre, batata. Não se pode ter sempre tudo o que se quer na vida, já dizia Mick Jagger...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de janeiro de 2015)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Eles, robôs

“Futurologia” é o nome que se dá ao exercício (mental, científico, pseudocientífico ou em mesa de bar mesmo) de tentar prever como vai ser o futuro a partir da evolução (ou involução) dos elementos que compõem o cenário do presente. Vários escritores e diretores de cinema se consagraram levando à literatura e às telas de cinema seus sonhos e visões mais alucinantes sobre como seria o futuro a partir do alcance de suas imaginações.
Foi assim que recebemos os legados ficcionais de criadores como George Orwell, Aldous Huxley, Ridley Scott, Orson Welles, Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski, H.G. Wells, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, Jules Verne e tantos outros, a embalarem nossos sonhos e pesadelos sobre o que poderia vir a ser o mundo que o futuro nos reserva. Um desses gênios criativos em especial anda me chamando a atenção, por parecer, a partir do que venho detectando no dia-a-dia, que conseguiu antever com perfeição um aspecto importante da transformação do mundo, a ponto de se poder dizer que, sim, o futuro já chegou.
Trata-se do escritor norte-americano (nascido na Rússia e depois naturalizado) Isaac Asimov (1920-1992), que dedicou grande parte de sua extensa obra literária ao fenômeno do surgimento dos robôs e de como se daria a interação dessas máquinas, cada vez mais humanas, na sociedade. “Eu, Robô”, “Fundação”, “O Homem Bicentenário” são algumas de suas obras que marcaram tanto a literatura de ficção-científica quanto o cinema, a partir da transposição às telas daquilo que o autor vinha imaginando: robôs agindo como gente, no ambiente do cotidiano, confundindo-se com seres humanos e causando confusão.

Sinto-me dentro de um livro de Isaac Asimov, por exemplo, sempre que entro em algum elevador e sou rapidamente cercado por meia dúzia de robôs que não olham nos olhos, não cumprimentam, não falam, apenas ficam absortos em maquininhas que carregam consigo, teclando ininterruptamente não sei o quê, certamente com outros robôs, à distância. Eles estão também nas calçadas, nos estabelecimentos, nas casas: alheios ao mundo, muitas vezes com fones-de-ouvido, absortos nas maquininhas. Os robôs chegaram. E, com eles, o futuro. E, com ele, uma estranha desumanização da vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de janeiro de 2015)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sobre conchas e estrelas

Camboriú em Santa Catarina e a Praia do Cassino aqui no Rio Grande do Sul eram os dois principais cenários de férias litorâneas para meus pais, minha irmã e eu, nos idos dos anos 1970 e início dos 1980. Revisitando fotografias e filmagens caseiras feitas por meus pais naquela época, vou me dando conta de quanta coisa mudou nesses cenários, passadas algumas décadas.
Claro que não vou cometer a imprudência de me deter em questões estéticas dos protagonistas de tais registros visuais, a começar por mim mesmo e a invejável magreza, a ausência de adiposidade abdominal, o bronze obtido pelos bronzeadores (nem se falava em protetor solar na época), a farta cabeleira a proteger os pensamentos do calor do sol e outros quesitos mais. Esses elementos, deixemos de lado na investigação que agora coloco em curso, para o bem de minha autoestima.
Queria mesmo era comentar sobre os saquinhos plásticos transparentes que minha irmã e eu carregamos à beira-mar tanto nas fotografias quanto nas filmagens. Estamos ambos ali, fantasiados de banhistas, eu com cerca de sete anos, minha irmã com quatro, andando para trás e para frente ao sabor das pequenas marolas que vão depositando dezenas de conchinhas marinhas aos nossos pés. Catávamos aquelas  conchinhas, fazíamos coleções e depois insistíamos em transportar de volta para casa na longínqua Ijuí. Uma que outra estrela-do-mar ressequida também era capturada como troféu e, durante alguns dias, no retorno, o cheiro de mar permanecia ainda em nossos quartos devido à presença das conchinhas, até o ponto em que começavam a apodrecer e nos víamos obrigados a jogá-las fora.
Hoje caminho pelas praias de nossos litorais gaúcho e catarinense e meus pés raramente são pinicados pela ponta de alguma conchinha que vem trazida à beira-mar pela rebentação. Nunca mais vi crianças de saquinhos nas mãos compenetradas caçando conchinhas e estrelas-do-mar, e fico a me perguntar se sumiram-se as conchinhas, sumiram-se as estrelas-do-mar, sumiram-se as crianças ou o que sumiu mesmo foi a brisa de poesia que soprava solta dezenas de anos atrás à beira do mar.
Dúvidas, apenas, cujas respostas nem sei se desejo mesmo conhecer.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de janeiro de 2015)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Pescador de Sputniks

O fascínio de cravar os olhos no céu na escuridão da noite para caçar estrelas eu herdei de meu avô materno ainda na minha infância, quando, nos anos 1970, íamos passar temporadas de férias na fazenda que ele possuía no interior de São Borja. Não havia luz elétrica naquelas funduras, a geladeira funcionava a partir de um motor a diesel, a água fresca era puxada de um poço e os banhos, tomávamos com água fria derramada dentro de um regador emborcado ao avesso no interior de um cubículo distanciado da casa.
Depois do jantar, as noites sem televisão (e sem internet, facebook e congêneres, com os quais nem sonhávamos) eram curtidas em família na escuridão da varanda, do lado de fora da casa, escutando grilos e sapos, observando o voejar de vaga-lumes, praticando o ato de sermos gente. Meu avô se abraçava a um enorme rádio que captava ondas curtas de emissoras de todas as partes do mundo e ficava zapeando de ponta a ponta no dial, trazendo-nos falações em russo, alemão, inglês, francês e outras línguas que não identificávamos. Lá de vez em quando, olhava para um canto do enorme céu preto estrelado, apontava e dizia “Maco (pois que me chamava de “Maco”), olha lá, daqui a pouco vai cruzar o Sputnik por ali”. E, de fato, logo o céu era riscado por uma luzinha piscante que cruzava veloz exatamente na direção em que ele apontara. Era um satélite artificial, que cumpria no horário certo sua passagem por aquelas plagas estelares. Para meu avô, todos aqueles artefatos eram sputniks, em alusão ao primeiro satélite artificial colocado em órbita da Terra pelos soviéticos.
Depois, passava a dar aulas de astronomia prática. Apontava para as luzes do céu e ensinava: “aquilo é Vênus e aquilo é Marte. Planetas não piscam. Estrelas piscam, como aquelas ali, as Três Marias, e aquelas outras lá, que fazem a constelação do Cruzeiro do Sul”. Era militar reformado, sabia se guiar pelas estrelas. Eu ia observando e aprendendo.

