sábado, 30 de janeiro de 2016

Coelhos na cartola

Não gosto de deixar passar em branco a data de 31 de janeiro (este domingo), pois é nela que se comemora o Dia Mundial dos Mágicos. A magia e o ilusionismo são elementos que me fascinam desde a mais tenra infância, quando meu pai fazia um pedaço do polegar de sua mão direita desaparecer diante de meus olhos e depois ressurgir misteriosamente. Como ele fazia aquilo? Lembro da angústia que me invadia quando o naco de seu dedo sumia. Ficava preocupado. Mas a sensação não se estendia por muito tempo e uma imensa felicidade tomava meu espírito quando, por meio de um truque, a normalidade era restabelecida e tudo seguia como dantes nos dedos da mão de meu pai. Havia magia, e ela me capturou para sempre.
Na adolescência, encomendei via reembolso postal um kit de magia pelos Correios, a fim de impressionar a família e amigos com meus truques, pois planejava ser mágico quando crescesse e, então, já estava na hora de ir treinando. Entre a tralheira toda, havia um anel que desferia um choque na mão da pessoa a quem o mágico (eu) cumprimentava, uma cobra de plástico que saltava de dentro de uma garrafa e um dispositivo que, inserido matreiramente dentro de um cigarro, explodia minutos depois de aceso, na boca do fumante (uma tia minha me olha de lado há décadas desde que inventei de testar o truque na carteira de cigarros dela). Tudo politicamente incorreto para os dias de hoje, mas me diverti bastante às custas dos outros, na época.

Depois fui aprendendo que diversão de verdade só é plena e só se justifica quando se dá em conjunto com os outros, e não às custas deles. Mudaram então as mágicas e, daquela época, ainda sei fazer duas ou três, com cartas de baralho em que os curingas são protagonistas e com plaquinhas nas quais um par de coelhinhos aparece e desaparece diante dos olhos e bocas abertas dos presentes. Aprendi também que a data de 31 de janeiro é ligada à magia em homenagem a São João Bosco, padroeiro dos mágicos, nascido em 1815 em Becchi, na Itália, e que morreu em 31 de janeiro de 1888 em Turim. Na juventude, ele dedicou-se ao ilusionismo para sustentar a família antes de entrar para a vida religiosa e, em sua carreira, voltar-se à educação de crianças e jovens. Seu lema era “educar não com pancadas, mas com mansidão e caridade”. A educação é a única magia capaz de tirar da cartola cidadãos íntegros e proativos. É só por meio deles que se dá o passe de mágica que transforma a sociedade para melhor. Abracadabra e façamos mágicas!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de janeiro de 2016)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Coincidência secular

Assim que o ano realmente começar, isso lá para depois do Carnaval, ou melhor, depois de encerrada a edição anual do Big Brother Brasil, ou ainda, no caso específico deste 2016, depois de concluídas as Olimpíadas do Rio de Janeiro ou, no pior das hipóteses, após as eleições ou quando a crise terminar, mas enfim, assim que 2016 realmente começar, o amigo leitor e a estimada leitora irão ouvir falar bastante de dois grandes gênios fundadores da literatura universal: Miguel de Cervantes e William Shakespeare. Contemporâneos apesar de jamais terem cruzado seus caminhos, os dois escritores, além de legarem para a humanidade algumas das obras mais significativas e basilares da literatura, deram de morrer no mesmo ano, o que reveste 2016 de uma aura especial para sublinhar os quatro séculos de morte tanto de um quanto de outro.
Os países natais de ambos os próceres já estão preparando batalhões de programações especiais para celebrar a data, tanto na Inglaterra quanto na Espanha. Quem tiver a felicidade de estar por lá em abril, haverá de ser brindado com ótimas opções culturais específicas. Mas como costuma acontecer quando se fala sobre essa coincidência interessante do ano da morte dos dois autores, vale ficar atento para um equívoco histórico que costuma ser repetido à exaustão por conta do desconhecimento de causa, e é preciso estar alerta para não engrossar o caldo dos equivocados. Tanto o inglês Shakespeare quanto o espanhol Cervantes não só morreram no mesmo ano, como também morreram na mesma data: 23 de abril de 1616. Até aí, tudo bem. Só que tem uma coisa: apesar de terem morrido na mesma data, eles não morreram no mesmo dia.

Acontece que a Europa, naquela época, vivia um processo gradativo e lento de transição do antigo Calendário Juliano (criado ainda na época do Império Romano por Júlio César e repleto de imperfeições) para o Calendário Gregoriano (imposto por ordem do papa Gregório XIII, mais acurado e em vigor até os dias de hoje). Porém, para migrar de um calendário ao outro, era preciso fazer um “salto à frente” de dez dias, o que na Espanha aconteceu em 5 de outubro de 1582. O dia seguinte já era 15 de outubro. A Inglaterra só veio a adotar o Calendário Gregoriano em 1752, ou seja, na época de Shakespeare, os ingleses andavam atrasados 10 dias em relação à Espanha. Cervantes, portanto, morreu mais de uma semana antes de Shakespeare. Ambos no dia 23 de abril de 1616. Ou seja: nem tudo é como parece ser.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de janeiro de 2016)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Big Brother Pinguim

