quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

As mil e uma paixões

Pode ser simbólico ou mesmo metafórico que na crônica de ontem o tema abordado tenha sido as nuances que movem a paixão. A paixão e seus mistérios, como a que ocorreu com Jandira e Zé, personagens do filme “Alguém Qualquer” (de Tristan Aronovich, Brasil, 2012), e que serviu de pano de fundo para tratar do texto de ontem, é um tema que se pode considerar à altura de pontuar a milésima crônica de um cronista mundano.
Sim, porque ontem, estimada leitora, prezado leitor, este mundano cronista atingiu a marca das mil crônicas publicadas em sua carreira, tergiversando, vejam só, sobre a paixão, esse inescrutável sentimento que move boa parte das ações humanas. Não poderia mesmo haver tema mais abrangente, vital e humano como a paixão para marcar o milenar aniversário, pois não? Claro que sim, porque são os frutos da paixão que o cronista irá colher para alimentar as linhas dos textos que precisa produzir com a intenção de esquadrinhar as nuances da existência e oferecê-las em forma de banquete escrito ao paladar dos leitores. Pois que é a paixão de um cineasta que produz o filme abordado na crônica; é a paixão do escritor que concebe o livro; é a paixão do líder que transforma a história; é a paixão de um povo que altera o rumo de uma nação; é a paixão de um anônimo que gera a notícia; é a paixão da Natureza que cria a borboleta e assim por diante.
Mil vezes, até ontem, essas grandes e pequenas paixões motivaram este esforçado cronista a compartilhar seus encantamentos com os leitores, nestas e em outras páginas ao longo dos anos. Hoje, compartilha sua milésima primeira, sucumbindo lucidamente à tentação de evocar a carga simbólica do número 1001, que conduz ao conceito de infinito, tal qual expresso no título das “Mil e Uma Noites”, dando a entender que, se mil já retrata o imensurável, acrescente-se a ele ainda um a mais, e sempre mais um, e mais um e...

Mil e uma crônicas não significa obter um passaporte para o infinito. O mundano cronista sabe que tudo na vida é cíclico, passageiro e finito. Mas é justamente na compreensão dessa finitude que reside a força de paixão necessária para darmos sequência a todos os nossos projetos, visando, sim, ao empreendê-los, a infinitude de seu alcance e de suas consequências. Que a vida de cada um possa ser movida por mil paixões e mais uma.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de dezembro de 2015)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A paixão de Jandira

Jandira é uma moça bonita, jovem, ingênua e pobre que se despenca do Nordeste para São Paulo na intenção de concretizar o sonho de virar atriz de novela e, assim, ser alguém na vida. Na cidade, é acolhida na periferia na modesta casinha de Zé, um primo um pouco mais velho, solteirão, ingênuo como ela, caladão, esquisito, que trabalha duro como faxineiro e faz-tudo em um condomínio e, nas horas vagas, habilmente produz artigos de palha trançada. Gentil, Zé deixa a moça ir ficando enquanto mantém inalterada sua rotina e seu foco no serviço e nas tranças de palha.
Mas um dia, Zé passa mal. É levado ao hospital e, lá, descobre-se que sofre do mesmo problema que matou prematuramente tanto seu pai quanto sua mãe: tem coração fraco e os médicos lhe dão somente mais seis meses de vida. Zé se conforma com o fato ao relatá-lo à prima: “é a vontade de Deus, né, Jandira; foi como meu pai e minha mãe; é a vontade de Deus”. Jandira, no entanto, não se conforma com o conformismo letal de Zé e, dentro de suas limitadas possibilidades, decide que aqueles seis meses deverão se transformar em seis décadas de vida para Zé. Ele tem algum sonho que deseja ver realizado? Não, ele não tem, ele precisa apenas seguir cumprindo seus deveres no serviço. Ele tem algum lugar que deseja conhecer, tipo a praia? Não, ele não tem, e nunca foi à praia porque “nunca precisou”.
Mas Jandira não se dá por vencida. Ela arrebanha a ajuda dos colegas do salão de beleza em que trabalha e vai à luta. Nos sábados, a turma leva Zé ao zoológico, ao baile, faz churrasquinho na laje, toma um vinho, assiste tevê na sala comendo pipoca, essas coisas. Zé aprecia os esforços de Jandira e Jandira se apaixona pelo Zé. Quando abre o coração aos amigos do salão, vira inicialmente alvo de chacota da turma, por estar apaixonada “pelo lentinho”. Aí vem uma das melhores cenas de “Alguém Qualquer” (Brasil, 2012), filme de Tristan Aronovich, estrelado pelo próprio e por Amanda Maya. Apaixonada e amargurada pela forma (aparentemente) indiferente com que Zé reage ao sentimento, Jandira chora no salão e rebate o espanto e escárnio dos amigos dizendo que não tem culpa por se apaixonar pelo Zé, esquisito, “lentinho”, caladão.

Ela não tem culpa, ela se apaixonou por ele do jeito como ele é. E assume e tenta vivenciar o sentimento da melhor forma que a vida lhe propicia. Uma das lições do filme está aí. Há outras. Recomendo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de dezembro de 2015)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Coleção de estrelinhas

Fazendo um cálculo por alto, baseado tão-somente na lembrança remota (a lembrança não é uma ferramenta das mais calibradas para fornecer dados precisos sobre os fatos do passado), eu poderia afirmar que, a cada trinta vezes, ganho uma estrelinha. Analisado assim friamente e levando-se em conta apenas a crueza dos números, o estimado leitor e a valorosa leitora poderão sucumbir à tentação de achar que minha performance é sofrível. Mas não, e explico por quê.
Conquistar uma estrelinha a cada conjunto de cerca de trinta crônicas pode ser considerado uma atuação até que regular. Bom mesmo seria conseguir uma estrelinha a cada quinze textos, mas para isso as condições deveriam ser outras, que não as de um colaborador externo que produz seus escritos em seu próprio escritório e os envia para a diagramação do jornal por e-mail, como é o caso no qual me enquadro. À distância, obedeço ao preceito estabelecido de que os textos precisam ter determinado número de caracteres e meto-lhe os dedos ao teclado diariamente, vergado ao desafio de cronicar mundanamente a existência, conforme bem sabem a estimada leitora e o leitor, prezado.
Mas nem sempre o texto entra redondinho dentro do espaço físico da página ao qual é predestinado. Às vezes, quer dizer, quase sempre, se fazem necessários alguns ajustes de sintonia fina provenientes do ofício dos diagramadores. E quando encaixa feito luva de seda em mão de fada, como tampinha em gargalo de garrafa long-neck, uma em cada trinta vezes, ganho estrelinha da Márcia, a diagramadora detentora do saquinho de estrelinhas para colunistas externos. Não sei qual a performance de estrelinhas do Gilmar Marcílio e do Frei Jaime, colegas de desafio escritural. Mas sei que, quando ganho as minhas, fico faceiro e meu céu autoral se ilumina.

