terça-feira, 31 de março de 2015

Feliz autor velho

Um dos mais importantes escritores vivos brasileiros completará 90 anos de idade daqui a pouco mais de mês, mais especificamente, no dia 11 de maio. Trata-se do contista e romancista mineiro Rubem Fonseca, nascido em Juiz de Fora em 1925, radicado há décadas no Rio de Janeiro, de onde vem produzindo e levando a público obras de temáticas viscerais narradas em um estilo ágil, seco, cru, inconfundível.
De sua lavra saíram livros que vêm se tornando clássicos contemporâneos ao conseguirem a proeza de agradar à crítica e serem, ao mesmo tempo, bons de venda. O pano de fundo de seus livros costuma ser permeado por elementos que unem violência urbana, miséria, degradação, erotismo, criminalidade. Ou seja, seus personagens da ficção transitam por uma realidade comum à maioria dos brasileiros reais que não leem livros, tornando-a um pouco mais real para aquela parcela dos outros brasileiros que ficam sabendo dela por meio dos noticiários. Rubem Fonseca é o autor dos anti-heróis e conquistou relevância no cenário literário nacional exercitando prioritariamente o gênero conto, no qual enfileira diversos de seus mais afamados títulos.
Lembro dele nessa intersecção entre o findar do mês de março e o iniciar de abril porque, até algumas décadas atrás, nessa época, quando ainda vivíamos sob uma ditadura militar aqui no Brasil, os quartéis impunham a todas as instituições nacionais que se comemorasse aquilo que eles chamavam de “revolução de 1964” e que todos sabíamos que havia sido mesmo era um golpe de estado. Vivíamos um regime de exceção pontuado por totalitarismo, fim das liberdades democráticas, censura, tortura, corrupção e coisas assim. Foi nesse cenário que, em 1975, 40 anos atrás, Rubem Fonseca publicou um de seus mais importantes livros de contos, intitulado “Feliz Ano Velho”, que acabou censurado e impedido de circular pela ditadura. Os ditadores não queriam que o público lesse narrativas em que houvesse violência, criminalidade e sexo, porque no Brasil inventado pela ditadura essas coisas não podiam existiam. Só que existiam.

Tapar o sol com a peneira e optar pela cegueira nunca foi e nunca será a solução para os problemas que existem. Felizmente, sempre haverá aqueles, como Rubem Fonseca, que insistem em furar a peneira do conformismo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de março de 2015) 

segunda-feira, 30 de março de 2015

Não voltaremos

A notícia mais triste da semana que passou, para mim, foi a informação de que o famoso chef de cozinha gaúcho, o apresentador José Antônio Gomes Pinheiro Machado, mais conhecido como Anonymus Gourmet, decidiu aposentar o personagem cozinheiro que há vinte anos vinha revolucionando a cozinha dos gaúchos com seus programas de televisão em que a criatividade e a simplicidade dos ingredientes davam o tom para o surgimento de sabores e delícias nas cozinhas das pessoas comuns.
Este sábado que passou marcou a transmissão de seu último programa pela TVCom, sendo que agora ele se aposenta dessa atividade para se dedicar mais à esposa e ao término da escrita de um livro. Nada contra a decisão pessoal do Anonymus, afinal, aos 65 anos de idade, ele tem todo o direito de decidir reorientar sua agenda de atividades, especialmente tendo dedicado tanto de si, de seu talento, de seu conhecimento e de sua cultura, a ofertar receitas e modos de fazer com tanta simpatia e bom humor ao longo de tanto tempo. Fez muito, não só nessa área, e continuará fazendo. Porém, ele e seu sobrinho/ajudante Alarico não cumprirão mais a promessa de “voltaremos”, com a qual sempre encerravam todos os programas. Pena.
Pena porque é algo de bom que havia na programação televisiva que se fecha, empobrecendo os passeios que eu fazia sentado no sofá defronte à tevê, controle remoto na mão, a zapear para cima e para baixo. Aparecia Anonymus na tela, as panelas fumegando, o Alarico ajudando, a elegante trilha sonora ao fundo, e eu parava ali mesmo. Muito aprendi em termos de cozinha observando seus programas.