Em tempos de nova edição do Big Brother Brasil (a incrível e inimaginável 16ª edição), o assunto que vou abordar a seguir reveste-se de importante véu de relevância (sim, porque, no Brasil, o país do BBB, tudo o que tenha referência ao programa, a partir do momento em que outra edição se inicia, passa a ser da maior relevância, como bem sabemos). Vamos falar dos pinguins da Antártida. Que cara de espanto é essa, madame? Acha que pirei na mandioquinha? Ah, mas isso já faz tempo que sim, nem preciso confessar. Mas siga lendo que a senhora vai se surpreender.
Eu não gostaria de ser um pinguim na Antártida. Assim como também não gostaria de ser um participante do BBB. E se não sou um participante do BBB é porque, na condição de pessoa em plena posse de minhas faculdades decisórias, decidi jamais enviar vídeo meu dançando axé de sunga para a produção do programa a fim de ser avaliada minha potencialidade como “brother”, o que garante minha ausência em qualquer edição do programa televisivo mais amado do país de Machado de Assis. Agora, se não sou pinguim na Antártida, isso não se dá por decisão pessoal e sim por uma dádiva da Natureza, que me fez gente no Brasil (apesar de, no meu país, o BBB estar na sua 16ª edição, mas isso é um detalhe que os pinguins da Antártida no precisam ficar sabendo).
O que me faz não querer ser pinguim na Antártida com a mesma intensidade com que não quero ser um participante do BBB são as dezenas de câmeras que os cientistas instalaram em certa região lotada dessas aves lá nas friagens do chamado Continente Gelado. Ao todo, são 40 câmeras fotografando tudo (mas tudinho mesmo) que a pinguinzada faz, da manhã à noite, em uma determinada comunidade de pinguins, com a intenção científica de descobrir de que maneira o aquecimento global está influenciando na vida da tchurma. Então é assim: se o pinguim resolve dar um mergulho gelado, a câmera fotografa ele; se o pinguim decide tirar uma soneca sobre um iglu, foto nele; se o pinguim corre atrás da pinguina, a coisa fica registrada; se o pinguim bate bico com o outro pinguim, instantâneo da peleja.
Em resumo, foi-se a privacidade que ainda parecia resistir no mais longínquo recanto do planeta. Não dá mais nem para pensar em ser pinguim na Antártida. Desisto, hoje de noite vou assistir ao BBB. Parece até que já houve eliminação na casa. Viu, madama? Não sou assim tão alienado...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de janeiro de 2016)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Quem não se comunica...

Desde o momento em que nascemos até o findar de nossos dias, passamos a vida nos esforçando, das mais diversas maneiras possíveis, para tentar comunicar aos outros aquilo que se passa em nossas almas. Precisamos dar a entender a nossos pais, enquanto bebês, que estamos com fome, que temos dor de barriga, que queremos colo. Para isso, metemos a boca no mundo e funciona, nossos pais entendem e nos dão de mamar, aquecem nossas barrigas com colo e nos acalentam. Aos poucos, vamos aprimorando nossas formas de comunicação utilizando a fala, os gestos, a escrita, o grito, o memorando, o beliscão, o riso, o bocejo, o whatsapp e por aí afora, sempre buscando expressar externamente as emoções, os pensamentos, os desejos, as elaborações que pulsam em nosso íntimo. Nem sempre funciona.
Nem sempre funciona porque não somos todos iguais e não temos a capacidade de habitar, perscrutar e invadir a consciência dos outros (felizmente) para bisbilhotar o que vai por elas (excetuando-se os telepatas). Precisamos, portanto, lançar mão aos inumeráveis meios de comunicação para darmos a entender aos demais aquilo que dentro de nós já está claro, claríssimo, ora pois. Você está em Kuala Lumpur e quer comer. O que faz? Ora, utiliza-se de um gesto simples com as mãos e a boca e pronto, logo é encaminhado a um restaurante de comidas típicas próximo ao hotel. Comunicou-se e solucionou o problema. Está com sede em Timbuktu? Ora, você sabe o gesto, não é preciso ser muito esperto. Uma conhecida minha fez compras, locomoveu-se, encontrou cyber café, pegou táxi, pediu suco de laranja e fez amizades na China somente dizendo “yes” e sorrindo.

Mas nem sempre funciona. Anos atrás, em visita a Buenos Aires, senti vontade de comer uma porção de arroz para acompanhar um suculento bife de chorizo. Chamei o garçom e, ao invés de falar meu português sulista carregado de “erres” fortemente pronunciados, decidi florear e pedi arroz de forma carioca, os “erres” sibilados com o som de “agás” sussurrantes: “ahhoz”. O garçom me olhou estranho mas, afinal de contas, cliente é cliente, mesmo sendo brasileiro, e sumiu-se para a cozinha, voltando de lá pouco depois me trazendo um potinho repleto de dentes de alho. Meu “ahhoz” se transformou, em seus ouvidos, em “ajos”, ou seja, alho. Cada louco com sua mania. Especialmente, brasileiros... Comunicar-se, enfim, é uma arte. Imperfeita, ampla e imprevisível, como todas as artes. Que o digam os cronistas mundanos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de janeiro de 2016)