Se eu fosse um cronista melhor constelado, poderia tecer uma ligação metafórica entre o ato de ganhar estrelinhas da diagramadora e o sentido da vida, que pode ser descrito como uma constante busca por estrelinhas nas mais variadas esferas de nossas performances vitais: como pais, como filhos, como companheiros (as), como profissionais, como cidadãos, como amigos, como eleitores, como motoristas... Mas deixo isso para os leitores, tão bem estrelados na arte de decifrar estas crônicas mundanas (extenso como está, este texto não ganhará estrelinha da diagramadora; quanto ao conteúdo, cabe aos estimados e às prezadas).
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de dezembro de 2015)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Amigo ganso

José Sadi tem 59 anos, é aposentado e mora em Capão da Canoa. Até aí, nada de mais. Porém, José Sadi virou notícia neste final de ano porque vem se transformando na sensação da praia quando faz seus passeios pela orla acompanhado de seu animal de estimação pouco usual: um ganso. José Sadi passeia com o ganso a seu lado, de coleirinha e tudo, faceiros os dois pela companhia que fazem um ao outro. E chamam a atenção a ponto de virarem notícia.
Ah, sim, madame, a senhora tem razão, eu estava esquecendo de uma informação vital para a compreensão dessa história. Claro que o ganso tem nome, afinal, curioso mesmo seria alguém possuir um animal de estimação, mesmo que ganso, sem dar-lhe nome, aí, sim. Keiti é o nome do ganso. Ou será gansa? Keiti é nome de ganso ou de gansa, madame? Que sabe a senhora? Pois que sei eu também, que nada manjo de gansices. E como é que se sabe se o ganso é ganso ou gansa? Ah, sim, a senhora tem razão de novo: se botar ovo, é gansa. Dizem as notícias que Keiti já tem um ano e, portanto, creio que já deve ter botado um que outro ovo, se for fêmea. Mas isso também pouco importa.
O que importa de verdade é que minha atenção foi despertada não exatamente por ver a foto de Keiti, o (a) ganso (gansa) andando de coleirinha ao lado de José Sadi, como se fosse estapafúrdia a determinação de alguém eleger um ganso como animal de estimação. Mas, sim, o que me surpreendeu foi a surpresa das pessoas, arraigadas, em sua maioria, aos seus imutáveis conceitos pré-estabelecidos, que as induzem a aceitar somente gatos, cachorros, cavalos, passarinhos e peixinhos de aquário como passíveis de estima. Daí um ganso na coleirinha passa a ser visto com estranheza.

Ora, mas se Keiti consegue estabelecer com José Sadi uma sadia relação de estima, qual o problema nisso? Onde a estranheza? Cada um cultiva as amizades que bem entende, e ninguém tem nada a ver com isso. Se você se acha no direito de me jugar a partir daqueles com quem ando, cuidado: tenho o direito de fazer o mesmo em relação a você, a partir, claro, de meus parâmetros e conceitos. José Sadi que passeie o quanto quiser com o ganso Keiti na coleirinha à beira da praia, para mim, está tudo ótimo. Afinal, antes de julgar com quem os outros andam, prefiro me cercar de quem me faz bem e ponto final. Onde arranjo coleirinha para ganso?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de dezembro de 2015)

sábado, 26 de dezembro de 2015

Bancos lotados

Se o calendário indica ser Véspera de Natal e se você está com sua família em Uvanova, aquela pequena e simpática cidadezinha típica de colonização italiana encravada no seio da Serra Gaúcha, vizinha a Tapariu e limítrofe de Vila Faconda, então, não tem outra: trate de lavar as orelhas e pentear o cabelo que você, antes de fartar-se com a lauta ceia, destrinchar o peru, abrir um espumante, dar e receber presentes, antes disso tudo, em estando em Uvanova, você terá de comparecer à missa natalina que será realizada na igreja da praça principal, com a presença de, senão toda, no mínimo uma parte significativa da comunidade. Só você vai estar ausente? Não, né. Então, você vai.
Você vai sabendo que, por maior que seja a igreja, os bancos estarão todos ocupados nessa missa especial, que é a de Natal, marcada para iniciar-se às oito da noite. Você e seus familiares sabem disso. Por isso, a fila do banho já se inicia no meio da tarde, preferência para as mulheres, que, sendo seres mais complexos e misteriosos, precisam de mais tempo para o processo do arrumar-se, os homens ficando para as levas finais, bastando a eles (nós) o banho, o perfuminho atrás da orelha, o pente repartindo o cabelo e o sapato preto lustrado. Os ponteiros do relógio correm e a ordem é estarmos todos dentro do carro no mais tardar às sete e meia para garantirmos lugar dentro da igreja, já que hoje vai lotar, toda Uvanova sabe disso, sabemos disso nós também.
Sabemos disso porque somos pessoas que aprendemos com os equívocos do passado e entre nós não tem mais essa de ficarmos em pé a missa inteira no Natal porque perdemos tempo em casa enquanto os demais uvanovenses chegavam cedo e ocupavam os lugares nos bancos. Nananinanina! Desta vez chegaremos cedo e nos posicionaremos bem, está tudo organizado, estratégia pensada com antecedência, todos colaborando para que tudo desse certo no final e... Bom, deu tudo errado.

Deu tudo errado porque subestimamos a capacidade dos demais uvanovenses de aprenderem também eles com os erros do passado e, ao invés de meia hora antes da missa, como nós, apareceram uma hora antes. Quando chegamos, não havia mais banco para nós. Assistimos à missa em pé, mais uma vez. Ano que vem, trataremos de chegar duas horas antes. É preciso saber reorganizar constantemente as estratégias nesse mundo moderno, mesmo estando em Uvanova.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de dezembro de 2015)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Lista de sonhos

Últimos dias do ano, espumante gelando para a virada do Réveillon, presentes de Natal aquietados embaixo do pinheirinho de plástico na sala, guarda-sol novinho em folha esperando a hora de ser enfiado dentro do porta-malas e ir ao encontro de seu natural destino, movimento na vizinhança desacelerado, aquele clima de recolhimento e expectativa pairando no ar, como sempre acontece nessa época. Na televisão e nos jornais, somos inundados com as retrospectivas, na tentativa de fornecer um balanço coerente dos fatos que marcaram o período dos últimos 12 meses. Altamente influenciável como sou, logo cedo à tentação de elaborar uma retrospectiva pessoal e aí é que a vaca torce o rabo. Não. A porca. A porca torce. A vaca vai para o brejo. Isso.
Deixo vaca e porca para lá e, dessa vez, consigo vencer a tentação e me ponho a experimentar algo novo. Ao invés de retrospectiva pessoal e de elencar propósitos para o ano que se inicia, decido, dessa vez, elaborar uma lista do que eu gostaria de ver concretizado ao meu redor em 2016. Vamos a ela.
Na política, espero mais maturidade de nossos representantes e o estabelecimento de um verdadeiro espírito de compromisso com os destinos da nação, ao invés do arrivismo pessoal e da queda de braço inconsequente. Na economia, espero mais proatividade e atitude de cada um (empresário, trabalhador, pessoas físicas e jurídicas), ao invés da choramingas de braços cruzados que coloca a culpa de tudo em todos e em tudo, menos em si mesmo. Enquanto a turba faz panelaço, o empreendedor produz e/ou vende panelas. No futebol, espero reencontrar o surgimento, em campo, de profissionais que amem de verdade a profissão que escolheram e ofereçam ao público o espetáculo que deriva da essência da arte esportiva. Que o mercenarismo desapareça e as camisetas voltem a encantar quem as veste da mesma forma como entusiasma os que torcem por elas.

Na astronomia, que seja descoberto um planeta habitado por seres verdadeiramente cidadãos, no infinito significado que esse termo é capaz de abarcar, e que nos sirvam de exemplo. Na ciência, que descubram a cura para a inveja, a intolerância, a raiva, a violência, o egocentrismo, a ganância, a má-fé. Na ficção, que essa minha viagem maluca possa ter ao menos um cantinho de possibilidade de concretização. Boas festas, bons propósitos, bons sonhos!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de dezembro de 2015)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Teoria e técnica