Certa vez, caminhando com minha esposa no final de uma manhã de domingo pelas ruas do bairro Menino Deus, em Porto Alegre, em busca de um lugar para almoçar, vimos o Anonymus cruzar com algumas pessoas pela nossa frente na calçada e dirigir-se, resoluto, a uma churrascaria de aspecto simplicíssimo, ali do lado. Fomos atrás e acabamos descobrindo aquela que elegemos até hoje a melhor churrascaria do mundo (entre as que conhecemos, naturalmente). A dica dele foi sua própria atitude, ensinando pelo exemplo, como sempre fazem os grandes. Bom descanso nessa nova fase, Anonymus. E se quiser, volte sempre!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de março de 2015)

domingo, 29 de março de 2015

Gosto não se discute

Eu gosto de sopa no verão e de sorvete no inverno. Gosto também de comer salada como se fosse sobremesa, após ter terminado a refeição principal. E aí, refugo a sobremesa, que é algo que vou comer (isso se e quando for comer) no meio da tarde, com as papilas gustativas já distanciadas em horas dos sabores degustados durante o almoço. Gosto também de comer maionese de batata misturada ao feijão. Nhamm! Ah, e quando tem, como pedaço de pizza fria no café da manhã. Verdade.
Como isso, minha senhora? Isso o que, disso tudo que eu disse? Ah, a coisa da pizza fria matinal? Então, explico. Isso da pizza fria no café da manhã não acontece sempre. Só de vez em quando. Isso porque eu também tenho o costume de, quando vou jantar em um restaurante, pedir ao garçom para embrulhar as sobras, para levar. Pizza em restaurante eu prefiro a la carte ao invés de rodízio e, assim, acaba sempre sobrando um ou dois pedaços daquela maravilhosa pizza portuguesa, ou de atum. Eu levo e traço o pedaço na manhã do dia seguinte, sacado direto da geladeira para a mesa do café da manhã, junto a uma xícara de café com leite.
E não gosto de leite. Não gosto de leite, mas tomo café com leite de manhã, quase todos os dias. E lá de vez em quando tomo um copão de leite gelado no meio da tarde, para empurrar junto um pedaço de bolo, quando tem bolo em casa, o que é pra lá de raro. E se dá na telha, faço um copo de leite com achocolatado e tomo. Só que não gosto de leite, dá para entender? É, nem eu. Durante os dias da semana, nas refeições, costumo tomar água. Água sem gás. Isso ou chá gelado. Chá de pêssego, de marcela, de boldo, do que quer que a esposa tenha produzido no dia. Tomo.
E tem outra. Gosto de pão com manteiga, mel e uma fatia de queijo por cima. Nessa ordem: o pão, a manteiga, o mel e o queijo. A manteiga tem a função de tapar os buraquinhos do pão e impedir que o mel escorra, veja bem, tem lógica nessas coisas. E o queijo, bem, o queijo porque sim. E adoro comer pão com banana. É, pão e banana. Especialmente pãozinho d´água, com uma banana dentro. Experimente. Não? E que tal o mesmo pãozinho com uma barrinha de chocolate dentro? Delícia!