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Porongos e flores

Mais uma vez a boa vontade da natureza entrou em ação e ofereceu de bandeja, para quem ficou na Serra no final de semana, um domingo ensolarado, quente, limpo, convidativo, inspirador. Já de manhã cedinho ele chegou fazendo a todos o convite para desentocar e inventar programas que fizessem jus às benesses do tempo bom, essa conjunção meteorológica ideal que almejamos todos os dias de nossas vidas, apesar de eu fazer parte do grupo dos que também amam chuvas e trovoadas de vez em quando. “Vamos, vamos, saiam de casa, inventem programas, aproveitem-me em minha plenitude”, dizia o sol, cujos raios entravam pelas janelas, aqueciam nossos pés e aceleravam nossas almas.
Convite aceito, chamado atendido, a dúvida agora era: comer flores no Vale dos Vinhedos ou devorar porongos em Criúva? Sim, porque as opções eram muitas, especialmente pelo fato de a Região da Uva e do Vinho estar a mil com o início da vindima, efeméride anual que atrai turistas de todas as partes para a região. As flores? Ah, as flores agora integram os cardápios dos restaurantes chiques que se propõem a oferecer ao turista uma experiência gastronômica diferenciada e você pode saboreá-las como acompanhamento ou entrada, não sei direito, ainda não fiz a experiência. A família, aliás, optou por rumarmos a Criúva justamente por temer minhas reações à mesa no Vale dos Vinhedos no restaurante que serve flores, pois que já me viram olhando estranho para o arranjo floral que enfeitava uma mesa dia desses e acredito que não confiaram nas minhas promessas de bom comportamento.

Então, fomos a Criúva, vivenciar uma experiência gastronômica embasada na típica comida de fazenda servida na Casa Verde, preparada pelo casal Claudia e Átila, cujo tempero especial é a larga simpatia e o acolhimento humano. E foi ali que nos botamos a comer porongos. Como o atilado leitor e a sábia leitora sabem, porongo é o fruto de uma família de vegetais que proporciona a criação de cabaças e, na região dos Pampas, o fabrico das cuias de chimarrão. Só que, quando colhidos apenas dois dias após florescidos, podem ser apreciados como uma deliciosa salada, preparada em conserva: os poronguinhos. Fartamo-nos de poronguinhos em Criúva e eis que agora me tornei um comedor de cuias. Uma das delícias da vida é isso: estar sempre a postos para as surpresas e as novidades que ela engatilha. E ah, flores... Não desisti de vocês...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de janeiro de 2016)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Ela dorme

Ela dorme. Gosto de observá-la dormir. Renova-se em mim um profundo sentimento de ternura sempre que a vejo adormecida ao meu lado. Talvez seja devido à frágil exposição a que a pessoa se coloca quando admite entregar-se ao sono ao lado de alguém, explicitando a extrema confiança que deposita nesse alguém. Faz-se necessário, então, ser merecedor dessa extrema confiança. Sinto-me merecedor e sigo observando-a.
Detenho-me a apreciar seus traços quando adormecida. Uma suavidade angelical parece apossar-se de suas feições nesses longos e profundos momentos, como se sua verdadeira essência viesse à tona e ficasse exposta, em toda a sua candura. Os lábios entreabertos, as pálpebras cerradas, a linha das sobrancelhas descansadas, os cabelos espalhando-se displicentes por toda a área do travesseiro. É bonito de ver. O que será que sonha? Passeia por mundos coloridos e fantásticos, desses existentes somente no mais profundo dos abismos do subconsciente? Quem os habita? A quem ela encontra quando flutua por esses oníricos domínios? O que faz? O que pensa? Quais as angústias e insatisfações que vê compensadas e equilibradas a partir dos enredos aparentemente insanos, aos quais agora se entrega, conduzida pelo secreto roteirista de seus sonhos? Navega por um mar amarelo? Enfrenta leões de seis cabeças destemidamente? É engolida por um girassol gigante? Cai em um abismo e não consegue gritar por socorro?
Acho que sim, porque, agora, resmunga algo incompreensível e vira-se para o outro lado, como que adivinhando meu observar a seu lado. Mas segue dormindo. Lembro que eu nutria o mesmo fascínio silencioso pelas intermináveis horas de sono às quais se entregava diuturnamente Bioy, o gato que me deu a honra de habitar meu lar ao longo de sete felizes anos, algum tempo atrás. Imagino que também sonhava sonhos - sonhos de gato -, uma vez que resmungava e se espreguiçava dormindo no meu colo. Se subia no meu colo para ali adormecer, é porque também confiava. Eu encarava isso como o maior dos elogios e das honrarias, afinal, ser digno da confiança de um gato não é para qualquer um.

Dias atrás transportei de carro meu afilhado de quase quatro anos de idade de um lado ao outro da cidade e ele adormeceu na cadeirinha instalada no banco traseiro. Acredito que confie na direção do dindo. Fiquei, de novo, lisonjeado. Fora isso, só torço para nunca causar sono no leitor. Aí sim, desconfiarei da confiança...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de janeiro de 2016)

sábado, 23 de janeiro de 2016

Cláusulas pétreas do ser

Ao longo da vida, com o acumular das experiências e das reflexões sobre elas, vamos moldando as bases fundamentais de nossa essência e constituindo um conjunto estrutural de conceitos, visões e comportamentos que passam a reger o nosso modo de ser, a forma como vemos a nós mesmos. Nem sempre temos clareza de onde vêm determinadas convicções, onde reside a fonte original na qual sorvemos, em tempos passados, a inspiração para estruturarmos alguns traços de nosso caráter. No entanto, possuímos enraizadas, dentro de nós, certas cláusulas pétreas imexíveis que nos dão a certeza, todos os dias, ao acordamos, de que continuamos sendo nós mesmos, ao menos, aos nossos próprios olhos.
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 - 1986) acreditava em Deus e essa sua convicção lhe passou a ser inegociável quando já aprofundado em sua terceira idade. Não havia mais sentido, para ele, perder tempo discutindo a questão com algum interlocutor que desejasse convencê-lo do contrário. O assunto era para ele uma cláusula pétrea vital já resolvida. Mas Borges era Borges e é óbvio que devemos estar sempre abertos ao diálogo e acolhermos com atenção os pontos de vista diferentes dos nossos, justamente porque assim podemos enriquecer nossas visões de mundo, eventualmente alterá-las ou mesmo consolidarmos nossas próprias convicções.