Depois de muitos anos de vida, é natural, creio, as pessoas começarem a empilhar em si mesmas uma série de teorias sobre as coisas e também a adotar técnicas para facilitar suas próprias existências. Eu, que já posso dizer que sou bem vivido, faço exatamente isso o tempo todo: acumulo teorias e aplico técnicas. Mas sendo eu isso que sou, ou seja, sendo eu eu-mesmo, acontece de minhas teorias serem invariavelmente derrubadas pelos fatos que as contestam e minhas técnicas irem por água abaixo. No parágrafo a seguir, o exemplo que ilustra o enunciado, como a senhora leitora já esperava, pois que ando bastante previsível neste findar de ano.
 A questão de comparecer a eventos sociais nos quais o jantar ou o almoço faz parte (principal) da programação é o exemplo escolhido. Estou falando de solenidades oficiais, entregas de prêmios, homenagens, casamentos, formaturas, enfim, você sabe do que eu estou falando. Isso porque minha tese é de que é preciso ser esperto nesses momentos e nesses locais, para não ficar ansioso e, depois, o que é pior, sair frustrado. A tese é essa. E qual a técnica a ser aplicada para que você se dê bem nessas situações? Ora, vejamos a seguir.
 A fim de não ficar ansioso, só pensando no filé ao molho madeira e na massa ao pesto, sem prestar atenção ao “sim” dos noivos ou ao discurso do agraciado, a dica é já sair de casa tendo comido alguma coisa. Sim, porque a solenidade vai atrasar, meu amigo, e aquela sua disposição de “hoje vou tirar a barriga da miséria” vai realmente virar uma miséria se você achar que pode preencher os vazios de estômago entornando copos e copos do uísque que algum parente disponibilizou naquela mesinha dos aperitivos ali na entrada. Calma. Coma algo em casa antes, nem que para isso tenha de abrir aquela latinha de salsicha há tanto tempo guardada na despensa.
 Depois, saiba escolher a mesa que estiver mais próxima do bufê. Para isso, chegue cedo. Quando perceber a ordem de “atacar”, esqueça as convenções sociais, a elegância, a etiqueta e siga os ditames de seu estômago: pegue o prato, salte da mesa dizendo “eu fui” e vá mesmo. Eu faço assim. Já tive de voltar várias vezes com o prato no meio das pernas porque agora inventaram de começar a numerar as mesas ou a chamar por ordem de cores. Andaram sacando minha técnica. Vou começar a levar uma latinha extra de salsicha no bolso do paletó. E um abridor de latas no outro, porque tese sem técnica, como vimos, conduz os burros à água.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de dezembro de 2015)

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Asno bem treinado

Eu em casa lavo muita louça. Não que seja o único a lavar a louça em casa, mas sou um dos que mais lavam. Digamos que minha participação no ato de lavar a louça suja em casa se dê na ordem de 70%, os restantes 30% (ando bem de conta) tocando para a senhora minha esposa, já que somos os dois únicos habitantes da residência e responsáveis, portanto, direta e logicamente (ando bom de lógica também) pela sujança da louça. Sujou, lavou, não é assim? Aqui, não. Aqui é: sujamos, lavei.
O interessante dessa coisa de eu lavar a louça é que lavo e não reclamo. Quando menos se espera, lá estou eu, barriga grudada na pia, detergente numa mão e esponjinha na outra, lavando colherinha atrás de colherinha, pires após pires, xícaras e panelas. Sem pestanejar. Assobiando, até (mentira, apenas cedi à força da imagem, pois que não assobio coisa alguma). E por que isso se dá assim? Ora, respondo eu, caro leitor, estimada leitora, porque sou largamente elogiado nisso que faço. Recebo elogios generosos e desbragados sempre que lavo a louça. E adoro receber elogios. Quem não gosta? Para recebê-los, então, lavo a loucinha. E sou afagado em meu ego, mexo a cabecinha, levanto a patinha e abano o rabinho, contente e faceiro. Quem elogia? A senhora minha esposa, lógico, que, de trouxa, só tem a de roupa suja (essa, ao menos toca para ela).
E por que razão elogia minha lavada de louça a senhora esposa minha? Ora, porque, detentora de raciocínio lógico e conhecedora das técnicas de reflexo condicionado aplicadas pelos treinadores às bestas (aqui, no caso, o senhor esposo dela), ela sabe muito bem o poder existente em um elogio e como, a partir dele, é possível obter o melhor das pessoas. Elogiar é um dos mais poderosos instrumentos de persuasão e de conquista de boa vontade à disposição dos seres humanos e poucos se dão por conta disso. Encastelados no alto de sua soberba, os prepotentes abrem mão do uso de uma moeda de barganha infalível quando se pretende obter das pessoas aquilo que delas se deseja. Elogie e terás o mundo a seus pés.

Minha esposa sabe disso e eu lavo a louça, ansioso por receber, ao final, o torrão de açúcar que me vem na forma de um elogio. Também recolho a roupa seca do varal, cozinho, faço compras no mercado. Sou um amor? Não, sou um asno bem treinado. Mas, feliz, isso sim. E abanando o rabinho.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de dezembro de 2015)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Vou aprender cingalês

Como vem fazendo há anos, a ONU divulgou, agora em dezembro (sempre o faz em dezembro), a atualização do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das 188 nações analisadas sob este prisma no planeta. O Brasil, como sempre pouco aplicado, perdeu uma posição na tabela, caindo de 74º para 75º lugar. Algum leitor mais otimista poderia argumentar que tudo vai bem, afinal, estamos melhores do que 113 países. Sim, mas fomos ultrapassados pelo Sri Lanka. A senhora sabe onde fica o Sri Lanka, madame? Pois é, mas, em todo caso, lá vive-se melhor do que aqui.
Mas também não é justo que sejamos de todo pessimistas. Apesar de perder uma posição (e para o Sri Lanka... Como? Eu já havia dito isso? Não, madame, implicância alguma contra o Sri Lanka, pelo contrário. Minha implicância é doméstica, mesmo). Mas, apesar de perder uma posição, o Brasil até que melhorou sua nota geral no IDH, passando em um ano de 0,752 para 0,755. Note-se que, quanto mais perto de 1,0, melhores as condições para se morar no país analisado. A gente melhorou um pouquinho, mas os que estavam acima de nós melhoraram mais e o Sri Lanka, ah, esse deu uma esticada na reta final e nos ultrapassou, conforme parece que eu já disse aí em cima. Nossa melhoradinha não foi suficiente para evitar a ultrapassada pelo Sri Lanka, país asiático pequeninho também conhecido como Ceilão (Ceilão a senhora conhece, madame?).
O IDH é medido levando-se em conta quatro fatores: esperança de vida ao nascer; expectativa de anos de estudo; média real de anos de estudo e renda nacional bruta per capita. Há 74 países no mundo em que esses índices são melhores do que os nossos, sendo a Noruega em primeiríssimo lugar (por 12 anos seguidos) e, desde agora, o Sri Lanka na nossa frente. A capital do Sri Lanka é Kotte, mas a cidade mais populosa é Colombo. A população do Sri Lanka é de cerca de 22 milhões de pessoas e eles falam duas línguas oficiais lá no Sri Lanka: cingalês e tâmil.
Como é, minha senhora? Se eu estou pensando em me mudar para o Sri Lanka? Ainda não, pois não sei sequer dizer “água” em cingalês. Mas nunca digo “desta água não beberei”. E não há de ser difícil, uma vez que as duas línguas constam na lista do Google Tradutor. Já estou treinando, afinal, deve ser mais fácil aprender cingalês do que ver o Brasil fazer suas lições de casa.


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de dezembro de 2015)

sábado, 19 de dezembro de 2015

Espírito compralino

Alguém instituiu, não sei quem, não se se é oficial ou não, mas circula pela internet e, devido à intenção, ao conceito e à essência, é válido. Mas alguém instituiu que o dia 20 de dezembro é o Dia da Bondade. Funciona como uma espécie de preparativo dos espíritos para a chegada do Natal e é interessante que alguém se preocupe em fazer algum movimento, como esse, direcionado a resgatar o verdadeiro sentido da data que, pasmem, vai muito além (juro) da obediência automática aos ditames da mídia e do comércio, que transformaram (com a conivência de cada um de nós, não tente tirar o corpo fora) o espírito natalino em espírito compralino.
Eu sou contra o espírito compralino. Eu acho sinceramente que o mundo anda precisando de doses cavalares, astronômicas, de retomada de valores humanos e éticos que reconduzam a sociedade ao caminho da convivência cidadã. E isso é pra ontem. Porque, vou te dizer, a coisa tá danada. E não tá danada só mediante os descalabros que chegam ao tapete de nossas salas pelo despejar de barbaridades do tubo da televisão. Não é só isso. É pior. O descalabro se manifesta ao alcance de nossos passos, no nosso cotidiano, nas calçadas, no trânsito, nas relações pessoais e impessoais, em tudo. Eu iria terminar esse parágrafo escrevendo que “somos cada vez menos humanos”. Mas não é isso. Somos, isso sim, cada vez menos cidadãos, porque ser cidadão significa a evolução social da essência humana que, pelo visto, é bem complicadinha.
Daí a importância de se instituir um Dia da Bondade. Não significa – como podem vir a se apressar a detonar os mais apressadinhos detonadores de plantão –, não significa passar a agir como bonzinho no dia 20 de dezembro e assim achar que lavou a alma e que então está apto a “voltar ao normal” nos demais 364 dias do ano, sem contar os bissextos. Significa, ao menos nessa data, que há um simpático convite para refletir a respeito e, se for o caso, mudar algumas atitudes e, em outros casos, reforçar outras. Só isso, aliás, já faria uma baita diferença.
E não, não sou uma Pollyanna, que acha que o mundo vai mudar porque existe uma artificial data relacionada à bondade. Mas tenho convicção absoluta de que a via da mudança (longa, dura, penosa, lenta e sutil) não passa, mas não passa mesmo, pela exacerbação do espírito compralino. Ah, boas festas!