Até hoje sei reconhecer no céu todas as estrelas e corpos celestes que meu avô me ensinou. Afinal, eles seguem todos lá, imutáveis, em seus lugares no mapa do céu. O que mudou mesmo foram as gentes daqui debaixo. Não sei se ainda existe quem pesque sputniks.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de janeiro de 2015)

Naqueles dias

A vida é cheia dos mistérios e isso é o que lhe confere sabor, sabemos disso, concordamos e coisa e tal, mas há uns componentes dessa receita que são meio amargos, ah isso há, e às vezes incomodam. Incomodam devido aos efeitos que acarretam e também porque - especialmente porque -, como já disse ali no início, não têm explicação, permanecem mistérios.
Um dos que mais me intrigam tem relação com essa coisa inexplicável, que nem denominação específica possui, mas que a gente percebe a força e a influência quando “não estamos nos nossos dias”. E é só assim que conseguimos dar uma ideia do que essa coisa é: usando uma metáfora, uma imagem, uma figura de linguagem. Precisamos do recurso de um paralelo para dar dimensão da “coisa”, já que “a coisa” em si é inominável. Às vezes, sem saber a razão, sem conseguir explicar o motivo, simplesmente acontece de “não estarmos no nosso dia”, e acabarem saindo errado e atravessadas aquelas tarefas que, quando em nossos bons dias, desempenhamos com excelência, com competência, com tanta maestria que chegam a nos caracterizar e a nos darem fama entre os que nos cercam. Exceto nos dias inexplicáveis em que parecemos estar fora de nós mesmos, em que não somos nós, em que algo de nossa alma parece ter nos abandonado e ido tirar férias à beira da praia sem dizer quando volta.
Há dias em que desanda a maionese. Figurativa e literalmente e a amiga cozinheira sabe do que estou falando. Você sabe fazer maionese como ninguém na família; os parentes se reúnem na sua casa aos domingos por causa do churrasco de seu marido e da sua maionese, mas um belo dia, que nada terá de belo, você “não está no seu dia” e a maionese desanda, sem lógica, sem explicação. Igual ao que pode acontecer com o jogador de futebol. Você é Neymar a vida toda: acorda Neymar, almoça Neymar, treina Neymar, dá entrevista Neymar, concentra Neymar. Mas um belo dia, bem naquele dia de jogo decisivo pela Seleção, você entra em campo mas Neymar não está lá com você. Está só a casca, mas a essência fugiu. Acontece muito e não tem explicação.

É o dia. Depende de algum fator imponderável que astrólogos e estudiosos do biorritmo e dos ciclos da vida tentam explicar. Eu, hoje, desejava escrever uma crônica. Nem sempre estou nos meus dias...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de janeiro de 2015)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Homens, para trás!

Taí finalmente uma receita de longevidade digna de crédito e passível de ser levada a sério! Ainda mais quando revelada por uma das pessoas mais idosas do planeta e comprovadamente a mais velha de toda a Escócia. A fórmula para ultrapassar os 100 anos de existência com saúde, disposição e bom-humor é de Jessie Gallan, uma senhorinha de 109 anos que ganhou a mídia mundial nos últimos dias justamente por revelar o segredo para alcançar uma idade dessas com uma qualidade de vida tão plena.
Segundo ela, a receita é bem simples e não tem nada a ver com dietas mirabolantes, opção pelo clima da Serra, exclusão do sorvete de nabo do cardápio diário, brincar mais com cachorros e gatos e menos com escorpiões, evitar atravessar as ruas sem antes rezar dois Pai-Nossos no centro de Caxias do Sul, coisas assim. Nada disso. Para ela, ou ao menos no caso dela, o segredo é só um: manter distância dos homens. “Homem só dá estresse”, afirma a longeva e sábia senhora, em escocês fluente. Alguém aí se anima a discordar? A senhora discorda, madame? Que idade a senhora tem, madame? Ah, pois é... Voltamos a conversar então daqui a 50 anos, combinado?
Pois, além de revelar que não dispensa uma tigela de mingau todas as manhãs e de fazer aula de ginástica uma vez por semana, Jessie, a nossa heroína, é solteira, nunca casou, não tem filhos, não tem e nunca teve namorado e Deus a livre de um dia vir a ter, porque não quer. “Homens só dão estresse”, repete ela na entrevista, sublinhando a importância da ausência desse elemento em sua vida como fator vital (literalmente falando) para ela ter atingido a idade que atingiu. E não sou eu quem vai discordar.

Claro, dirá alguém, há de se relativizar, na concepção de mundo dela, o papel e o significado dos homens em um país no qual um dos trajes típicos masculinos é justamente uma saia quadriculada, chamada “kilt”, e ai de quem chamar essa saia de saia na frente de um escocês, especialmente se ele estiver usando sai... Kilt! Kilt! Kilt! A figura masculina, pelas nebulosas regiões da Escócia, não parece estar com a credibilidade em alta, ao menos, aos olhos da Jessie. Mas eu ainda quero crer que o segredo deve estar mesmo é no tal do mingau que ela manda ver todas as manhãs...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de janeiro de 2015)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O tempero da sorte

Tempos atrás, ganhei de presente uma panela wok. Sabem o que é uma panela wok? Explico: a panela wok é um utensílio de cozinha originário da China, concebido para ser versátil em seu uso (é capaz de refogar, fritar e/ou cozinhar a comida), permitindo que o calor se distribua de maneira uniforme pelos alimentos nela contida. É um objeto de desejo para gourmets e amadores, sendo que me incluo entre esses últimos. Ao menos, achava que me incluía até a semana passada, quando decidi finalmente estrear minha garbosa panela wok materializando uma receita com legumes e carne de porco que escolhi a dedo (limpo) em um livro de receitas exclusivas para serem feitas em... panelas wok!
Era dia de semana, encerrei minhas tarefas profissionais cedo e dei início aos trabalhos cozinhais. Como todo bom cozinheiro sabe (até os maus cozinheiros como eu o sabem, por sinal), é recomendável ler toda a receita antes de começar a prepará-la, para não ser surpreendido no meio do caminho por algum passo irreversível (um amigo meu, chamado Argentino, certa vez, só descobriu na metade do processo que o polvo deveria ser cozinhado vivo, mas aí já era tarde demais). Li a receita, preparei os ingredientes, piquei alguns, ralei outros, fiz o caldo, cortei a carne, temperei o porco, escorracei o gato e mandei bala.
Duas horas depois de muito vapor e suor, o cozido estava pronto. Apesar de ter levado o quádruplo do tempo que a receita velhacamente previa, o aspecto condizia com o da fotografia no livro. A esposa chegou do trabalho e fomos à mesa, ávidos para saborear o resultado do presente e de sua estreia. Uma garfada, duas garfadas, algumas mastigadas, olhares trocados e a concordância mútua: “bom, bom, bonzinho...”. Foi aí que minha esposa, num lampejo, pegou o vidrinho de molho shoyu e disse: “talvez se metermos um pouco disso, o sabor não realça?”. Pois assim disse, assim fez e assim se deu: tacou o shoyu e, em um segundo, enriqueceu a receita que eu levara duas longas horas para produzir.
Lance de gênio. A genialidade está nas pequenas coisas, e não se sensibiliza com o suor dos esforçados. Ela simplesmente contempla os que lhe caem nas graças. Como é que eu não vi aquele vidro de shoyu antes?