Dia desses, deparei na estante de livros em casa com uma obra que li quando tinha uns 16 anos de idade. Trata-se de “Como Vejo o Mundo”, uma confissão de convicções escrita pelo físico Albert Einstein (1879 - 1955), com as páginas repletas de frases sublinhadas por mim mesmo. Uma delas me chamou a atenção em particular, com Einstein dizendo: “Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra... deixo de me levar, a mim e aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor”. Ao reler essas frases, reconheci-me nelas em essência. Fiz coro às palavras e aos conceitos de Einstein, a partir de uma leitura que moldou em mim, décadas atrás, algumas cláusulas pétreas sem que eu lembrasse da fonte. Ou será que já estavam consolidadas àquela época e, por isso, o ato de sublinhá-las, como a encontrar eco nas palavras do autor para o que já era vivo dentro de mim? Vai saber. De qualquer forma, é interessante descobrir as fontes de algumas de nossas melhores convicções. Afinal, refletir sempre pode gerar emoções similares às aventuras radicais dos melhores parques de diversões.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de janeiro de 2016) 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Bem longe de Paris

A recorrência é o ingrediente responsável pela degradação do fascínio. Sim, porque tudo aquilo que vira recorrente, ou seja, que se transforma em banal devido à repetição, acaba lançando sobre os sentidos o véu da rotina, deixando esmaecer a excitação natural que antes essa mesma fonte de prazeres exercia. O conhecido fica dominado, o repetitivo se transforma em previsível e o previsível não encanta. A não ser que saibamos renovar dentro de nós mesmos nossa própria capacidade de espanto e de encantamento com aquilo que já passou a fazer parte de nossa rotina. Mas aí é com a gente mesmo, depende de nós. E a experiência nos mostra que nem sempre temos disposição para fazer acontecer aquilo que depende de nós, somente de nós.
É por isso que agradeço todos os dias pelo fato de eu não ter nascido e não morar em Paris, por exemplo. Porque quem nasce e mora em Paris jamais poderá usufruir da sensação arrebatadora que é viajar pela primeira vez na vida a Paris e caminhar por aquelas avenidas repletas de História, detectar ao vivo o charme que até então só conhecia por meio de livros e filmes, deslumbrar-se com a majestade das construções, sentar a um café e pedir uma taça de vinho nacional, essas coisas. Ao nativo de Paris é negada a graça de ser turista em Paris. Ah, que bom ter nascido bem longe de Paris! E que dizer da maldição de Bob Dylan? Bob Dylan encerra em si uma contradição insolúvel: ele é, ao mesmo tempo, a única pessoa do mundo que compareceu a todos os shows de Bob Dylan, mas também é a única pessoa do mundo que não pode ir assistir a um show de Bob Dylan. Ah, que bom não ser Bob Dylan!

Que bom também não ser Ítalo Calvino, nem Machado de Assis e nem Juan Rulfo, pois só assim posso me deleitar com a leitura de livros escritos por eles, desfrutando na plenitude o sabor da novidade expressa pela arte dos gênios. E que bom, mas que bom mesmo, não morar pertinho de nenhuma padaria ou confeitaria. Porque eu detestaria ter meu sentido do olfato anestesiado para o prazer de detectar, de repente, o aroma irresistível de um pão quentinho recém saindo do forno, que é um dos melhores cheiros que podem existir no mundo. Não sei se isso acontece com os vizinhos das padarias, mas aposto que ocorre com os padeiros. Ou não, caso eles saibam exercitar o poder de redespertar e renovar constantemente o encanto por aquilo que amam. Eis aí um grande segredo para muitas coisas...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de janeiro de 2016)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Crer ou não crer