Fora isso, sou bem tradicional.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2015)

sexta-feira, 27 de março de 2015

Respeitável público

A data de 27 de março é reservada para celebrar, no Brasil, o Dia do Circo, essa arte mambembe que me parece andar meio em extinção por não conseguir se impor em termos de atratividade frente à concorrência desleal concretizada pelos aparelhos eletrônicos e pela vida virtual que dão as tintas para o universo infantil deste início de novo milênio. Eu, que sou um ser de eras passadas, que ainda faz coisas como ler livros, ficar sentado em bancos de praças, conversar cara a cara com as pessoas, reservar momentos de cultivo ao silêncio, ainda guardo na lembrança uma relação vívida com os espetáculos circenses, quando a cidade de lona começava a ser erguida no alto do morro, lá em Ijuí, inundando minha alma de expectativas para o final de semana.
Ijuí, naquelas décadas de minha infância (anos 70 e 80), foi brindada algumas vezes com o suprassumo circense da época no Brasil: o Circo Orlando Orfei, comandando pelo italiano que lhe dava nome, aqui radicado. Minha casa ficava a cerca de 300 metros do local destinado à instalação dos circos, e lembro até hoje de adormecer em meu quarto escutando ao longe o rugir dos tigres e leões e o bramir dos elefantes. Era um tempo em que animais selvagens eram permitidos no picadeiro e meus olhos infantis se deslumbravam com o destemor dos domadores na jaula dos leões fazendo aquelas feras pularem, dançarem, empilharem-se umas sobre as outras. O elefante chutava bola; cachorrinhos jogavam uma partida de futebol; o mágico tirava pombas da cartola; as trapezistas (lindas, esguias, as primeiras a povoarem meus sonhos adolescentes) voando perigosamente no ar; os malabaristas; a voracidade do engolidor de espadas e de fogo; o equilibrista na corda-bamba; o ronco infernal das motocicletas envenenadas dentro do globo da morte; a insanidade ingênua dos palhaços; a pipoca, a maçã do amor, o algodão-doce.

Tudo isso ficou para trás junto com a infância. No final dos anos 1990, já editor de Variedades do jornal Pioneiro, tive o privilégio de entrevistar Orlando Orfei quando esteve em Caxias com seu circo, aquele meu ídolo da infância. Hoje, aos 93 anos de idade, sei que segue vivo e aposentado, no interior do Rio de Janeiro. Não deve ter noção do número de crianças que fez felizes nesse país ao longo de sua longa vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de março de 2015)

quinta-feira, 26 de março de 2015

Um coração de pedra

A culpa toda é do coração duro e frio de Estela, que se recusa a amar e desdenha a quem por ela professe amores. Estela, tão bela, tão encantadora e, ao mesmo tempo, tão terrível, com sua indiferença atroz, seu olhar de geleira que não se comove um pingo sequer frente às mais devotadas e fervorosas intenções de Pip, o apaixonado Pip, o desventurado Pip, que tanto a ama.
Ah, Estela, você não merece a vastidão desse amor, que tão poeticamente se traduz na súbita declaração desesperada de Pip: “Esquecer você? Você é parte da minha existência, parte de mim mesmo. Você estava em cada verso que eu li, desde que aqui vim pela primeira vez, aquele garoto rude e comum que você, já naquela época, magoava tanto. Você, desde aquela época, esteve em todas as minhas perspectivas... no rio, nas velas dos navios, no brejo, nas nuvens, na luz, na escuridão, no vento, nos bosques, no mar, nas ruas. Você foi a encarnação de todas as fantasias bonitas do meu pensamento. As pedras que formam os edifícios mais fortes de Londres não são mais reais, ou mais impossíveis de serem deslocadas pelas suas mãos, do que sua presença e influência em mim, em todo lugar, para sempre. Estela, até a hora em que eu morrer, você não tem escolha. Você vai ser parte do meu caráter, parte do pouco que há de bom em mim, e do que há de mal. Mas, ao nos separarmos, eu sempre irei associá-la com o bem, e é assim, com toda a lealdade, que sempre pensarei em você, pois você foi, para mim, mais um alento do que um desalento, e agora deixe que eu sinta toda a minha dor. Que Deus a abençoe! Que Deus a perdoe!”.
Barbaridade, Estela! E nem assim, hein, Estela? Puxa vida! Fechei o livro depois desse arrebatador golpe de alta literatura proveniente da pena de Charles Dickens (1812 – 1870) nas páginas de “Grandes Esperanças” e recostei a cabeça no espaldar do sofá da sala, já altas horas da noite, para refletir sobre as inconstâncias do amor e as motivações tão humanas dos personagens. Meus olhos passearam pelo teto da sala e repousaram sobre o lustre... Minado de pontinhos pretos! Puxa, o lustre da sala, repleto de insetos mortos em seu interior! Melhor seria nem ter visto. Amanhã terei de tirá-lo e limpá-lo. Arre! Tudo culpa desse coração de pedra de Estela!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de março de 2015)