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de janeiro de 2015)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Proposta indecente

Até que ponto os seus valores éticos pessoais são inegociáveis? Você possui princípios inabaláveis, imunes a qualquer oferta? Outra maneira de formular a questão seria perguntando: você topa tudo por dinheiro? Ou: o dinheiro pode comprá-lo? Ou ainda: o dinheiro pode realmente tudo?
Por exemplo, você, mulher, leitora: posaria nua para uma revista masculina por dinheiro? Sim? Não? Dependeria do valor ou quantia nenhuma pagaria pela sua nudez? Não precisa responder, as reflexões são suas, são íntimas, decorrem da firmeza ou não de seus princípios e necessidades. E você, amigo leitor, desistiria de todos os seus projetos de vida (familiares, pessoais, profissionais) por alguma oferta nababesca em dinheiro para sumir do mapa por algum motivo? Sim? Não? Demi Moore protagonizou, em 1993, um filme (“Proposta Indecente”) no qual, por uma oferta de um milhão de dólares, a personagem dela, casada, enfrenta o dilema de aceitar ou não fazer uma noite de amor com um milionário (Robert Redford), a fim de satisfazer o desejo dele por ela e ela solucionar a crise financeira que vive com seu marido. Sintomática a obra.
Pois é, fico pensando nessas coisas quando leio notícias de que artistas famosos como Roberto Carlos e agora a Angélica, que há anos são vegetarianos, se submetem a fazer propaganda de produtos à base de carne vermelha devido a milionários contratos publicitários. Estão lá as fotos do Rei sorrindo defronte a um prato com um enorme hambúrguer, e a Angélica dando-lhe um mordidaço em um cachorro-quente com salsicha e mostarda. Mas ambos são vegetarianos há anos. Se comeram mesmo os produtos carnívoros que são pagos para anunciar não interessa.

A questão é se não estão sendo incoerentes com eles mesmos. Só isso. E se estão, o estão sendo por dinheiro. Problema deles, claro. Problema ou solução, sei lá, a vida é deles, não tenho nada a ver com isso. Apenas esses ídolos não representam minha visão pessoal de coerência. Só isso. Eu ainda acho que eu não faria tudo por dinheiro. Ao menos, quero crer nisso. Mas também, sei lá... Carnívoro como sou, não se espantem se, amanhã ou depois, me virem protagonizando algum comercial de rede de fast-food, devorando um suculento xis-salada... Seria um escândalo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de janeiro de 2015)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O desempaca papo

Final de tarde de sábado, horário ainda de verão, dia claro apesar das nuvens que instabilizam o tempo nesta época do ano. O casal de amigos convidados para jantar chega no horário combinado. Gentil e elegantemente, ela traz um pavê de chocolate produzido por ela mesma, para colaborar na sobremesa. Já são de casa, não é a primeira vez que vêm compartilhar sabores e simpatias e a sala é de pronto tomada pelas conversas animadas que vão se interpondo com os drinques que vou alcançando ao sabor do perfil de cada um, a título de aperitivo. Todos os elementos do típico quadro de relax de final de semana entre amigos entram em campo e vão fazendo a sua parte. A noite navega em águas tranquilas e aconchegantes.
Conversa vai, conversa vem, a mesa já está posta com os quitutes preparados para aquilo que se converterá, conforme o previsto, em um longo e agradável happy hour. Dessa vez quem vai dirigir de volta para casa é ela, portanto, as garrafas de espumante terão de ser solucionadas por nós três. E não nos fazemos de rogados: mãos e beiços à obra. Tim-tim!
Tudo vai indo muito bem até que o inevitável acontece, para truncar o andamento fluido da conversa. Quem estava fazendo a digressão era o amigo convidado, que, a fim de ilustrar o que dizia, resolveu evocar os três tenores que cantavam juntos e fizeram sucesso mundial na década de 1990. “Luciano Pavarotti, José Carreras e... e... puxa, quem era o terceiro, mesmo”? Pois é: quem era? Tento ajudar e coloco a funcionar também o meu cérebro, em voz alta: “Pavarotti, Carreras e... e... puxa, me sumiu”! O amigo segue tentando: “Eram o Carreras...”. Minha esposa grita da cozinha: “O Pavarotti!”. “Esse já dissemos, falta o outro”, digo eu. “Pavarotti, Carreras e o... o...”. E ficamos nesse atoleiro, empacando a conversa, até que minha esposa tem a ideia genial de entrar na internet. Pronto, solucionado com uma teclada: Pavarotti, Carreras e Plácido Domingo!

Claro, Plácido Domingo, como fomos esquecer? Agora podemos seguir adiante. A internet desempaca a conversa. Que seria da noite sem ela? Será que no passado não empacávamos? Ou isso, ou consultávamos as... Como era mesmo que se chamavam? As... as... Ah, sim, as enciclopédias! De novo, salvos pelo Google.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de janeiro de 2015)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Alea jacta est

Em tempos de terrorismo tresloucado como esse que amargamente vivemos, as profissões de chargista, humorista e jornalista entraram para o topo do ranking das atividades de maior risco de vida no planeta, haja vista a chacina ocorrida na França na semana passada. O ato de identificar atividades de risco pode ser uma ferramenta muito útil no processo de compreensão do perfil de determinadas sociedades e eras, fundamental para sociólogos, antropólogos, historiadores e pesquisadores em geral.
Tomemos por exemplo a Roma Antiga do início do primeiro milênio da Era Cristã. Apesar da pompa, do poder, da soberba e do acesso franqueado a orgias e às diversões sangrentas do Coliseu, a atividade de imperador romano era uma das mais arriscadas que se poderia imaginar naqueles tempos remotos. Basta ver que, entre o total de 12 Césares que Roma gerou ao longo de sua história, pelo menos seis deles foram assassinados em pleno mandato (alguns deles, desaforadamente mortos na frente de instituições como o Fórum e o Senado).
Para se ter uma ideia de como era a coisa, pegue-se os anos de 68 d.C. e 69 d.C., quando Roma foi sucessivamente governada por quatro Césares devido à morte de três deles, em sequência. O primeiro foi Galba (5 a.C. a 68 d.C.), que assumiu o poder após o suicídio de Nero, que tirou a própria vida após tacar fogo em Roma. Galba governou por sete meses até ser morto dentro do Fórum, em 15 de janeiro de 68 d.C., por conspiradores que levaram Óton (31 d.C. a 69 d.C.) ao poder.  Óton governou durante 95 dias, até suicidar-se em 16 de abril de 69 d.C., a fim de encerrar uma guerra civil. No lugar de Óton entrou Vitélio (15 d.C. a 69 d.C.), que governou com terror até 22 de dezembro de 69 d.C., quando foi cruelmente assassinado pela multidão e teve seus membros lançados ao Rio Tibre. Foi sucedido por Vespasiano que, enfim, permaneceu dez anos no poder de Roma, morrendo em 79 d.C. devido a uma prosaica inflamação intestinal.