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de dezembro de 2015)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

RELATIVIZAR A SAMAMBAIA

Às vezes penso que o que precisamos mesmo, que nos faz uma baita falta na vida, é um aparelhinho capaz de dimensionar o verdadeiro tamanho das coisas que acontecem conosco e ao nosso redor. Precisamos de uma espécie de “dimensionômetro”, equipado com uma escala numérica (de 0 a 10) ou de cores (do azul ao vermelho) que possibilite, ao ser acionado, demonstrar a verdadeira gravidade (ou não) da questão que lhe apresentamos e que estamos vivenciando naquele momento específico.
Sim, porque, ao que me parece, muitas vezes não temos o discernimento e a lucidez necessários para colocar as coisas em seus devidos lugares e agir de acordo com a gravidade (ou não) dos fatos. Facilmente caímos na armadilha do superdimensionamento de fatos pequeninhos que, a bem da verdade, sequer permanecerão em nossas memórias alguns anos depois ou, mesmo, semanas adiante. Movidos pela tensão e ansiedade constantes, explodimos de raiva se a sinaleira fecha bem na hora em que iríamos cruzar; achamos o fim do mundo a queda momentânea do sinal da internet; fazemos um banzé porque alguém quebrou a taça de cristal (não fazemos o mesmo banzé quando o quebrador somos nós mesmos, correto?) e, a bem da verdade, qual a relevância desses pequenos contratempos na história de nossas vidas?
A relevância se materializará, sim, logo adiante, caso continuarmos a reagir despropositadamente a cada vez em que formos contrariados e a fatura virá na forma da destruição de nossas próprias saúdes. O fígado, o estômago, o coração e o sono que o digam. É preciso saber relativizar. Não significa adotar a partir de agora o padrão de comportamento de uma samambaia sonolenta frente à vida, porque obviamente haverá momentos em que sua ação rápida e enérgica se fará necessária. Mas, quanto às pequenas coisas do cotidiano e das relações entre as pessoas, é preciso aplicar o “dimensionômetro”. Perdeste a chave do carro? Questione o aparelho e ele lhe demonstrará grau três (na escala de zero a dez) de intensidade de estresse. Afinal, basta chamar um chaveiro e pronto, problema solucionado.

Visitas inesperadas apertam o interfone e estão subindo enquanto você detecta uma geladeira desprovida de mantimentos? Grau dez! Corra ao telefone enquanto o elevador os vai trazendo e chame logo a telepizza. Pronto, tudo solucionado. E vamos evitando morrer de estresse na véspera.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de dezembro de 2015)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Uso dos trequinhos

Como o pessoal sabe que eu gosto do meu escritório, já que é dentro dele que passo a maior parte das horas dos meus dias das minhas semanas dos meus meses dos meus anos, volta e meia eu ganho presentes e mimos destinados a serem usados naquele ambiente, muitos deles (dos mimos e dos presentes) dados com o intuito de facilitar a minha vida e o meu trabalho. Aceito-os sempre com ampla disposição e profundo agradecimento, pois que gosto de ganhar presentes e a melhor forma de incentivar as pessoas a dá-los (a mim) e a continuarem dando-os é demonstrar a elas como seus esforços valem a pena e são recompensados pelos meus sorrisos e manifestações de gratidão, o que as deixa felizes e a mim também.
Claro que, no andar dessa carroça, acaba acontecendo de algumas vezes meu escritório ficar um pouco infestado com determinados objetos sem utilidade alguma, normalmente aqueles distribuídos como brindes por empresas para seus clientes e funcionários, como um porta-canetas de plástico com um calendário impresso, no qual a gráfica e/ou o assessor de marketing se esqueceu de mandar imprimir o ano ao qual se refere, coisas assim. As agendas, no final de ano, viram providenciais torres sobre as quais posso repousar a xícara de café e a fatia de bolo do lanche da tarde sem ameaçar a integridade física do teclado do notebook, por exemplo, e, no fundo, tudo se resume a uma questão de criatividade.

Agora ando às voltas com um trequinho que minha esposa ganhou de brinde e trouxe para dentro de meu acolhedor escritório, onde espera que ele (o trequinho) ganhe vida útil e justifique sua existência em minhas mãos (ah, pobre trequinho!). Trata-se de um estojinho de couro, ladeado por um porta-canetas e em cujo interior repousam papeizinhos coloridos com cola adesiva na parte superior, usados como marcadores. Minha esposa então me ensinou que os papeizinhos verdes podem ser usados nos livros em que pesquiso para designar datas importantes; os amarelos, para indicar fatos cruciais; as azuis, para as citações. Adorei e pus-me a tacar etiquetinhas coloridas nas páginas dos livros que pesquiso. Só que perdi a legenda do significado de cada cor e agora não entendo bulhufas das marcações feitas. Vou ter de ler tudo de novo. E só quem segura a vontade louca de arremessar pela janela o estojinho é o cavalo que mansamente pasta no terreno baldio lá embaixo. Indigestão, basta a minha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de dezembro de 2015)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Males da alma

Com seis anos de atraso, consegui enfim assistir ao documentário “Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei”, de 2009, dirigido por Micael Langer, Calvito Leral e Cláudio Manoel. Consegui ver porque deparei com o material sendo exibido em um dos (raros bons) canais da tevê por assinatura, noite dessas, zapeando sem rumo no sofá da sala. E aprendi algumas coisas. Várias. Uma delas, compartilho a seguir.
Mas, antes, vamos às informações para situar um pouco o personagem, o cenário e a trama. Wilson Simonal (1938 – 2000) foi um cantor que fez muito (mas muito) sucesso nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil e também no Exterior, na época em que estouravam movimentos musicais e culturais como a Jovem Guarda, o Tropicalismo, a Bossa Nova. Dono de uma voz singular e de um carisma nato abrangente, Simonal hipnotizava multidões nos shows ao vivo dos festivais de música, nos estádios, nos programas de televisão em que participava e que comandava. Era capa de revista, tudo o que fazia virava notícia e ganhava muito dinheiro. Era namorador e seu círculo de amizades incluía celebridades de outras áreas, tendo ficado amicíssimo de Pelé, por exemplo.
Porém, no meio artístico e musical, despertava inveja, muita inveja. Despertava aquela inveja humanamente óbvia que nasce na baixeza da alma dos que se sentem ofuscados e sofrem com o sucesso alheio. Fazer o quê. Simonal deixava latindo os invejosos e, tal qual caravana, seguia em frente. O problema é que o sucesso se transformou em megalomania e soberba, e aí é que surgiu seu calcanhar de Aquiles. Certa feita, desconfiou que seu contador o estava roubando e, sem mais, pediu que agentes da polícia repressiva (era a década de 1970, em plena ditadura militar) sequestrassem seu funcionário, dessem-lhe uma surra e o forçassem a confessar. Assim foi e, quando o caso chegou à imprensa, Simonal, misturando ingenuidade com megalomania, declarou que era poderoso, que era amigo de figuras ilustres da ditadura e que, sim, era até informante dos órgãos de repressão.