quarta-feira, 25 de março de 2015

Uma corrida começando

Meu avô pontua a passagem de seus aniversários com a construção de uma imagem muito particular. “Completei mais uma volta ao redor do Sol a bordo do planeta Terra”, diz ele, a cada mês de setembro, no dia em que faz anos. Firme nessa maratona da vida, daqui a alguns meses, portanto, completará a sua 92ª volta. Entre as pessoas das minhas relações, ele é uma das que andam nas primeiras fileiras dessa corrida contínua, lutando pela pole position. De qualquer forma, já tem assegurado lugar no pódio da longevidade, da sabedoria, do acúmulo de experiências e de histórias a contar.
Eu também sigo a minha corrida particular, muitas voltas atrás dele, procurando me manter a passo firme e ritmado, para não correr o risco de acabar ficando para trás e ser ultrapassado como retardatário. A imagem da corrida, ou da maratona contínua, usada para fazer referência à vida, a esse somatório de dias, horas e minutos que vamos acumulando para a construção de nossas histórias pessoais, acho que funciona bem e vem a calhar mesmo. Especialmente nesses tempos modernos, em que é comum usarmos a expressão “correria” para aludirmos ao nosso cotidiano atribulado. “Oi, como vai você?”, perguntamos, prontos para receber do interlocutor a resposta-padrão: “Naquela correria de sempre”.
E corremos todos, sem exceções, já que a agenda lotada de compromissos não é mais um privilégio dos altos executivos das bolsas de valores. A fim de garantirmos um mínimo de valores em nossas próprias bolsas, precisamos, sim, correr todos. E corre a dona-de-casa e corre a executiva; e corre o trabalhador e correm seus filhos; e correm os aposentados e a turma da terceira idade; corre o bancário, o professor, o empresário, o estudante, o jovem, o maduro. Periga até o Rubinho Barrichelo andar correndo, agora que abandonou a Fórmula-1, e isso é maldade minha, claro, eu não iria resistir por muito tempo sem uma dessas.

Até meu afilhado de quase três anos de idade já corre. Ao me ver, coloca-se em posição de largada e anuncia: “Dindo, uma corrida está começando”, e se bota a correr corredor afora com as perninhas fazendo poeira ao dindo velho que vem resfolegando atrás, perdendo sempre todas as corridas que ele anuncia. Não dá para competir com quem está com todo o gás rumo à sua recém terceira volta em torno do Sol...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de março de 2015)