Você arriscaria assumir o posto de César na Roma Antiga? Eu é que não. Já no Brasil, o risco maior reside no simples fato de nascermos brasileiros mesmo. Ser brasileiro é profissão de risco máximo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de janeiro de 2015)

domingo, 18 de janeiro de 2015

A inconstância

Porque não sou filósofo, não sei como a Filosofia trata do assunto. Porque não sou psicólogo, desconheço a abordagem psicanalítica do tema. Porque não sou erudito, fico à margem das elucubrações que me permitiriam compreender as nuances do problema. Apenas porque sou um eterno estranhado com as coisas do mundo é que penso nessas coisas, sem concluir coisa alguma. Falo aqui da inconstância, esse atributo que, a meu ver (não sei se também no dos filósofos, no dos psicólogos e no dos eruditos), é a origem de muitos males.
Vejamos, por exemplo, a senhora minha esposa. Dia desses andou ela descobrindo, por meio de indicações de uma cunhada, a existência de um produto fabricado para o lar que haveria de revolucionar a concepção de espaço dentro de nossa casa. Os lares modernos, como bem o sabem arquitetos e projetistas, são tecidos pela junção de peças pequenas que exigem a confecção de mobília sob milimétrico encaixe, e assim se dá, com grande ênfase, em nosso quarto de casal, onde uma cama-box faz as vezes de roupeiro útil para que dentro dela sejam guardados cobertores, travesseiros extras, ventilador, caixa de ferramentas e mil e outras coisas que, de outro modo, estariam a atravancar os corredores e a dilapidar nossa paciência.
O objeto maravilhoso esse que a esposa (minha) descobriu por indicação da cunhada (nossa) é um saco plástico dentro do qual você dispõe os cobertores e casacões que só ocupam lugar nos roupeiros e se tornam inúteis no verão e que, depois de fechado, retira-se-lhe o ar de dentro com o sugar do aspirador de pó. O vácuo vai minguando aquele pacote todo até ficar com cerca de um terço do tamanho, os cobertores e casacos magicamente achatados ali, fininhos, fininhos, e depois guardado dentro da cama-box no espaço similar ao de um lençolzinho. Genial!

Só que, madrugada dessas, fui acordado de supetão com a cama-box sendo herculeamente erguida por minha esposa comigo em cima, de onde quase fui arremessado para baixo, porque ela, com frio, precisava do cobertor que estava dentro do saco a vácuo. Terrível essa inconstância. Como, senhora? Estou a reclamar da esposa? Não, senhora, imagine! Estou indignado é com a inconstância do tempo nessa cidade!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de janeiro de 2015)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Ataque à civilização

O fato mais aterrorizante que sacudiu a Europa na semana passada foi a chacina de 12 pessoas cometida em um jornal humorístico francês, por uma dupla de terroristas fanáticos. No Brasil, a notícia mais aterrorizante deste mês de janeiro foi veiculada no início da semana, dando conta de que 529 mil alunos brasileiros que prestaram o exame do Enem no final de 2014 tiraram nota zero na prova de redação. A meu ver, esta notícia é tão chocante quanto aquela.
Os dois fatos, apesar de aparentemente distantes entre si e sem correlações visíveis, se prestam ao tecer de uma linha de análise que os une em determinado ponto. Essa linha é a dos efeitos da barbárie, entendendo-se aqui o termo “barbárie” como indicador de grau zero no nível de civilização humana. Invadir uma redação de jornal armado e fuzilar cartunistas porque discorda das mensagens passadas por eles a partir de seu trabalho representa o grau mais primitivo das relações humanas, irracional, incivilizado e inadmissível. É a expressão da bestialidade em estado puro, a supremacia da desrazão sobre a razão.
A mesma supremacia da desrazão sobre a razão se dá no seio de um povo que consegue, em um só ano, trazer à tona meio milhão de jovens que demonstram não conseguir administrar com eficiência mínima um dos mais significativos instrumentos civilizatórios: a escrita. Meio milhão de estudantes que estão em fase de pleitear vaga na universidade para seguir carreiras profissionais não conseguem compreender a leitura de um enunciado e, por trágica consequência, são inaptos para organizar seus pensamentos de forma coerente por meio da expressão escrita. Trata-se de um quadro tão incivilizado quanto o outro.

Mas isso há de mudar. O índice nos envergonha e, em sendo o Brasil como é, antevejo logo as medidas cabíveis que serão tomadas em curto prazo. A exemplo do índice de reprovação escolar, que era alto no país, agora solucionado com as ordens de que não se deve reprovar mais ninguém, também as redações zero no Enem se extinguirão assim que admitir-se o uso da linguagem “internetês” como expressão da escrita aceitável: “Ae meu, negó segui, td ok para hj, kkkkkk”. E vamos em frente, assassinando a civilização.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de janeiro de 2015)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Cumprimento ambiguo

Tudo depende do ponto de vista. Tudo. Nada é absoluto. Nada. As coisas na vida apresentam, no mínimo, dois lados. Sabem muito bem disso os jornalistas, que passam suas vidas profissionais lidando com versões dos fatos, e o Tio Patinhas, o maior dono de moedinhas do mundo, esses objetos que, por essência, possuem dois lados.
 Já matemáticos e arquitetos têm intimidade com objetos repletos de lados, como cubos, pirâmides, tetraedros, pentágonos, coisas assim. É lado que não acaba mais. E cada lado apresenta um universo infindo de versões possíveis, fazendo do mundo uma teia de complexidades impossível de ser reduzida a um pequeno e raso denominador comum. A vida e o universo desconhecem os denominadores comuns, os ignoram e os subvertem. Por isso que viver é uma aventura desprovida de manual e de tutoriais definitivos. É preciso ir vivendo e procedendo às avaliações das coisas da melhor forma possível.
Essas considerações se apossaram de minha mente manhã dessas em que eu perambulava pelas dependências de um shopping de malhas situado em cidade vizinha, fazendo companhia e guarda às necessidades aquisicionais da senhora minha esposa. Mal começamos a flanar pelos corredores no ziguezague típico de quem olha uma vitrine do lado de cá e cruza para olhar a vitrine do lado de lá, quando uma moça, atendente de uma das lojinhas, saiu porta afora a fim de dar um pulinho sei eu lá aonde e, ao cruzar por nós, reconheceu minha esposa, abriu um largo sorriso e disse-lhe “oi, tudo bem?”.