Falou para se vangloriar e meter medo, e nada daquilo era verdade. Mas foi o que bastou para ser banido dos shows, perder contratos, desaparecer da mídia e cair no ostracismo, até morrer esquecido décadas depois, alcoólatra. Tudo por causa de um arroubo de megalomania. Inveja e soberba, meus amigos, matam. Por dentro e por fora. Temos de cuidar de nossas almas assim como cuidamos do corpo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de dezembro de 2015)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

De onde as paletas?

Daqui a uns três meses, celebrarei o primeiro aniversário de uma nova experiência gastronômica que me marcou profundamente, pois é raro você chegar às portas do meio século de existência e ainda ter o privilégio de deparar com algo classificável como novidade. É diferente dos anos iniciais de vida, quando a primeira colherada de feijão amassado lhe invade as bochechas, a primeira chupada em polpa de pêssego lhe faz brilharem os olhos, o chocolate dando as boas-vindas a um mundo que nem sempre lhe será saboroso.
Não, depois de velho, essas sensações vão escasseando. Mas, acontecem, de vez em quando. Claro que seriam mais frequentes caso empreendêssemos visitas assíduas ao Oriente, onde formigas fritas, larvas recheadas e gafanhotos vivos também integram a culinária típica, mas nunca percorri tais extremos (geográficos e alimentares). Estando na Escócia, experimentei um tradicional black puddining; em Londres, banqueteei um típico chá das cinco da tarde; na França, croque monsieur e suco de tomate; no Uruguai, parrilla; em Buenos Aires, desyjuno con media-luna y jugo de pomelo. Sim, tudo típico e delicioso, mas nada proporcionando o encontro com o plenamente inusitado e nunca-antes-visto (no caso, saboreado).
Essa sensação vim a (re)experimentar em março do ano passado, enquanto veraneava em Torres. Foi quando pela primeira vez na vida empunhei um palito de paleta mexicana. Uau! Que sabor! Que delícia aquela casca grossa de gelo aveludado (a de morango, a de morango!) envolvendo o doce recheio cremoso (o de leite condensado, o de leite condensado!)! Esbaldei-me no verão passado com as paletas mexicanas e consolidei em meu íntimo a convicção de em breve, muito em breve, empreender um passeio ao México, o país das paletas. Só que não!

Depois da invasão das paletas mexicanas por todas as esquinas, até aqui em Caxias (o que é uma delícia para um viciado como eu), acabei descobrindo que o picolé não é, nem de longe, uma iguaria típica criada pelos mexicanos. Aliás, eles, lá, sequer sabem do que se trata. Ou seja, a paleta é uma delícia, mas sua mexicanisse não passa de jogada de marketing. É fake. Tudo bem, em nada está abalada minha convicção de visitar o México. E nem de seguir devorando paletas “mexicanas”. Em março celebro um ano desse namoro, de preferência, de novo em Torres, acompanhado por uma Coca-Cola brasileira. Quer dizer...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de dezembro de 2015)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Felicidade atingível

Quais e quantos elementos integram o seu kit de felicidade plena? Qual o tamanho desse kit? Ele é básico ou complexo? Fácil ou difícil de ser alcançado? Ou impossível? Ou inesgotável? De que você precisa para sentir-se pleno na vida? Muito dinheiro? Três carros na garagem? Um carro novo a cada ano? Viagens internacionais? Cem mil amigos nas redes sociais? Trocentas mil curtidas nos vídeos que posta? Fama, reconhecimento e tapinhas nas costas? Você quer em dobro tudo aquilo que deseja para si mesmo? E ainda mais? Sempre mais? Qual a sua capacidade de sentir-se satisfeito?
Isso é coisa de foro íntimo, eu sei. Não tenho nada que ficar constrangendo ninguém pela aí. Porém, na condição de cronista mundano, espera-se que de vez em quando eu dê alguma cutucada em alguma coisa, como essa. Pois vamos aos cutuques. Para tanto, precisamos nos teletransportar para a Europa de abril de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegando ao seu final, Hitler já morto e a Alemanha, arrasada (bem como vários países no entorno), a um passo de se render incondicionalmente aos exércitos Aliados. Em dado momento, um correspondente de guerra norte-americano, acompanhando as tropas de seu país que entravam em uma pequena aldeia italiana, encontra uma moça francesa judia que havia passado anos detida. Ela disse ao jornalista que adoraria ir para a América, ao que ele lhe respondeu, brincando, que podia ir com ele, pois era um americano muito rico. Ela, então, retrucou: “Não é isso que eu quero. Só quero comida, um lar, paz e felicidade”.

O conceito de felicidade alcançável para essa moça, que havia sobrevivido aos inimagináveis horrores da guerra, parece prosaico e ingênuo aos nossos olhos de hoje, cidadãos do século XXI diariamente bombardeados por apelos como a necessidade de termos um corpo perfeito, visual de artista de Hollywood, casas imensas, carros do ano, saldos bancários astronômicos etc. Mas, na verdade, o que ela almejava era simplesmente recuperar a essência de ser um ser humano vivendo plenamente sua vida de maneira civilizada. O que se configurava em “apenas” ter acesso a comida, um lar, paz e, aí sim, felicidade. Conheço muita gente que tem isso tudo desde sempre e, mesmo assim, é infeliz, muito infeliz. Não acho que seja necessário passar por uma guerra para aprendermos a domesticar nossos conceitos de felicidade atingível.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de dezembro de 2015)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Curvas da vida


A vida pode ser descrita como uma caminhada. Todos sabemos disso. Todos já vimos, ou ouvimos, ou lemos ou mesmo pronunciamos essa metáfora mais do que batida: “a vida é como uma caminhada”. Sim, porque, assim como qualquer trajeto que se imponha à nossa frente, também a existência é repleta de pedras no meio do caminho (como nos avisa insistentemente o poeta), curvas acentuadas, solavancos e buracos (vida de brasileiro, então, é repleta de buracos no meio da pista, assim como estradas brasileiras), encruzilhadas, barbeiros na contramão, súbitas porteiras fechadas, pedágios (ah, como brasileiro paga pedágio na vida e nas estradas...), poeira a ser engolida, animais na pista e assim por diante.
A metáfora ligando vida a caminho, como vimos, tem lógica e razão de ser, tamanho o número de pontos de convergência simbólica entre os dois elementos. Vida e jornada, vida e viagem, vida e trajeto a ser cumprido, tudo isso vale e nos ajuda a compreender melhor (ou atenuar o eventual peso) esse fenômeno inexplicável que se dá com todos os que nascem e que vão acumulando milhas de rodagem no cenário da existência: o ato de viver. Viver é dirigir-se pelas curvas desse caminho, optando pela direção a seguir quando chegam as encruzilhadas, acelerando ou reduzindo o passo, evitando ou sabendo entrar nos buracos, ultrapassando com segurança, observando as regras, essas coisas. A vida é assim. As caminhadas, também.
Talvez seja por isso que tenho tentado desenvolver uma técnica anti-estresse quando me ponho a dirigir meu automóvel pelas ruas da cidade e pelas estradas do Estado, sempre apinhadas de veículos, nem sempre em bom estado de conservação, às vezes em obras, quase sempre frenéticas. Descobri que a ansiedade em relação ao trânsito é o pior inimigo de quem está ao volante. Pior inimigo para sua paz de espírito, para sua saúde física e emocional e para a segurança de si mesmo, dos seus e dos outros. Minha técnica consiste em acreditar que qualquer pequeno contratempo se dá com a intenção secreta de me conduzir com maior segurança ao meu destino final.