Tem quem acredita e tem quem não acredita. Isso, referente a tudo na vida: Deus, Céu, Inferno, vida depois da vida, amizade entre homem e mulher, político honesto, Papai Noel, dieta da lua, ida do homem à lua, humor regido pela lua, Elvis não morreu, privacidade na internet, Clube Bilderberg, homeopatia, alopatia, lisura nos sorteios de loterias, a primazia do ovo sobre a galinha, fantasma, alma penada, Monstro do Lago Ness, previsão meteorológica, livros do Paulo Coelho, Inri Cristo, Coelhinho da Páscoa, Bicho Papão, Garibaldo, cronistas mundanos, cura pelas alfaces, a paz no mundo, essas coisas.
As pessoas costumam se dividir em dois grupos opostos quando entra em cena algum dos temas acima citados (e também todos aqueles outros milhares não citados por absoluta falta de espaço e imaginação do autor): os que acreditam e os que não acreditam. E daí está posta a celeuma. Empurram-se argumentos um contra o outro, na tentativa desesperada de, ao mesmo tempo, calar o oponente, sobrepujá-lo com sua visão de mundo, não dar ouvidos às suas visões de mundo, consolidar sua própria crença (ou descrença), falar mais alto, convencer a si mesmo de sua própria sagacidade e, por fim, dar o assunto por encerrado, convicto de que venceu a discussão e desvendou algum dos (até então) insondáveis mistérios da humanidade.
Isso é assim, bem o sabemos. Porém, se analisarmos com mais cuidado, perceberemos a existência de alguns subgrupos quando a questão é a crença ou a descrença em fatos que a ciência não comprova categoricamente. Há também o grupo dos que desejam acreditar. Esses são os céticos não-convictos, aqueles que ficam com um pé atrás mas não ousam desacreditar por completo, a fim de evitar surpresas na hora “H”. São os apregoadores da máxima “não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. Eles acham mais prudente manter o ar de descrença superior em relação a alguns desses temas, porém, permanecem abertos a acolher evidências, por tênues que sejam, que lhes convençam do contrário.

É assim em relação aos discos voadores e à vida extraterrena inteligente. Eu acredito desacreditando e não acredito acreditando. Afinal, neste mês de janeiro faz 20 anos do caso do ET de Varginha, fato que traumatizou a população da pequena cidade do interior de Minas Gerais em 1996 e que até hoje não está bem explicado. Algo aconteceu lá. Exatamente o quê? Vai saber...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 21 de janeiro de 2016)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Subindo pelas paredes

O Ministério das Crônicas Mundanas (Microm) adverte: pais, não leiam esta crônica a seus filhos; avós, não a leiam a seus netos; tios, não a mostrem a seus sobrinhos; padrinhos, afastem dela seus afilhados; professores, retirem-na das salas de aula. Sim, porque a mundana crônica de hoje contém informação chocante imprópria para menores de seis anos de idade. Maiorzinhos (tipo dos sete aos 15) já estão teoricamente aptos a começar a lidar com as decepções que a vida enfileira, mas, mesmo assim, se forem lê-la, melhor fazê-lo acompanhados de adulto responsável. Já os adultos, responsáveis ou não, estão sujeitos à própria sorte e leiam por sua conta e risco, se assim o ditar a inegociabilidade de sua curiosidade.
Não, madame, fique tranquila, não vamos falar aqui do Papai Noel, nem do Coelhinho da Páscoa, muito menos do motorista cordial e do homem civilizado, essas coisas que a gente descobre que não existem assim que se abandona o bico. Nós vamos falar é do Homem-Aranha. Como é? A senhora acha baboseira todo esse introito só para vir com a informação de que o Homem-Aranha não existe, coisa que seu netinho de quatro anos já afirma quando veste a máscara do escalador de paredes e anuncia que aquilo é “só de brinquedo”, com o intuito de tranquilizar toda a família? Mas não é isso, madama. Que o Homem-Aranha não existe, isso até meu afilhadinho de também quase quatro anos já sabe. O furo é mais embaixo, está mais enredado. Veja no parágrafo a seguir.
O problema, madame, não é que o Homem-Aranha não existe. É que cientistas norte-americanos, em conjunto com cientistas britânicos (veja o peso da coisa), anunciaram esta semana em uma publicação científica, após exaustivas pesquisas, provando por A mais B (e parece que até o C está envolvido na coisa), que o Homem-Aranha não só não existe como (agora vem) não pode e nem poderá existir. O Homem-Aranha, senhores pais e responsáveis, não pode cientificamente existir porque nenhum ser maior do que uma lagartixa (diz a pesquisa, li isso na notícia) é capaz de possuir e/ou desenvolver a aderência necessária para caminhar na vertical em paredes ou nos tetos, ao redor do lustre da sala.

Ou seja: seu netinho até pode saber que o Homem-Aranha não existe. O que ele pode não estar preparado para saber é que nem ele, nem ninguém, poderá vir a se transformar no Homem-Aranha. Nosso horizonte humano de heroísmo ainda se restringe ao âmbito do exercício diário da cidadania mesmo. Fazer o quê?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de janeiro de 2016)

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Rosquinha de ouro

Bom, né, madame, daí é aquela coisa que a senhora já sabe: você acorda de manhã cedinho, toma seu desjejum sem esquecer das pílulas e do cereal, dá uma passada de olhos nos jornais do dia, confere os apontamentos na agenda para lembrar dos compromissos, dá-lhe de novo aquela espreguiçada para exorcizar a lerdeza e põe-se a navegar, já que também somos normais, como todo mundo. Navega pra lá, navega pra cá até que encontra um site interessante onde atracar por alguns minutos o barco conduzido pelo mouse do notebook. É aí que surgem as coisas, como já podemos prever.
A senhora sabe, né, nosso pacto: aquilo de estranho e estapafúrdio que eu descubro, logo trato de compartilhar com a madama, para que depois não venha me acusar de não lhe informar as coisas e a senhora ficar pagando mico com cara de lontra entre as amigas na hora do chá, a xícara suspensa na mão a meia viagem entre o pires e os beiços, todas elas comentando o tema do momento e a senhora a ver navios imaginários que cruzam ao longe lá em Torres. Pois bem, então, a última é a seguinte: sabia a senhora que os americanos andam agora comendo ouro? É, sim, senhora, ouro 24 quilates, ainda por cima. Pó de ouro, para ser mais exato. Como assim? Siga lendo.
Pois, em Nova Iorque, um restaurante de uma cadeia tradicional que produz os doces conhecidos como donuts passou a oferecer no cardápio um sabor que vem polvilhado com pó de ouro 24 quilates. A americanada está devorando ouro, madame, conte isso para as suas amigas e veja a senhora a cara de samambaia delas, amanhã, na hora do chá. E sabe quanto custa cada rosquinha? Cem dólares! Que coisa: esvazia o bolso e trucida o estômago. Só que, aí, fui pesquisar, que a senhora sabe que eu pesquiso. E, segundo rezam as lendas em vários sites da internet, papar ouro até que faz bem para a saúde. Diz que rejuvenesce a pele e elimina toxinas do organismo. Diz ainda que mastigar ouro é moda entre os chiques americanos e europeus, especialmente como ingrediente em chocolates finos. Esses ricos, cada uma, não é mesmo, madame?