terça-feira, 24 de março de 2015

Haja nuvens

Precisamos ser mais humildes em relação à importância que conferimos a nós mesmos enquanto seres individuais e enquanto espécie. Humildade significa consciência a respeito do nosso real valor e significado perante a existência, e maior consciência representa libertação interior, tolerância e mais capacitação para aprimorar a convivência com nossos iguais. A humildade pode ser o mais eficaz instrumento de promoção da cidadania de que a civilização humana já dispôs.
Nós, seres humanos, temos tendência a cultivar uma autoimagem estratosfericamente positiva a respeito de nós mesmos. Achamo-nos os donos do pedaço e cremos ser plausível a crença de que somos imortais ou qualquer outra coisa semelhante que a providência providencialmente providenciou para nós.
Alta autoestima, claro, não faz mal a ninguém. Porém, prepotência crônica pode levar à autodestruição. Segundo estimativas feitas pelo Population Reference Bureau, uma agência americana especializada em pesquisas sobre questões populacionais, desde o surgimento da raça humana até os dias de hoje, já viveram cerca de 107 bilhões de pessoas sobre a Terra. Somados à atual população vivente de 7 bilhões, chegamos ao número de 114 bilhões de seres humanos já produzidos no planeta. É gente, hein?
E cabe tudo isso no céu, pergunto eu? 107 bilhões de pessoas se acotovelando lá entre as nuvens, engarrafando, sujando e tumultuando o paraíso? Sem falar que, desses 107 bilhões de seres, quantos deles deixaram algum sinal relativo à sua passagem pela vida? A mais absoluta maioria (99,999999%, talvez) nasceu, viveu, sofreu, sonhou e morreu sem imprimir nenhuma marca na História. Seus corpos viraram pó e sua lembrança virou fumaça. Dá no que pensar, não é mesmo?

Para mim, isso tudo funciona como um bálsamo. Ciente de minha insignificância e de minha inegociável finitude, procuro aproveitar o milagre que me foi concedido e viver uma vida o mais plena possível, valorizando-a ao máximo e também a de meus semelhantes, companheiros de inexplicável aventura, respeitando-os de forma cidadã. Deveria bastar essa percepção para que o mundo fosse um lugar mais agradável e tolerante para vivermos essa tão curta, única e instigante experiência que é a vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de março de 2015) 

segunda-feira, 23 de março de 2015

Eles lá, nós cá

Um dos piores defeitos de fabricação do ser humano é a sua tendência à passividade. Gostamos que façam as coisas pela gente; preferimos delegar compromissos e atribuições a fazermos por conta própria o mundo andar como de fato desejaríamos. É por isso que precisamos tanto de líderes, sejam eles quem forem, desde que demonstrem possuir disposição para administrar os poderes, as tarefas e as atribuições que entregamos a eles.
 Liderar um grupo, uma comunidade, um povo, uma nação, requer, além das características acima expostas, também certa dose de abnegação, que se traduz pela disposição em ceder seu próprio tempo, seu próprio suor, seu próprio ser, em favor do fardo de assumir a frente de demandas comuns outorgadas por aqueles que depositam sua fé na atuação desse líder para a resolução de seus problemas. É assim que vemos surgirem e se perpetuarem as lideranças e não me parece que somos muito exigentes quanto à necessidade de detectarmos nos perfis de nossos líderes a manifestação de atributos como honestidade, moral, ética, confiabilidade, coerência, abnegação, disponibilidade, senso de justiça. Desde que liderem, desde que assumam a frente, enfrentem os compromissos e tomem as decisões, para nós, está bom, porque assim podemos seguir vivendo nossas vidinhas sem nos incomodarmos com nada.
Gostamos de nos fazer de indignados com a corrupção que corre solta pelo país; gostamos de latir e esbravejar, mas jamais ousamos morder de verdade. Odiamos os maus políticos, mas continuamos elegendo-os, afinal, nós, que somos honestos, é que não temos disposição para irmos lá tentar mudar as coisas. Perceber que as coisas não estão indo bem é um passo importante para que se possa ter esperança de que a situação venha a mudar para melhor. Saber que as coisas vão mal, resmungar pelos cantos e não tomar atitudes, porém, é uma postura que belisca perigosamente a fronteira da conivência. Saber e nada fazer pode ser uma decisão que garanta tranquilidade e conforto momentâneos, mas o preço que essa postura cobrará no futuro pode ser alto demais para a sua consciência. Está na hora de pensarmos seriamente sobre qual é o tipo de líderes que de fato queremos e arregaçarmos as mangas em favor deles desde já.