Afinal, nunca sabemos o que poderia ter acontecido caso tivéssemos optado pela outra via na encruzilhada lá atrás. Poderia ter caído em um enorme buraco. Talvez o engarrafamento me tenha livrado disso. A vida, assim como as caminhadas e os trajetos, precisa de leveza. Mas com atenção ao volante.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de dezembro de 2015)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Um peso por un beso

Fazer entender-se pelo outro é um dos maiores desafios impostos a todo e qualquer ser humano que opte por viver em sociedade ao invés de enfurnar-se teimosamente em uma caverna. Comunicar-se é compartilhar da melhor maneira possível a aventura da existência, sabendo que o processo possui falhas. Muitas falhas. Porque nem sempre conseguimos fazer o outro entender exatamente aquilo que estamos tentando dizer. E nem sempre compreendemos corretamente aquilo que está tentando nos dizer o outro. Ou a outra.
Exemplo disso vivenciei eu alguns anos atrás, em um passeio turístico por Buenos Aires na companhia de minha esposa e de uma turma de amigos. Passeávamos pelo tradicional e fervilhante Caminito, na região de La Boca, as atenções sendo voltadas para cada casinha colorida, cada atração humana típica do local com seus artistas de rua e gatos, quando fomos, minha esposa e eu, abordados por um casal de dançarinos típicos de tango. Queriam que dançássemos com eles para batermos fotos e, claro, deixarmos em troca alguns pesos. Muito gentis, simpáticos e charmosos (tanto eles quanto nós, naturalmente), concordamos com a proposta e, turistas típicos que somos, fizemos as poses. Minha esposa com o garboso dançarino e eu com a formosa dançarina, não poderia ter sido diferente.
Ao findar da encenação, minha bailarina sussurrou manhosamente em meu ouvido algo que entendi como “um beso, señor, um beso!”. Arrepiei. Como sair daquela saia justa, em plena calle, à luz do dia e minha esposa batendo fotos? Ela queria de mim um beijo? Ali? Então os argentinos são assim, tão... tão... soltinhos? Achei melhor não e, para não decepcioná-la, abri a pochete e ofereci a ela alguns pesos. Que era exatamente o que ela desejava. “Um peso, señor, um peso”. Minha mente pérfida é que havia entendido o contrário. Felizmente, meu superego (que entende espanhol melhor do que eu) me impediu de arrebatar a dançarina nos braços ali mesmo no meio do Caminito e tascar-lhe um estrondoso beso em sua boca, na Boca.

Lembro disso neste 11 de dezembro, Dia do Tango, no dia em que, por incapacidade de compreensão, eu mesmo quase dancei feio. Saber ouvir é uma arte. Vital para a sobrevivência, por sinal.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de dezembro de 2015) 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Um avião, um barco ou um poema

Uma folha em branco A4 repousa a meu lado sobre a escrivaninha e, dali, me observa. De onde veio? Como foi parar ali? Eu deveria saber, afinal, quem administra os objetos dentro de meu escritório sou eu mesmo. Exceto, claro, nos dias em que vem a faxineira. Ontem veio a faxineira. Deve ser por isso. De alguma forma, essa folha desgarrou do pacote de folhas A4 que mantenho detidas no balcãozinho da impressora e a faxineira tratou de posicioná-la ali, bem ao alcance de minha vista, e ela agora me fita (a folha, não a faxineira, pois que veio ontem, como já disse). Que quer de mim?
Houve tempos em que uma folha em branco ao alcance da mão soava como um apelo irresistível para que nela eu moldasse um poema. Ou uma tentativa de poema, pois que não sou poeta, nunca fui. Mas houve vezes, confesso, em que tentei sê-lo e não foram poucas as folhas em branco que manchei e estraguei com a tinta de canetas manuseadas por essas minhas mãos inábeis para a poesia. Isso em um tempo em que folhas em branco eram apenas isso: folhas em branco, e ninguém as chamava pelo registro de identidade que hoje as classifica em A4, A3 e assemelhados. Hoje em dia, caso poeta tivesse conseguido ser, ameaçaria com meus malversados versos as telas em branco do computador, e deixaria em paz as folhas em branco. Sorte delas.
Mas poderia, agora lembrei, dar outro destino a esta folha em branco desgarrada e provocativa. Poderia transformá-la em um barquinho de papel, ou, com uma ou outra dobra diferente, em um chapéu, pois que chapéus e barcos de papel são objetos assemelhados quando dominamos a técnica das dobras de folhas. Eu dominava essa técnica na adolescência, com excelência maior do que a da produção de poemas. Sabia, também, criar aviões de papel a partir das dobras certas. Sabia (pasmem) fazer dois tipos diferentes de aviões: um mais quadrado e lento e outro pontudo, rápido como um foguete. Vejamos se ainda o sei.

Não, não deu. Perdi a manha das dobras. Não consegui fazer nascer da folha A4 nem um avião, nem um barco e tampouco um chapéu. Desdobro-a e recoloco-a junto ao maço das demais folhas, sob o balcãozinho da impressora. Haverá de servir de base para a impressão de algum boleto de pagamento. Pelo menos, agora, uma folha em branco pode descansar tranquila ao meu lado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de dezembro de 2015)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Páginas fechadas

Primeiro, chegou a notícia de que a versão brasileira da revista Playboy, publicada no país há 40 anos pela Editora Abril, seria cancelada após sua última edição no final deste ano. Decorrência da crise no mercado de impressos e também da decisão da matriz norte-americana de banir as fotos de mulheres nuas de suas páginas a partir de agora. Esta semana, porém, a mídia foi inundada com a nova informação de que a revista continuará sendo publicada no Brasil, sim. Apenas vai mudar de editora.
Para mim, o problema da continuação ou não da Playboy no Brasil é indiferente, pois não sou leitor da revista. No entanto, posso imaginar o frisson que esse vai-e-volta relativo à sua continuidade ou não nas bancas e nas casas dos assinantes deve estar causando em seu séquito de leitores. Afinal, o cancelamento de um título de que gostamos de ler e com o qual nos identificamos costuma se revestir de uma aura de perda semelhante a uma espécie de luto. Ao longo dos anos, em minha extensa trajetória de rato-de-banca-de-revistas, amarguei uma coleção de perdas frente ao cancelamento de revistas e gibis de que muito gostava.
Ah, a “Somtrês”, a “Pop” e a “Bizz”, trazendo-me as novidades sobre o universo da música! Ah, a “Mad”, a “Pancada” e “O Planeta Diário”, inundando de humor os meus dias! A revista “Circo”, a “Vertigo”, “A Turma do Pererê” do Ziraldo, o “Fradim” do Henfil, na lista dos bons quadrinhos! A “Ciência Ilustrada”, “Realidade”, “Manchete”, “Fatos & Fotos”, informando e formando. A lista de meus lutos de banca de revista é longa, já estou ficando triste. Paremos por aqui que o leitor, eu sei, está completando-a mentalmente, a seu bel-prazer.

O cancelamento de uma revista se equivale, em termos de sensação de perda, ao fechamento de um restaurante que gostamos de frequentar. Equipara-se, também, à tristeza que nos invade frente à notícia da morte de pessoas famosas que admiramos. Revistas, restaurantes e ídolos são elementos constitutivos de nossas próprias histórias pessoais, símbolos que nos definem e que nos são referenciais. Quando se vão, representam o fechamento de ciclos de nossas próprias existências. Pequenos lutos culturais que fortalecem nossa individualidade. Falando nisso, lembra daquela soparia na Júlio de Castilhos...?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de dezembro de 2015)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Fotos tocadas


Noite de sábado, amigos sendo recebidos em casa para o jantar. O ato de receber amigos para jantar obedece a um ritual composto por algumas etapas tacitamente acordadas. São regras não explícitas que conduzem o andamento do encontro como se fossem um maestro invisível a reger o desenrolar das cenas, garantindo a manifestação do prazer de se estar compartilhando a presença humana com pessoas queridas e afinadas.
Dessa maneira, parte-se das conversinhas sobre generalidades amenas na sala, logo após a chegada dos convidados, enquanto são servidos os petiscos de aperitivo e os drinques previamente preparados, mais a água mineral (ou o suco ou o refrigerante) para o componente do casal que, esta noite, ficou responsável pela direção do carro no retorno à casa. Quem dá o tom desses momentos iniciais são as bocas do fogão, ou o timer do forno elétrico, ou o apito do forno de micro-ondas ou ainda o estalar do fogo na churrasqueira, indicando que o jantar está pronto e todos podem passar à mesa. É quando a conversa corre solta, alegre, sem rumo, um assunto atraindo outro, a palavra passando democraticamente de voz em voz, as comidas sendo saboreadas e elogiadas (o que é sempre muito gentil da parte de quem visita e muito bem recebido pela parte que recebe), o aconchego da amizade se manifestando em toda a sua potencialidade.
É na hora da sobremesa que elas costumam aparecer. Estômagos já fartos, sentidos já amortizados pelo início do processo da digestão, o ambiente fica propício para o assalto das reminiscências. E nada melhor para auxiliar na ilustração das histórias do passado do que uma caixa repleta de fotografias! Sim, eu ainda mantenho comigo caixas velhas de sapatos recheadas de fotografias que narram pedaços de minha história de vida até o início do milênio. Depois disso, as recordações visuais são todas digitais, guardadas na memória de computadores ou em pen drives ou em dvds que jamais serão transportados à mesa para serem revividas por grupos de amigos.