Só que assim, né, a senhora abra o olho. Não conta essa para o marido. Vai ser o que ele precisa para aparecer em casa, amanhã ou depois, sem a aliança de casamento no dedo e tentar aplicar uma típica desculpa de esposo rico europeu: “não é nada, querida, desencana: senti fome no meio da tarde e fui roendo, roendo...”.
(Crônica  publicada no jornal Pioneiro em 19 de janeiro de 2016) 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Frango domingueiro

Domingo ensolarado com tempo firme, temperatura agradável, brisa soprando de leve e agenda zerada é daquelas conjugações raras que, quando une todos esses elementos, se transforma em grata surpresa. Por mais que apostemos na capacidade de acerto da previsão meteorológica (nisso, sou um homem de pouca fé), flagramo-nos estupefatos quando, ao saltarmos da cama no amanhecer do domingo, o cenário que se nos apresenta da janela do quarto é esse que descrevi no início desta mal digitada mundana crônica. Quase não acreditamos no que estamos vendo.
Foi assim ontem, domingo, que o dia se apresentou para mim. Estava tudo ali: sol radiante, tempo firme, calor com brisa, agenda vazia, as horas todas disponíveis. Que delícia! Frente à atipicidade (eita!) do acontecido, chega-se quase a ficar paralisado, sem saber exatamente o que fazer. Sim, porque, em domingos chuvosos, emburrados, ventosos e úmidos, com os quais tão bem estamos acostumados aqui na nossa gaúcha Serra, sabemos exatamente como proceder: aparafusamo-nos no sofá da sala, derrubamos o estoque de pipocas de micro-ondas e mandamos ver no Faustão. É fácil, porque não precisamos, nesses casos, exercitar nossa criatividade frente ao ócio.
Porém, quando o domingo se oferece assim, sorridente e convidativo, o que fazer? É preciso pensar rápido, chacoalhar da cama a família, pentear o cabelo das crianças, enfiar o café da manhã goela abaixo de todos, desenterrar os calções de banho, engalanar-se coma camiseta do time do coração e rumar para a praia (se for perto), ou para o clube (se for sócio), ou para o balneário (se houver grana no bolso). Ou, ainda, telefonar para a casa de algum parente que certamente vai fazer churrasco (e que tenha piscina de plástico, ao menos) e se encostar com a família toda (sogros, cunhados e pais são sempre as melhores escolhas nessas horas). Ou botar-se você mesmo a correr de última hora atrás do supermercado aberto que lhe vai fornecer o saco de carvão, o salsichão, a costelinha e a maminha (bem passadinha, para as senhoras) para salvar o domingo (ah, e o par de limões para a caipirinha).

De minha parte, singrei as ruas do bairro atrás do melhor ponto de venda de frango assado, com polenta e maionese. Quanto mais na beira da calçada, melhor. Quanto mais gente na fila, melhor ainda (sinal de qualidade frangal e chance de socializar). Ah, um frango assado num domingo ensolarado de meio-dia! É essa lembrança que abastece meu ânimo de gás para começar a semana. Cada um com suas pequenas alegrias...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de janeiro de 2016)

sábado, 16 de janeiro de 2016

Essa tal Sétima Arte


Final de semana passado rolou a premiação do Globo de Ouro, nos Estados Unidos, concedido pela Associação dos Correspondentes Estrangeiros de Hollywood aos melhores em várias categorias do cinema e da televisão. Costuma-se dizer que o Globo de Ouro funciona como uma espécie de prévia do Oscar, cuja cerimônia acontece semanas depois (este ano, a entrega do Oscar está marcada para o dia 28 de fevereiro; prepare a pipoca, o travesseiro e o bule de café preto). É a festa da dita Sétima Arte, que embala o começo do ano dos apreciadores de produções cinematográficas e televisivas, já que os seriados de TV conquistaram um grau de maturidade estética à altura do que se costumava ver somente nas telonas.
Tá, mas, espera aí. Afinal de contas, por que “sétima arte”? Existem seis anteriores a ela? Quais são? E qual seria a oitava, uma vez que as histórias em quadrinhos são consideradas a nona arte? Esse tipo de coisa que passa como nuvem pelos neurônios da gente tarde da noite, recostado no travesseiro, assistindo à televisão, não pode passar batido. Porque, senão, o mesmo impasse volta dias depois, a gente se questiona de novo em hora imprópria (dirigindo o carro, tomando banho, fazendo a barba, jogando futebol, esquiando nos Alpes) e mais uma vez deixa passar. Nanana, isso precisa ser solucionado. Para tanto, uma visita aos alfarrábios se faz necessária.
E a gente retorna da visita aos alfarrábios sabendo das coisas, solucionando o pequeno impasse informativo e pronto para seguir adiante, a mente liberta dessas fumacinhas que obscurecem o entendimento das coisas. Como é madame? Também quer saber? Bom, agora a senhora me colocou na obrigada, afinal, um cronista mundano precisa cultivar a boa relação com seus leitores compartilhando aquilo que descobre. Certo, a pedidos, então lá vai. Até meados do século 19, vigoravam as seis artes clássicas, elencadas meio que por ordem de aparição na história da humanidade, a saber: música, dança, pintura, escultura, teatro e literatura.