 (Crônica publicadano jornal Pioneiro em 23 de março de 2015)

O outono da poetisa

Convido o leitor e a leitora a embarcarem comigo em uma máquina do tempo que vai nos transportar para esta mesma data de 21 de março, porém, 96 anos atrás. A viagem é segura e seremos apenas observadores invisíveis e privilegiados de fatos da vida comum que, ao final, ganharão significado histórico e simbólico, pois concorreram para o surgimento de um mito. Todos a bordo? Vamos lá!
Os instrumentos de nossa máquina do tempo estão ajustados para nos desembarcar aqui na região mesmo, na Criúva de 1919, hoje distrito de Caxias do Sul, mas, naquela época, pertencente ao município de São Francisco de Paula. É domingo e o silêncio típico que envolve o pequeno povoado só é quebrado pelo suave barulho que uma leve brisa provoca ao passar pelas folhas das árvores nesta entrada de outono. Em uma casa na Linha Boqueirão, afastada alguns quilômetros do centro da vila, o final da tarde fica agitado devido aos espasmos finais de uma bela e frágil moça de 26 anos incompletos, que agoniza em seu leito de morte devido à tuberculose que há anos a maltrata. Ela tosse, percebe que está no fim, diz suas palavras finais, morre e entra para a história da literatura caxiense e porto-alegrense. Seu nome é Vivita Cartier.
Dali em diante, os outonos em Criúva não mais veriam a jovem poetisa tuberculosa, que se vestia de branco, a circular pela região costurando de volta nos galhos as folhas das árvores, em um ato simbólico de preservação da vida, essa mesma vida que se esvaía a cada nova tossida a lhe sacudir o peito. Mesmo assim, ela segue sepultada até hoje em Criúva, no cemitério de Pontão, em um túmulo adornado com flores por moradores que se esforçam em manter viva a sua memória. Vivita é patrona da cadeira 11 da Academia Caxiense de Letras e da cadeira 21 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. Deixou poemas esparsos em jornais e revistas da época e nunca publicou livro.

Sua vida e a de seus parentes diretos, no entanto, foram repletas de poesia, romance, ação, aventura e tragédia. Elementos que vão se eternizar em livro na biografia que este cronista está escrevendo, a ser publicada em breve. Nossa máquina do tempo nos traz de volta ao outono deste 2015, com a certeza de que a vida se eterniza no cultivo da memória, como folhas caídas recosturadas nos galhos das árvores, como fazia a poetisa. (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de março de 2015)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Because I´m happy

Bom dia, amigo leitor, amiga leitora! Muito bom dia, mesmo! Espero que tenha uma sexta-feira agradável, seja ela vivenciada a maior parte de seu dia no trabalho ou em casa, ou onde quer que seja. Se por ventura estiver lendo esta crônica à tarde, depois do almoço, então, boa tarde! Que lhe seja favorável todo o restante de seu dia! E caso esteja a ler-me à noite, após mais um dia de trabalho intenso, antes de encerrar a semana, boa noite! Que sua noite lhe seja benfazeja! Em resumo: feliz Dia Internacional da Felicidade!
O que, madame? Que negócio é esse de Dia Internacional da Felicidade? Ah, pois então a senhora não sabe? Deixa, pois, que eu lhe conto. Sabe a ONU, né, a Organização das Nações Unidas? Pois então: a ONU instituiu, desde 2012 (recente a coisa, verdade, taí a razão pela qual a senhora ainda não sabia), o dia 20 de março como o Dia Internacional da Felicidade, como uma maneira de chamar a atenção dos povos do mundo e de seus governantes para a questão do bem-estar e da alegria pessoal da população mundial como um fator fundamental para a existência humana de forma plena. O que se quer dizer é que ser feliz é um direito a ser exigido por cada cidadão do planeta, assim como o direito à vida, à justiça, à paz, à igualdade, à dignidade, à liberdade, à expressão, à saúde, à educação, à segurança, ao trabalho, à moradia, isso tudo. Temos o direito de exigirmos sermos felizes.
O que faz você feliz? Claro que a resposta para isso é individual e intransferível, mas o fundamental aqui é perceber que o desafio proposto é que se busque constantemente a criação de condições e de ambientes que propiciem às pessoas o florescimento da felicidade. É mais fácil ser feliz em um país em que não haja corrupção, em que haja educação para todos, em que haja justiça, em que os políticos atuem apenas e tão-somente em benefício da sociedade, em que os cidadãos sigam as regras cotidianas de respeito e convivência, coisas assim, não é mesmo?