Opa! O sinal de alerta ligou. Quando a atendente de uma loja, em um shopping situado a cerca de 30 quilômetros de distância, reconhece a sua esposa a ponto de cumprimentá-la efusivamente, é porque algo vai mal. Quer dizer, algo vai muito bem no que tange à simpatia da atendente e sua capacidade de reconhecer clientes. Mas, ao mesmo tempo, talvez algo possa estar indo mal com a saúde financeira de meu cartão de crédito e com a frequência com que a senhora minha esposa, a mesma citada no meio deste texto, coloca os pés e a carteira naquele estabelecimento. É preciso verificar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de janeiro de 2015)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Os riscos da soberba

Relacionamentos precisam ser constantemente cultivados, monitorados, acarinhados, para que perdurem e mantenham firme o laço que os sustenta. O desleixo em uma relação pode causar, a longo prazo, estragos semelhantes e tão graves quanto uma traição direta. A regra vale tanto para as relações interpessoais quanto para as institucionais. É preciso cuidar para não pisar na bola, pois a mágoa gerada por um descuido pode cobrar preços altos no futuro.
Barack Obama deve estar refletindo sobre isso, uma vez que a Casa Branca admitiu no início desta semana, por meio de um porta-voz, que os Estados Unidos erraram ao não enviar algum representante do alto escalão do governo para a passeata histórica que líderes de diversos países fizeram pelas ruas de Paris, na França, domingo à tarde, dando um recado contra o terrorismo internacional. Alemanha, Israel e vários outros países enviaram seus altos dignitários para prestar solidariedade aos franceses, representados ali também na passeata-monstro histórica por seu maior mandatário. Já os Estados Unidos se contentaram com a presença do embaixador norte-americano na França.
Contentaram a si e descontentaram geral, pois o aparente descaso norte-americano pegou mal junto ao tradicional aliado e parceiro francês. França e Estados Unidos cultivam uma parceria diplomática e estratégica há séculos. A França foi um dos mais importantes aliados das colônias americanas que se rebelaram contra o domínio inglês no século 18, movimento que resultou na independência dos EUA. Pouco depois, os Estados Unidos foram ativos apoiadores da Revolução Francesa que desbancou a monarquia e instituiu a república no país europeu, em 1789. Em reconhecimento pela amizade entre os dois povos, a França presenteou os EUA, em 1875, ano do centenário da independência norte-americana, com a Estátua da Liberdade.  Décadas mais tarde, forças aliadas capitaneadas pelos EUA invadiriam a Normandia em 1944, dando início à libertação da França do jugo nazista.

E, agora, Obama pisa na bola com os franceses, arranhando uma amizade de séculos, em um típico gesto de descuido derivado da soberba. Soberba, diga-se de passagem, é pecado capital. Exorcizemo-la sempre.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de janeiro de 2015)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Vida de inseto

Ontem de manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, vi-me em minha cama metamorfoseado numa massa humana informe que demorou vários segundos para se recompor e conseguir, enfim, encarar o mundo em uma nova semana de trabalho. Sempre que sou acordado de forma antinatural, por um despertador ou algum barulho e/ou movimento externo inesperado, demoro um tempo para redescobrir quem sou eu, onde estou, como me chamo, o que devo fazer, esses elementos todos que, quando reunidos e apreendidos, resultam na consciência que temos sobre nós mesmos, ou seja, nossa identidade.
Durante esses infindáveis segundos após os despertares traumáticos, vejo-me mergulhado em um extraordinário limbo de consciência no qual não sou nada, não pertenço a nada, não significo nada. Sou um sem-nome, um sem-ser, uma não-pessoa, um não-nada, um nada-tudo sem individualidade. Uma situação bem kafkiana, poderiam dizer o senhor e a senhora que me leem, e estariam cobertos de razão. Durante alguns segundos, vejo-me entranhado em uma teia moldada pela mesma essência da angústia estupefaciente típica que permeia todos os livros escritos por Franz Kafka (1883-1924).
E não é para menos. Depois que me recomponho e redescubro que uma de minhas primeiras obrigações do dia é escrever a crônica do jornal Pioneiro, retomo a vida e sigo em frente. E no processo incessante de busca por um tema que possa magnetizar a atenção do leitor, detectei que, neste ano, celebra-se o centenário da primeira edição da obra “A Metamorfose”, lançada na Europa em 1915.

O livro é um dos mais lidos e celebrados do escritor, comumente resumido como enfocando o drama do personagem Gregor Samsa que, certo dia, ao acordar, vê-se transformado em um inseto gigantesco (a maioria dos leitores o imagina na forma de uma barata, mas eu, sabe-se lá por quais derrapadas da psiquê, vejo Samsa em sua cama como um imenso louva-a-deus). Há cem anos, portanto, Kafka nos legou, com sua obra, a alegoria perfeita para o estranhamento que temos frente a nós mesmos ao longo das transformações que a vida nos exige. O que fazer com essas transformações é o desafio que se impõe ao Gregor Samsa que habita cada um de nós.
)Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de janeiro de 2015) 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Atração científica

Na década de 1970 do século passado, quando eu era criança, meu pai se botou a comprar uma coleção em fascículos lançada pela Editora Abril, intitulada “Os Cientistas”. O barato da coleção, que chegava semanalmente às bancas, era uma caixa de isopor dentro da qual vinham instrumentos, elementos químicos e instruções para reproduzir em casa os experimentos básicos que davam a tônica das descobertas de cada cientista apresentado.
Dessa forma, fui adentrando aos poucos no fascinante universo científico representado por bússolas, tubos de ensaio, microscópios, cadinhos, pinças, pilhas, fios, lâminas, nitratos, sais, essas coisas todas. O interessante é que o acesso a esse material me era franqueado por meu pai e eu me divertia tentando reproduzir os experimentos à tarde, em casa, dentro das quatro paredes de meu quarto. Olhando em retrospecto, só hoje percebo o quão perto esteve o mundo de ver surgir ali, nos recônditos da Rua dos Viajantes, um futuro perigoso cientista louco, mas o Destino quis me conduzir por veredas diferentes, graças aos deuses todos.
Entre tantos elementos que se acumulavam ali naquela coleção de 50 caixinhas de isopor, um dos que mais me chamavam a atenção era um par de pequeninas barras de ferro imantadas nos polos. Eram dois ímãs que se repeliam quando aproximados em seus polos iguais e se atraíam quando aproximados em seus polos opostos. Eu ficava fascinado com o poder mágico de atração daquelas pequenas barras e saía pela casa arrastando clipes, pequenas colheres e outros objetos metálicos que pudessem ser atraídos pela força dos ímãs.