Daí veio a tecnologia decorrente da Revolução Industrial na Era Moderna e surgiu o cinema, que ganhou, então, status de sétima arte. A oitava seria a fotografia (que surgiu antes e possibilitou o cinema, correto, mas passou a ser desenvolvida como arte um pouco mais tarde, dizem os estudiosos da coisa). E agora, os quadrinhos, a nona arte. Viu, madame, como é importante saber das coisas? Pesquisar as coisas? Ler crônicas mundanas? Já temos assunto para a hora do chá...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de janeiro de 2016)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Detalhes tão pequenos

Tudo pode ser uma questão de detalhes. Os detalhes, apesar de denominados como detalhes, nem sempre precisam ser “meros”. Meros detalhes. Nem sempre. Às vezes, são justamente eles, quando nada meros, que fazem toda a diferença e influenciam na tomada de decisões, determinam atitudes, restringem ações, ampliam movimentos. Há profissões, inclusive, que se sustentam na observação e valorização dos detalhes. Pergunte aos detetives. E às costureiras. Ignore o centímetro para ver se constrói o metro (boa essa, hein?).
Vamos aos exemplos da vida prática. A senhora gosta quando entram em cena os exemplos, não é, madame? Confessa que eu sei, já a conheço bem. Mas vamos lá. Você (eu escrevo “você” para despersonalizar a coisa e a senhora já acha que estou falando de mim mesmo, némesmo?) vai a uma churrascaria, louco para se fartar de churrasco, só pensando naquelas carnes suculentas transitando livres pelo salão trespassadas pelos espetos que os garçons desfilam por entre as mesas, dizendo “sim” para a costela, “sim” de novo para a picanha, “sim, claro, manda ver” para o cupim, só que... só que... nada de virem os coraçõezinhos. Cadê os coraçõezinhos? Não deveria ser uma das primeiras coisas a ser arremessada ao prato do comensal na churrascaria assim que ele chega, junto do salsichão e do franguinho assado? Pois é, mas... nada dos coraçõezinhos.
Daí você (“eu”, né, madama?) resolve tomar uma atitude. De boca cheia mesmo, cuspindo farofa, puxa o avental de um dos garçons que já vai cruzando reto com o abacaxi empalado e pede para ele pelos coraçõezinhos. E daí voceu (“voceu” = você mais eu, para facilitar a vida de todos) fica sabendo da surpresa: não servem coraçõezinhos nessa churrascaria. Mas como?! Como assim, “não servem coraçõezinhos”? Onde já se viu, churrascaria repleta de churrasco, abacaxi e saladas, e desprovida de coraçõezinhos? Claro que voceu não vai se fartar de coraçõezinhos, mas eles, em se tratando de churrascaria, são um detalhe fundamental. Não se volta mais lá.
Detalhes como esses equiparam-se a bar de clube que não faz caipirinha; estabelecimento comercial que não bajula cliente; cafezinho sem copinho com água; casamento sem cafuné; automóvel sem tapete de borracha; namoro sem flores; flerte sem piscada de olho; livro sem prefácio; zoológico sem macaco; café da manhã de hotel sem cereal; crônica sem sal; marmelada sem açúcar; “bom dia” sem resposta.

Detalhe, apesar de detalhe, às vezes, representa tudo. Brincar, rende até crônica de cronista mundano.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de janeiro de 2016) 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Só se fala em outra coisa