Para pontuar a data este ano, a ONU lançou uma campanha para que as pessoas elenquem quais são as dez músicas que mais as deixam felizes. Que cada um faça seu set list pessoal e ponha-se a escutá-las nesse Dia Internacional da Felicidade. As minhas já estão rodando aqui em casa desde cedo. Tenham um bom dia!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de março de 2015)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Um brinde à boa notícia

Quem diz que a imprensa só traz notícias ruins é porque ou não saber ler jornal e assistir aos telejornais ou viciou no uso de filtros que só relevam os fatos negativos. Mas as notícias boas existem, sim, e não só isso: elas são maioria. Digo e afirmo e desafio quem quiser a pagar para ver.
Ontem, por exemplo, fiquei surpreso e feliz ao ler, pela manhã, a principal notícia que encabeçava o site do jornal Pioneiro: “Nenhum condutor é flagrado sob efeito de álcool durante blitz em Caxias do Sul”. Dos 43 veículos abordados entre as 20h e as 23h na Avenida Rubem Bento Alves, segunda-feira, nenhum era conduzido por motorista que havia ingerido álcool. Quer notícia melhor do que essa? Notícia boa, e sob diversos aspectos. Primeiro, que as blitze de trânsito, realizadas em parceria entre Brigada Militar, Fiscalização Municipal de Trânsito, Guarda Municipal, Polícia Rodoviária Estadual, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Civil, se transformaram em uma ação constante no cenário urbano de Caxias do Sul. Segundo, e o melhor de tudo, parece que vem dando resultado e a conscientização dos motoristas começa a se consolidar.
Desde que foi instituída a Lei Seca no trânsito do país e as polícias foram aparelhadas com os medidores de graduação alcoólica, as autoridades de Caxias do Sul adotaram uma atitude firme e perene em relação ao tema, e não têm “frouxado a corda”,  transformando as blitze em ação corriqueira e continuada nas ruas e avenidas da segunda maior cidade do Rio Grande do Sul. Que bom. Sorte a nossa que está sendo assim, e espero que assim continue. Faço votos de que realmente a imprensa local continue, devido a ações como essa, sendo municiada de fatos positivos e vitais como a inexistência de motoristas dirigindo sob o efeito de álcool pelas vias de nossa cidade, preservando a vida, a saúde e a integridade física de toda uma comunidade.

Jornalista é cidadão e tem prazer em publicar notícia boa. Da mesma forma como os policiais e fiscais envolvidos na blitz de segunda-feira devem ter voltado para suas casas satisfeitos após uma ação em que não tiveram de flagrar nenhum bêbado inconsequente atrás do volante. Nem tudo está perdido.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de março de 2015)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Sinais da decadência

Ao longo dos séculos em que manifestou seu auge e esplendor, o Império Romano ditou as regras de conduta em boa parte do mundo conhecido de sua época, subjugando diversos povos ao poder que vinha da Roma dos césares. Mas, devido a uma complexa conjunção de fatores, sobre os quais até hoje os historiadores se debruçam para tentar compreender, teve início um longo processo de decadência que resultou na extinção não só do poder de Roma, como também da língua que eles falavam, de seus deuses e da maioria de suas crenças e costumes. Ou seja: a decadência, quando pega, produz terra arrasada mesmo. É preciso tomar cuidado.
Frente a isso, eu me pergunto se estamos conseguindo detectar os sinais que podem indicar o início do processo de decadência da sociedade em que vivemos. Eu, pra variar, fico achando pelo em ovo e colecionando pistas a cada vez que acordo e vou para a vida neste mundo em que estamos inseridos (e ajudando a construir). Um dos sinais da decadência de nossa era - essa nossa era da exposição pessoal gratuita a qualquer preço – são os programas de televisão classificados como “reality shows”, nos quais um grupo de jurados, composto por nomes consagrados em determinada área (chefs de cozinha, cantores, designers de moda etc), avalia as performances de um grupo de amadores cujo sonho é justamente se destacar naquela atividade à qual se dedicam como passatempo. Quem não sonharia em ser um cozinheiro aplaudido, um cantor famoso, uma designer de moda aclamada?