Com o passar dos anos, afastei-me do mundo científico e mergulhei nas ciências humanas do jornalismo e da literatura. O que ficou daquela época e daquelas experiências foi a convicção de que, a exemplo dos pequenos bastões de ferro imantados, nós, seres humanos, somos também poderosos ímãs, capazes de atrair para nossas vidas exatamente aquilo que, no íntimo, mais profundamente desejamos. Nem sempre esses desejos são conscientes. Por isso, é preciso prestar atenção e saber detectar o que estamos atraindo, e o por quê. A resposta para esses casos se esconde no laboratório da alma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de janeiro de 2015)

domingo, 11 de janeiro de 2015

O terror mora aqui

Algumas semanas atrás, no findar de 2014, o palco foi uma bomboniére de luxo em Sydney, na Austrália. Um fanático religioso islâmico, armado e agindo por conta própria, invadiu o local e rendeu as pessoas que estavam ali dentro tomando café, comprando chocolates, fazendo turismo. Foram horas de pânico e de terror até a traumática invasão da polícia, que resultou em três mortes: a do sequestrador e as de dois reféns inocentes.
Agora o mundo ainda assiste perplexo ao desenrolar da ação violenta, insana e injustificada praticada por uma dupla de fanáticos muçulmanos contra uma revista de humor na França, que teve como consequência o assassinato a sangue-frio de uma dúzia de pessoas em plena Paris, a Cidade-Luz, ensombrecida agora pela dor, pelo luto e pelo horror. A barbárie humana não tem medida, não conhece limites, apresenta um inimaginável poder contínuo de superação de seus próprios parâmetros.
Causa náusea pertencer à mesma espécie biológica de seres que assassinam friamente em nome de motivações políticas, pessoais, religiosas, financeiras, o escambau. Pertencemos à mesma espécie que esses degenerados? Biologicamente, sim. Ética, moral, civilizatoriamente, claro que não. O mais assustador é constatar que o terror incivilizado não se camufla somente por trás do perfil de extremistas religiosos que barbarizam nos países do Primeiro Mundo e no Oriente. Esse terrorismo também caminha por aqui, nas nossas calçadas brasileiras, gaúchas e caxienses.
Basta ler os jornais. Ou não é terror igual o fato de uma adolescente de 16 anos, grávida, andando por Caxias do Sul, ser atropelada por um veículo tresloucado dirigido por uma dupla de assaltantes em fuga, e o acidente resultar na morte do bebê? Não é isso um ato tão terrorista quanto o dos fanáticos islâmicos? Não é um ato terrorista levar um tiro na cara disparado por um criminoso que quer roubar seu carro para assaltar ali adiante?

A vida humana nos dias de hoje anda com a cotação em níveis tão baixos quanto na época da Segunda Guerra Mundial. E isso em qualquer parte do planeta. O terror não está só lá do outro lado do mundo. Ele também mora aqui.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de janeiro de 2015)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A batata do outro

Como já dizia Machado de Assis: é batata! Não, nosso escritor maior nunca disse isso. Quer dizer, até pode ter dito informalmente, no refúgio de seu lar ou entre amigos, afinal, fora a genialidade literária incomum, não passava de um ser humano comum e seres humanos comuns dizem, vez em quando: é batata! Machadinho (que é como o chamamos, os íntimos) pode, então, sim, também ter dito alguma vez a expressão, mas não a ponto de que ela o caracterizasse.
Como, minha senhora? Eu estou confundindo? Machado escreveu sobre batatas, mas foi diferente, é isso? Sim, isso mesmo. Como era, mesmo, minha senhora? O que ele escreveu, e que o caracteriza, é a expressão “ao vencedor, as batatas”? Sim, exato! Eu sabia que havia batatas na jogada machadiana. Obrigado, minha senhora. Fico-lhe em dívida por essa.
Mas, se o que Machado escreveu foi “ao vencedor, as batatas”, e não simplesmente “é batata!”, então Machado não serve para ilustrar e engalanar o início desta minha crônica, porque o que eu quero expressar é exatamente a exclamação “é batata!”, e, portanto, não posso evocar Machado, o que empobrecerá a pretensão do texto. Pena. Deixemos Machado, não sem tristeza, e fiquemos somente nas batatas, que é o que nos resta. E vamos logo, que o espaço se vai extinguindo.
Pois é batata, diria eu mesmo, então! O prato do vizinho é sempre mais saboroso, mais aromático e mais apetitoso do que o seu prato. Vá a um restaurante que serve empratados, que é quando a comida já chega toda enfiada (“disposta” seria mais elegante, mas estamos escrevendo sem a companhia de Machado, lembra?) dentro do prato, que você logo vai notar. O pedido do seu companheiro de mesa, no prato que lhe chega ao lado, sempre parecerá superior ao seu. É batata, mesmo que não haja batatas.

Foi por isso que desenvolvi uma tática. Sempre tento ser o último a pedir e simplesmente digo ao garçom: “quero igual ao dele”. Só que não adianta: minutos depois, chegam à mesa os pratos contendo o mesmo pedido, e sempre o filé do outro estará melhor preparado do que o meu, o arroz mais soltinho, a batata mais batata. É batata. Batata que é batata será batata sempre.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de janeiro de 2015)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Nos meus ouvidos

A inovação, a novidade, a mudança, o passo à frente, a superação do marasmo, a surpresa. Conceitos como esses estão na ordem do dia do mundo moderno. E não é de hoje. Na verdade, viemos evoluindo enquanto civilização desde os primórdios da história da humanidade. Aliás, a história da humanidade, em essência, só existe enquanto história justamente porque fatos acontecem, a maioria deles marcada por movimentos que visam à inovação em alguma área.
Los Angeles, nos Estados Unidos, sedia desde terça-feira mais uma edição da CES, uma das mais importantes feiras internacionais voltadas a mostrar ao mundo as inovações tecnológicas que em breve chegarão ao cotidiano das pessoas. Não fui lá, mas a tecnologia das informações me colocou a par sobre quais as inovações que mais estão fazendo sucesso por lá. Entre elas, uma me chamou a atenção em especial: trata-se de um fone de ouvido sem fio, o que, por si só, já seria uma grande coisa (tem coisinha mais irritantezinha do que ficar desembaralhando fios, hein?), mas tem mais.
O grande diferencial desse novo e revolucionário fone de ouvido é que ele oferece, além de sua função básica de proporcionar música, outras utilidades agregadas como ser automaticamente à prova d´água; mede os batimentos cardíacos; mede a performance em corridas ou pedaladas e oferece várias informações sobre o andamento de seu corpo. Mas o melhor vem agora: esse incrível fone de ouvido do século 21 é capaz também de regular a altura dos sons que vêm do mundo externo. Uau!