Mas uma caixa de fotos em papel, nisso sim, reside um prazer profundo que, infelizmente, está sendo relegado para as teias de aranha dos ritos antigos que nos tornavam mais humanos. Uma fotografia sendo tocada, passando de mão em mão, tem o mesmo sabor de amizades cultivadas ao vivo, no compartilhar do calor das presenças. Foto digital e amizade virtual são novidades, sim. Mas, definitivamente, não são substituições.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de dezembro de 2015)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Carta a Marte

Oliver é um garotinho britânico esperto. Ele tem cinco anos e, como muitos outros garotos de sua idade, sonha em se tornar astronauta quando crescer. Eu acalentava o mesmo sonho quando tinha os meus próprios cinco anos, no longínquo e distante século passado. Quando nasci, aliás, o homem ainda não havia pisado na Lua, mas o fez apenas três anos mais tarde e a televisão preto e branco lá de casa serviu de ponto de encontro para os adultos que, junto com meus pais, queriam assistir ao vivo à façanha de Armstrong, Collins e Aldrin a bordo da Apollo 11.
Eu, provavelmente, naquele momento histórico, dei de ombros e fui ao meu quarto brincar com uma girafa de plástico e com um porquinho de pano. Mas cresci e, a exemplo de Oliver, passei a sonhar em ser astronauta, viajar em cápsulas espaciais, desbravar novos mundos, conhecer seres extraplanetários, viver em órbita e no mundo da Lua. Disso tudo, consegui concretizar somente o projeto de viver no mundo da Lua, mas deixemos isso pra lá e voltemos a Oliver, o menininho britânico de cinco anos que quer ser astronauta.
Ele quer tanto que, preocupado desde já com questões práticas referentes a seu projeto, enviou ao serviço postal britânico um questionamento sobre quanto custaria enviar uma carta para o planeta Marte. O incrível é que o garoto teve sua pergunta respondida, semanas mais tarde. Depois de questionar a Nasa, o serviço postal britânico concluiu que o valor para enviar uma carta ao planeta vermelho chegaria a 11,6 mil libras, ou cerca de 65,6 mil reais. Frente ao montante literalmente astronômico, Oliver, garoto sensato, desistiu do projeto, respondendo aos correios que “enviar uma carta a Marte era, mesmo, muito caro e, além do mais, acabaria faltando selos”.

Uma lástima, afinal, em primeiro lugar, alguém lá em Marte vai ficar sem receber missivas de Oliver, seu amigo terráqueo que tanto quer se comunicar. Segundo, não ficaremos sabendo o que Oliver tinha de tão importante a comunicar a Marte. Mas ele ainda é novinho, é capaz de viver o suficiente para ver a rede wi-fi chegar ao planeta vizinho e poder enviar e-mails. Não desista de seus sonhos, Oliver.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de dezembro de 2015)

sábado, 5 de dezembro de 2015

Saudades de São Nicolau

O dia 6 de dezembro, que cai neste domingo, é data importante para a cristandade dos países orientais, especialmente Rússia, Turquia e vizinhanças. Isso porque é nessa ocasião que se celebra São Nicolau, um santo importantíssimo por aquelas plagas, sendo o padroeiro oficial de países como Rússia, Grécia e Noruega. Já viveu dias de maior apreço nos países cristãos ocidentais da Europa e das Américas, porém, foi desbancado no início do século passado pela popularidade forjada de um ícone nada santo e totalmente mercadológico, conforme veremos daqui a pouco, basta seguir lendo.
Não se sabe exatamente sua data de nascimento, porém, morreu em 6 de dezembro (daí a efeméride) de 350 d.C. em Patara, antiga região grega que hoje pertence à Turquia. Nicolau foi um proeminente bispo da Igreja Católica turca em Mira,  tendo se destacado por sua defesa ferrenha da fé cristã e pela contundência com que defendia suas posições, mesmo entre seus pares. Paralelamente a isso, possuía uma alma caridosa, preocupado com os desvalidos e sem posses e, em especial com as crianças. São Nicolau gostava muito das crianças, de forma santa, pura e genuína. Tanto isso era verdade que ficou conhecido por andar pela região com um enorme saco às costas, distribuindo presentes para as criancinhas na época do Natal e deixando moedas de ouro nas chaminés das casas das famílias mais pobres.
Interessante, não? Isso lembrou alguma coisa ou alguém? Pois é, isso mesmo. É em São Nicolau que nasceu a inspiração para a figura do Papai Noel, a distribuir brinquedos para as crianças e a descer pelas chaminés das casas na noite de Natal. Até o final do século 19, Papai Noel era representado vestido com as roupas de bispo da Igreja Católica, em clara alusão ao santo inspirador de sua figura: São Nicolau. Mas aí entraram em cena os marqueteiros de várias empresas vendedoras de bebidas como água mineral (em 1915) e refrigerante famoso (1931), que utilizaram o visual de Papai Noel criado em 1886 por um cartunista alemão (Thomas Nast), com barba branca, roupa vermelha e cinturão e botas, como garoto-propaganda de seus lançamentos de Natal.

Foi o que bastou para São Nicolau, o verdadeiro detentor do espírito natalino e amigo das crianças e dos desvalidos, ser varrido para o esquecimento no mundo ocidental bebedor de refrigerante e cultuador de personagens marqueteiros criados em pranchetas. Que saudades de São Nicolau...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de dezembro de 2015)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Você faz o quê?

Assim como em relação às pessoas, existem características específicas que regem o perfil de uma cidade, uma comunidade. Tanto é assim que astrólogos são capazes de tecer o mapa astral de um município utilizando sua data de fundação como base, como se fosse a data de nascimento. Alguns ramos da psicologia já procuram compreender esses aspectos que regem o perfil macro de uma comunidade para, a partir disso, alicerçar sua compreensão de como a psiquê de seus pacientes é influenciada e determinada pelo meio. Tem lógica.
Aqui em Caxias do Sul, por exemplo, o epíteto “terra do trabalho” é muito significativo, indo além e bem mais fundo do que somente um apelido simpático a uma comunidade que realmente alicerçou seu crescimento na base da dedicação, do esforço e da labuta árdua. Trata-se de uma verdade que se manifesta, se faz viva e direciona boa parte das visões de mundo de parte ainda maior de seus habitantes. A ponto de, às vezes, proporcionar o surgimento de visões um pouco deturpadas da realidade. Aqui, apenas “ser” não basta. Também não basta “ter”. É preciso, para ser reconhecido como ser, “fazer”. Quem não faz, nada é. Senão, vejamos o exemplo, que vem no parágrafo a seguir.
Final de semana desses, estava eu anfitrionando visita de parente quando resolvi apresentar a nova escultura que adorna um dos bancos da Praça Dante Alighieri, a estátua de Beatriz, musa inspiradora do poeta italiano que nomeia o logradouro, esculpida pela artista plástica Dilva Conte e recentemente inaugurada. Estávamos ali ao redor da escultura fazendo fotos quando fui abordado por um cidadão, intrigado com nossa movimentação. Simpático e expansivo, logo se pôs a me questionar se eu sabia a razão pela qual haviam feito uma estátua daquela moça. Respondi que sim, eu sabia, que se tratava de Beatriz, a musa de Dante. “Sim, mas o que ela fez para merecer estátua na praça?”, quis saber meu interlocutor. “Ora, ela inspirou a obra maior do poeta maior da Itália”, insisti. “Sim, isso fez ele, que tem ali o merecido busto, mas ela, ela mesma, fez o quê?”, insistiu ele mais ainda. Bom, aí desisti.