Até aí, tudo muito bem. O que não entendo é a razão pela qual a fórmula desses programas tenha de se sustentar no ato de os jurados humilharem sem dó nem piedade os esforços dos participantes. Onde está a graça nisso? “Esse seu prato está um lixo fedorento”, berra o renomado chef para o aprendiz, filmado ali com cara de tacho. “Você canta igual a um porco na hora do abate”, diz a cantora famosa para o rapazinho trêmulo agarrado ao microfone. Divertido, não é mesmo? Sim, provavelmente, muito engraçado, haja vista a audiência. “O tempora, o mores” (“ó tempos, ó costumes”), diria um observador de nossa era, no futuro, resgatando a sapiência contida na língua morta de outro povo que iniciou sua decadência a partir dos hábitos do cotidiano.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de março de 2015)

segunda-feira, 2 de março de 2015

No mundo dos insetos

Será o meu mel que ela busca aqui no alto do décimo-primeiro andar do prédio em que moro? Ela, não: elas, pois são mais de uma. Essa aqui, de hoje de manhã cedinho, fica dando espiadelas no meu dedilhar o teclado do computador já às sete e meia. Põe-se a voejar freneticamente quase sem sair do lugar do lado de fora e chama a minha atenção sempre que dá batidinhas de leve no vidro.
Estivesse o vidro aberto, ela já teria entrado, essa abelha, a exemplo daquela que ontem de tarde invadiu a sala a partir da porta que dá para o terraço. Irmã desta, prima, colega de trabalho, ou, quem sabe até, ela mesma, a própria, que segue hoje aqui, a me fazer companhia. Uma abelha-leitora, quem sabe? Interessada em acompanhar in loco o processo de produção de meus textos e depois levar notícias de mim para as companheiras operárias da colmeia? Extraio o mel de sua singela visita, repleta de poesia - dessa poesia que reside no fato de ser visitado no alto do décimo-primeiro andar de um prédio de concreto por uma pequena abelha.
Dia desses, minha esposa, sentada no sofá, à noite, descansando após mais um dia de rotina extenuante, foi surpreendida pela coceirinha que faz na pele do braço o caminhar de uma doce joaninha. Uma joaninha cor-de-laranja repleta de brotoejas pretas, que também surgiu ali, àquelas horas, sabe-se lá vinda de onde. É a natureza que se esforça em se fazer presente em meio ao avanço do cimento, resistindo ao processo de expulsar pequenos seres para longe e para os baús da memória afetiva de cada um de nós.

E foi exatamente na tentativa de resgatar um pouco da memória de tempos recém-passados, em que o contato com os pequenos seres insetais da natureza era mais comum no dia-a-dia das crianças que já fomos, que o artista plástico Antonio Giacomin e eu concebemos o livro “Insetolândia: Uma Viagem ao Redor do Quintal”, repleto de aquarelas (dele) e croniquetas (minhas) sobre as nuances de vinte desses bichinhos. O lançamento e a sessão de autógrafos ocorrem neste sábado, dia 28, lá na Livraria e Café do Arco da Velha (Rua Dr. Montaury, 1.570), em Caxias do Sul, das 10h até as 13h. Estão todos convidados a dar uma passadinha lá. Não sabe onde fica? Pergunte a qualquer formiga na esquina...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de fevereiro de 2015)