Já pensou, que maravilha, você poder, com os fones, isolar o barulho que vem do apartamento de cima quando a vizinha caminha com seu salto alto às duas da madrugada e lhe tira o sono? Ou ignorar o som horroroso que vem dos alto-falantes do carro rebaixado que passa na rua? Poder manter um ar sereno e tranquilo, sorridente até, enquanto sua esposa lhe descasca os tubos por você não ter feito o que deveria ter feito e por ter feito errado o que era para ter sido feito certo, sem escutar uma só palavra, apenas concordando com a cabeça? Que paraíso! Esse fone de ouvido é, desde já, meu maior sonho de consumo. Que o futuro chegue logo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de janeiro de 2015)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Erro e acerto

Que me perdoem os puristas, mas a simples evocação da tradição não serve como argumento para evitar que se tente fazer mudanças. Não querer mudar “porque sempre foi assim” ou “porque sempre fizemos desse jeito” é uma postura temerária que não encontra eco no estimulante e contínuo processo de desenvolvimento da civilização humana. Somos, nós, humanos, seres cambiantes por natureza, e a mudança faz parte intrínseca de nossa essência. Somos inclinados a mudar, apesar do temor que a própria ideia de abandonarmos hábitos arraigados nos causa.
“Não se mexe em time que está ganhando”, vai dizer alguém. Sim, mas aí eu lembro o ensinamento que o futebol, nosso esporte nacional, nos oferece: é comum estarmos ganhando e o time adversário virar o jogo nos dois minutos finais da partida. Aí sim, não haverá mais tempo algum para efetuar mudanças, e a partida que estava ganha, será irremediavelmente perdida. Às vezes, a melhor estratégia para garantir a sobrevivência é justamente mudar o time que está ganhando, para assegurar que, com a mudança inesperada, a vitória seja garantida até o final.
Mas, claro, a humanidade não foi dotada com o dispositivo da previsão do futuro. Nunca se sabe se as mudanças darão certo, se vão realmente resultar naquilo que se esperava delas. Para saber, é preciso tentar. E saber recuar, voltar atrás, em caso de erro. Mas o processo da evolução se dá justamente embasado na equação erro x acerto. Não há outra forma de avançar. Nem sempre a mudança significa avanço, mas isso só se perceberá depois da tentativa feita. É pagar para ver. Tem sido assim ao longo da história da humanidade.

Deixamos de viver nas tradicionais cavernas, quando dávamos de clava nas cabeças uns dos outros para impor nossas vontades. Até a missa deixou de ser rezada em latim, conforme mandava a tradição secular da Igreja. Deixamos de pisar nos espinhos e criamos o primeiro chinelo. Cansamos de pegar chuva e criamos o guarda-chuva. E assim vamos indo, chacoalhando as tradições. Mas, além de sabermos ousar, é sempre necessário termos em vista que um eventual recuo frente a uma tentativa fracassada também pode ser vital e estratégico. Quem disse que é fácil?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de janeiro de 2015)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Consciência pesada

O Procon, o Inmetro, a Procuradoria, o Vaticano, a Soama, o Giovani Grizotti, o Greenpeace, o Fantástico, enfim, quem, exatamente, não sei, mas alguém deveria assumir a causa e tomar alguma providência contra a comercialização dessas balancinhas caseiras que compramos motivados por sei lá qual espécie de obsessão e que acabam se transformando em causa diária de dor, muita dor, pesadas dores. E põe pesadas nisso, porque, cá entre nós, quem é que gosta de encarar a realidade dos quilinhos a mais adquiridos depois dos inevitáveis festins de final de ano, hein? Quem?
E ainda se fossem apenas “alguns” e tão-somente “quilinhos” a mais, mas sabemos que não é assim. Hoje pela manhã, ao sair do banho e subir mastodonticamente, calcanhar por calcanhar, sobre a balancinha que reside estratégica e psicopaticamente no banheiro, levei aquele susto ao verificar que de fato estavam ali, pendurados em mim, exatos três quilos a mais do que na última pesagem, realizada ainda na alegria da antevéspera decembrina das festividades que estavam por vir. Três! Três mil gramas excedentes espalhados pelo meu corpo. Pior: espalhados, não. aglomerados contando fofoca todos ali, ao redor de minha cintura. Xô, Satanazes!
E vem cá, amiga leitora, parceiro leitor: a gente sabe exatamente, cá em nosso mais pesado íntimo, de onde vem cada punhado desses gramas a mais que a diabólica balancinha se regozija em apontar, não é mesmo? Estão ali os nacos a mais do peru natalino acompanhado pela farofa especial feita pela Tia Germínia; estão ali as fatias de mousse de pepino elaboradas pela nora da cunhada da sobrinha; estão ali os cálices enfileirados de espumante brut da Serra Gaúcha; estão ali as pazadas de lentilha que enfiamos goela abaixo gritando “Feliz Ano-Novo” sob chuva de fogos de artifício na sacada do apartamentão do primo; estão ali as frutas cristalizadas, os chesters, os pavês, os arroz à grega, os panetones recheados, as cervejinhas, os drinques, as caipirinhas, os chocolatinhos no meio da tarde, os copos de Coca-Cola para rebater a ressaca. Está tudinho ali.

A balancinha não mente jamais. Tem horas que essa sinceridade gritante pesa.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de janeiro de 2015)marcos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Gente, gente!

Desde que me conheço como folheador de jornais, gosto de acompanhar notícias sobre o crescimento demográfico da humanidade no planeta Terra, esse anfitrião generoso que tão mal tratamos ao longo dessa nossa estada por seus domínios. Ao findar do ano de 2014, o IBGE divulgou os dados que atualizam a quantidade de brasileiros que somos, números esses que só fazem aumentar a cada ano que passa.
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, somos exatos 202.768.562 de brasileiros atualmente, representando cerca de 3% dos estimados 7 bilhões de seres humanos no planeta (a dezena de astronautas que estão em órbita creio que também entra nas contagens absolutas). Ou seja, a proporção indica que, a grosso modo, a cada 100 pessoas no mundo, três são brasileiros. E viemos reproduzindo em ritmo acelerado, se observarmos que crescemos em 12 milhões de brasileiros nos últimos quatro anos, representando um acréscimo médio de três milhões a cada ano. É gente, tchê!
Falando em tchê, o IBGE também revela que, agora, já somos 11.207.274 de gaúchos. Em cinco anos, aumentamos nossa população em 513.345 pessoas, quase uma Caxias do Sul inteirinha. Sendo assim, dá para afirmar que cerca de 5% dos brasileiros são gaúchos. E em relação ao mundo, quantos somos? Peraí, já lhe digo, afinal, se tem coisa que aprendi a fazer nas aulas de matemática foi regra-de-três... Se no mundo há 7 bilhões de pessoas e se somos 11 milhões de gaúchos, então, xis prá cá, passa para o outro lado, multiplica, divide e... Pimba: representamos, nós, gaúchos, 0,15% da população planetária. Eita!