Não adiantava insistir na tentativa de criar ponto de convergência entre duas visões de mundo tão distantes. O que Beatriz fez para merecer estátua? Ora, ela existiu, simplesmente, e inspirou uma das mais belas expressões artísticas de história. Isso, para mim, basta.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de dezembro de 2015)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Há 50 anos em lugar-algum

Quando detectei a data, não pude resistir e corri ao aparelho de som (sim, eu ainda uso aparelho de som) para colocar a tocar o CD (sim, eu ainda escuto música via CD) que celebra hoje, 3 de dezembro, suas bodas de ouro (“Ele é um verdadeiro homem de lugar-algum, sentado em sua terra de lugar-algum”). Cinquenta anos, meio século. Não é pouca coisa, em termos de vida humana (na média, mais da metade), mas é relativamente pouco em termos de História da humanidade (“Fazendo todos seus planos nonsense para ninguém”). Mesmo assim, tempo suficiente para consolidar sua importância na transformação cultural do mundo ocidental e comprovar a vitalidade perene daquilo que é feito com talento, gênio e dedicação (“Não possui opiniões próprias, não sabe para onde está indo, não se parece um pouquinho como você e eu?”).
Em 3 de dezembro de 1965, o mundo começava a tomar contato com as 14 faixas do sexto álbum de estúdio dos Beatles, “Rubber Soul” (“Alma de Borracha ”), e a detectar, pela qualidade das músicas, que uma transformação profunda acontecia na banda, com músicas mais elaboradas, novos instrumentos agregados aos arranjos, temáticas mais complexas sendo abordadas. Dali em diante, os Beatles nunca mais seriam os mesmos, já que inovação com genialidade e talento foi sua marca registrada desde o começo até o fim. Na verdade, “Rubber Soul” foi apenas o indicativo do que estava por vir com as revoluções subsequentes de “Revolver” (1966), “Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band” (1967), “White Album” (1968), “Abbey Road” (1969) e “Let it Be” (1970).
Há meio século que nos encantamos e surpreendemos com as histórias de um homem que pertence a lugar algum, não tem opiniões e vive uma vida de nada (“Nowhere Man”); evocamos a nostalgia das pessoas e lugares que marcaram nossa vidas (“In My Life”); lembramos de antigas paixões que se foram como pássaros (“Norwegian Wood”); suspiramos por “Michelle” e confessamos que, se precisássemos de alguém para amar, esse alguém seria você (“If I Needed Someone”), entre outras composições imortais.

Os parabéns não vão só para o álbum que aniversaria, mas sim para todos os que sabem revitalizar suas próprias existências com o passar dos anos, evocando o que a humanidade é capaz de produzir de melhor. Afinal, que triste seria o mundo caso não tivesse havido Beatles, não é mesmo?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de dezembro de 2015)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Mimo para marmanjo

Quando eu era criança pequena em Ijuí (e aqui estamos falando de coisas que aconteceram muito tempo atrás, lá no século passado), havia uma musiquinha natalina cujo refrão dizia assim: “Natal, Natal das crianças...”. Como é, minha senhora? A musiquinha continua existindo e pode ser ouvida dentro de qualquer shopping ou centro de compras da cidade por todo o mês de dezembro e até antes? Sim, sim, eu sei que sim. Mas é que, na minha época, o significado da música era diferente. Explico a seguir.
Não é que na minha época o significado da letra da canção natalina diferisse de hoje. Não. O que acontece (acontecia) é que, naqueles meus tempos de criança, a letra da musiquinha refletia uma verdade concreta, ao contrário de hoje, quando a canção evoca apenas uma metáfora. Explico. Veja bem... Ou melhor, ouça bem... Melhor ainda: leia bem... Diz assim a letra: “Natal, Natal DAS CRIANÇAS”. Sentiu a senhora o peso ali das maiúsculas? Das crianças. Natal, naqueles meus tempos de muito antanho, era uma celebração universal, sim; cristã, sim; para toda a família, sim (como segue sendo hoje); porém, essa coisa de meter-lhe pacote de presente nas fuças uns dos outros, isso era restrito às crianças. Presente de Natal era coisa que se comprava e se dava para as crianças. Não havia isso de marmanjo vendo-se obrigado a sair escabelado pelas calçadas da cidade atrás de presentinho para outro marmanjo: o chefe, o colega, o marido, a esposa, o cunhado, sogro, sogra, amigo secreto... Nada disso. Era o Natal das crianças. Presente de Natal era sinônimo de presente para alguma criança: filhos, sobrinhos, netos, afilhados.

Nesses tempos modernos de obrigação tácita de aceitar e obedecer aos apelos e comandos da sociedade de consumo, começamos até a dar ovinho de Páscoa para marmanjo, afinal, é preciso gastar, é preciso aquecer a economia nas datas festivas. Passamos afirmando o ano todo que idade não é documento e que podemos ser crianças com 80 anos de idade? Bem, queremos presente de Dia das Crianças também, ué! E longa vida à sociedade de consumo! Taí um dos possíveis aspectos positivos das épocas de crise econômica: um convite para retomar a essência de conceitos de algumas datas e tentar reavivar verdadeiros valores, quem sabe, trocando um simples “a” por um “e”: menos gastos e mais gestos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de dezembro de 2015)

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

De cofrinho recheado

Aprendi a poupar ainda na infância, devido aos cofrinhos presenteados por meus pais. Primeiro, um porquinho de plástico, que mexia o rabicho e saltava o chapéu toda a vez que recebia uma moedinha. Mais tarde, uma formigona de plástico, símbolo da Fin-Hab, uma caderneta de poupança muito popular na década de 1970. Depois, outro cofrinho em forma de latinha de refrigerante, da Poupança Apesul, adornada com o desenho do gauchinho, seu símbolo.
Deve ter advindo daí meu domesticado e controlado fascínio por moedas, que persiste até hoje. Domesticado e controlado porque jamais me transformei em um numismata, apesar de ter dado início a uma tentativa de coleção de moedas na adolescência, juntamente com a de tampinhas (que vingou), com a de chaveiros (que vingou mais ainda), com a de selos (um desastre) e com a de carrinhos de chumbo Matchbox, precursor dos atuais Hot Wheels. As moedas, eu as guardava nos cofrinhos que, ao serem flagrados lotados, eram imediatamente carneados e seu conteúdo transformado em gibis do Zorro, do Fantasma e do Tarzan ou em livros da coleção do Sítio do Picapau Amarelo. Moeda na minha mão, depois de devidamente poupada, era usada para seu fim primordial: ser trocada por bens.
Outro fator que deve ter ajudado a formatar esse encantamento por moedas veio de Patópolis, cidade-sede da Caixa-Forte do Tio Patinhas, quackmilionário cujo maior prazer era o de mergulhar de calção de banho em sua piscina forrada de moedas. Certa vez adquiri o Manual do Tio Patinhas, que trazia de brinde uma réplica da famosa Moedinha Número 1, aquela que dava sorte ao Tio Patinhas e era responsável por toda a sua fortuna. Azarado que era, não só não fiz fortuna como perdi a própria moedinha, do que me arrependo até hoje. Para compensar, agora, na adultice, em recente visita à histórica cidade inglesa de Bath, que pertenceu aos domínios do Império Romano, adquiri uma réplica de um sestércio romano da época do Imperador Claudius. Quero crer que anda me dando sorte.

Hoje continuo guardando moedinhas. Não as ignoro nem as desprezo, pelo contrário, valorizo-as no que elas proporcionam de melhor. Especialmente aprecio o poder de barganha que elas detêm nas feiras do produtor, ao se transformarem nas frutas, legumes e verduras das minhas refeições. Afinal, hábitos são hábitos. Ah, e parabéns aos numismatas hoje, em seu dia!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de dezembro de 2015)