O que significa tudo isso? Bom, em primeiro lugar, o óbvio: que a população humana não para de crescer sobre a Terra. Depois, significa que, com tanta gente assim, já está mais do que na hora de pararmos com a brincadeira e começarmos a realmente nos preocupar em resolver problemas antigos da humanidade, sob pena de nossos bisnetos testemunharem um caos deixado de herança por nós que vai fazê-los pensar que seus antepassados (nós) não passávamos (passamos) de um bando de loucos inconsequentes. Não acho que queiramos ser lembrados assim por nossos descendentes. Ao trabalho!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de janeiro de 2015)

domingo, 4 de janeiro de 2015

A roupa da vizinha

Ai, coitada da vizinha que mora na casa verde do outro lado da rua, que eu enxergo da janela de meu escritório caseiro (“home office”, meu contador me disse para eu chamar de “home office”, que é mais elegante e impressiona a clientela). Mas coitada da vizinha, eu ia dizendo. Ela esqueceu de novo a roupa estendida no varal no quintal. E, adivinhem? Chove!
São nove horas da manhã, a roupa da família da vizinha já estava estendida, e chove. Acompanho o andamento das lavagens de roupas daquela casa, porque, como já disse, tenho visão privilegiada de parte de seu cotidiano a partir da janela de meu escrit... de meu home office. E sei que a vizinha não é de esquecer as roupas estendidas no varal durante a noite. Isso significa, utilizando-me do raciocínio lógico obtido a partir da leitura das aventuras de Sherlock Holmes na adolescência, que a vizinha levantou cedo hoje, lavou as roupas e as estendeu, entusiasmada que estava com o solzinho que se pôs a aparecer ainda nas primeiras horas do dia, anunciando tempo bom.
Porém, mais uma vez, levou uma rasteira do sol e as roupas estão lá, tomando chuva já faz mais de hora. Significa também que a vizinha cometeu a imprudência temerária de estender suas roupas ao ar livre em Caxias do Sul e sair de casa, sem ficar monitorando as incertezas cambiantes imprevisíveis do clima aqui na Pérola das Colônias. E deu-se mal. A essas alturas, se ela está pela cidade, ela já percebeu, de longe, que fez besteira, e que a toalha cor-de-rosa, as camisas e as calças postas para secar já estão mais encharcadas do que quando saíram da máquina de lavar. “Porcaria”, deve ter pensado a vizinha.
Na verdade, não sei se a vizinha é dada a blasfemar mentalmente quando confrontada com situações frustrantes como essa. Talvez ela não tenha pensado “porcaria”, mas, sim, “Nossa Senhora, de novo!”, algo assim, mais sutil. Afinal, nunca vi a vizinha, não sei se é jovem, se é madura, ou se uma senhora já avançada em experiências. Apenas posso imaginá-la e supor o tamanho de sua indignação. Que compartilho, porque também apronto dessas. Afinal, uma coisa que nós, caxienses (natos ou adotivos) teimamos em fazer é nos esquecermos de que moramos em Caxias do Sul. E dê-lhe roupa a ser relavada!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de janeiro de 2015)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Banho e tosa

Banho e tosa. Um verdadeiro festival, que se materializa em grande parte das residências que circundam o prédio em que moro. O fenômeno, conforme detecta a investigação que decidi aprofundar, se alastra por toda a vizinhança e, a julgar pela idoneidade da amostragem levantada, trata-se de uma verdadeira mania nacional. Um traço cultural tipicamente brasileiro, ousaria eu afirmar.
Banho e tosa de final de ano. É a isso que me refiro. Mas não, minha senhora, não se trata de levar os animaizinhos de estimação (cachorrinhos, gatinhos, cachorrões e hamsters – alguém ainda possui hamster de estimação, por sinal?) até a clínica veterinária, a fim de que sejam lavados, escovados, tosados, penteados e perfumados (alguns chegam até a serem engravatados) para se colocarem prontinhos para as celebrações de final de ano. Não, nada disso. Refiro-me aqui hoje ao banho e tosa a que são submetidas as residências brasileiras pelos seus proprietários em férias ou curtindo merecido feriadão prolongado, durante as festas de final de ano.
Se o amigo leitor e a amiga leitora ainda não tiveram a oportunidade de observar, marquem isso na agenda para prestarem atenção no findar de dezembro deste 2015 que se inicia, e verão que tenho razão. Não faltarão ao seu redor vizinhos esmerados que tirarão as escadas dos porões (ou dos sótãos, ou mandarão vir emprestada dos cunhados e primos) a fim de alcançarem telhados e o cimo das paredes, colocando mãos a obra. Quem não aproveitar a época para dar um banho de tinta na residência, alternando sua cor bege para vermelho-fogueira, vai se esmerar na lavagem das paredes e telhados, deixando a casa tinindo.

Só aqui em volta, em uma rápida olhada, detectei seis casas que foram ou lavadas ou pintadas. A tosa onde é que entra nessa história? Pois sim, madame, entra também na cortação de grama dos jardins e quintais, pois que se o vizinho já está com a mão no pincel ou no esfregão, não custa também aparar o gramado. Afinal, vale a pena um pequeno esforço para gerar a sensação de que o novo ano se inicia realmente com nova roupagem. Agora, mãos à obra novamente, que novos doze meses esperam por nós.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de janeiro de 2015)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Lembrança abalada

Memórias, lembranças e recordações me assaltam alternadamente quando ando pelas ruas de minha cidade natal, Ijuí, que costumo visitar nos finais de ano. Uma delas deixou-me, digamos, abalado. Isso porque, quando vi, minhas pernas recordantes haviam me conduzido até a frente da Fábrica de Balas Soberana, indústria cujos produtos faziam a alegria de minha infância por razões óbvias e que andou sendo revitalizada, voltando a fabricar algumas das balas que marcaram época em minha história.
O principal produto da Soberana eram as balas Póca, que a gurizada devorava aos sacos na hora do recreio. Era uma balinha quadradinha, branca, com sabor de abacaxi, e vinha envolta em uma embalagem amarela, ilustrada com a imagem de um cervo. Por que o cervo? Mistério absoluto que perdura até hoje, ninguém sabe explicar. Também, não faz diferença alguma. Adorávamos as balas Póca. A lembrança mais remota que tenho de um bisavô é ele se aproximando e tirando do bolso um punhado de balas Póca, que oferecia a mim, à minha irmã e aos meus primos. Uau, que festa!
Não havia problema algum em receber balas do bisavô, mas todas as crianças daquela época éramos instruídas pelos adultos a jamais aceitarmos balas de estranhos. Havia temor de sequestros, especialmente depois da repercussão do sumiço do menino Carlinhos, raptado aos dez anos em 1973, no Rio de Janeiro, mistério insolúvel até hoje. Agora, pensando em retrospecto, fico a pensar: tá, mas e se o estranho nos oferecesse chocolate ou pirulito? Ou um maço de figurinhas para completar nosso álbum? Ou flâmulas de nosso time? Que fazer? Eu me sentia plenamente preparado para enfrentar o estranho com uma peremptória recusa ao convite de acompanhá-lo caso ele oferecesse balas. Mas e o resto? Felizmente, o estranho nunca apareceu nas esquinas daquela minha Ijuí do passado.

Mas o que importa mesmo é que, em um mercado local, consegui adquirir, passadas décadas, um saquinho de balas Póca e meti-me a comê-las todas. O sabor de infância permanece o mesmo: inclusive com a queda de uma obturação que habitava minha boca desde aqueles tempos. Cadê o número da dentista?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de dezembro de 2014)