Dona Esmeraldina é uma senhora muito chique, muito elegante, muito sociável e socialite por essência. Lendo essa singela abertura a respeito dela mesma, Dona Esmeraldina gostaria que este humilde escriba acrescentasse também que ela é “muito social”, uma vez que participa religiosamente de campanhas de cunho benemerente como a do agasalho, jantares e chás beneficentes e doações por telefone a entidades diversas. Pois bem, então, Dona Esmeraldina é, também, muito pelo social. Esteja dito.
Dona Esmeraldina é, na essência, uma pessoa do bem. Quem a conhece, sabe o quanto ela sofre com as notícias ruins que vêm de todas as partes do mundo, como a fome em Biafra, a violência no Paquistão, a crise nas bolsas asiáticas. Ah, sim, lógico, Dona Esmeraldina possui muitas bolsas e essa questão das bolsas a toca com intensidade naturalmente maior. “Mas, fazer o que, não é, minha filha: quem não tem cão, dança no mato”, diz ela, resignada, acompanhada por um longo suspiro.
A Dona Esmeraldina é assim: ela subverte sem querer os ditados populares e acaba criando novas metáforas, na maioria das vezes, de difícil compreensão, mas que, para ela, caem como uma luva sobre um espinheiro, tá me entendendo? Ao receber, de quando em vez, em sua sala de estar repleta de almofadas turcas, este humilde servo das letras para o café da tarde, ela não se furta de, antes do caloroso, cheiroso e fofo abraço, exclamar; “ah, que bom revê-lo, quem é vivo sempre desaparece”! Mesmo com a lógica inversa, ela não deixa de ter razão, uma vez que, conforme reza a natureza, só haverá de desaparecer quem vivo for.
E ao longo da animada conversa regada a chás orientais, croissants, madeleines e macarons (onde será que ela consegue macarons?), vão surgindo as pérolas. “Antes só do que desacompanhado”, fulmina, ao defender as benesses dos momentos de introspecção, quando se recolhe a seus aposentos para ler Paulo Coelho. “Só se fala em outra coisa”, ao compartilhar democraticamente a fofoca mais badalada da semana. “Quem confere a fera, confere, será ferido”, prognosticando coisas horríveis a se sucederem contra quem pratica despudoradamente a maledicência alheia. E, quando tudo dá errado, frustrando seus planos, exclama, desolada: “é a Lady Smurf”, provavelmente tentando fazer alusão a alguma súbita onda de azar matreiramente jogada contra ela pela duendezinha azul dos desenhos animados, a Smurfete. Não? A senhora acha que não é isso? Ah, conhece a Dona Esmeraldina? Então a senhora sabe bem do que estou falando...


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 14 de janeiro de 2016)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Terapia fonada

Fui vítima de uma dose vendavalesca de gentileza na manhã de segunda-feira (“próxima passada”, como diriam os de antanho, termo bastante comum entre aqueles que viveram nos tempos em que se escrevia e se remetia cartas). Não é comum sermos alvos de gentilezas inesperadas no iniciar de uma semana, especialmente em uma segunda-feira, dia tão injustamente malquisto por gatos alaranjados e por aqueles que estão infelizes com seus trabalhos, com suas situações no mundo, com coisas externas e internas. Como não sou alaranjado, nem gato, e tampouco ando infeliz, não preciso muito para que alguma boa surpresa ilumine meu começo de semana.
Mas ah! Um elogio... Um elogio amplo, sincero, desbragado, entregue diretamente por telefone pela pessoa disposta a elogiar, sem papas na língua, isso tem o poder de furar toda nuvem carregada que eventualmente se esteja armando nos céus da existência de qualquer mortal. A prática, por sinal, tem sido usada com tanta raridade entre as gentes do mundo hodierno (“hodierno” é outro termo arcaico usado pelas pessoas de antanho, daquele mesmo antanho das missivas, das epístolas e do agir humano) que chega a paralisar a pessoa-alvo das frases elogiosas. Confesso que fiquei boquiaberto, estupefato, feliz e radiante com o fluir da cascata de elogios, enquanto os recebia.
Não há presente melhor a ser compartilhado do que um elogio espontâneo, sincero e – o melhor de tudo – inesperado. Isso renova as baterias, recarrega as forças vitais, esculpe no rosto um sorriso, protagoniza na alma uma faxina, rejuvenesce a pele, elimina rugas, interrompe a queda de cabelos, desintoxica o organismo, expulsa radicais livres, exorciza fantasmas de todas as estirpes. Acho até que emagrece. Bom, se emagrece, não sei, mas que nos deixa mais leves, deixa. Senti-me, segunda-feira passada, flutuando sobre nuvens ao encerrar do simpático telefonema.

E o que ganhou com isso a pessoa que telefonou? Ora, seguramente ganhou em dobro tudo aquilo que produziu em mim e, de lambuja, a alegria de ter feito uma ação humana de inestimável valor sem gastar nada, ou, no pior das hipóteses, apenas o custo de uma ligação urbana de cinco minutos. Bem mais barato do que qualquer produto ou técnica de rejuvenescimento. Além disso, tirou das cinzas do esquecimento um ato de extrema civilidade, comprovando que nem tudo está perdido e que não estamos sós. O mundo, prezado leitor, estimada leitora, não foi totalmente tomado pelos “odiadores”. Ele ainda tem, sim, lugar para gente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de janeiro de 2016)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A viagem do camaleão

O cantor inglês David Bowie, que morreu domingo aos 69 anos, vítima de câncer, era um incansável camaleão que transitava com ousadia pelo imensurável espectro da expressão artística universal. Não limitava a quebra de limites à atuação nos domínios da arte que o consagrou - a música -, mas operava com destemor e desenvoltura também por outras searas da expressão artística humana, em especial, o cinema, onde intercalou momentos gloriosos, com atuações marcantes em filmes inesquecíveis, com outros nem tanto que, pelo simples fato de terem sido protagonizados por ele e seus olhos bicolores, se tornaram, também, referenciais.
Talvez poucos se lembrem que Bowie integrou o elenco de “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, o filme de 1992 que o diretor David Lynch levou às telonas depois do sucesso mundial estrondoso de seu seriado televisivo. Na trama, o cantor faz o papel de Phillip Jeffries, um agente do FBI cheio dos mistérios, como, por sinal, tudo e todos envolvidos naquela fictícia e imprevisível cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Antes disso, Bowie viveu a figura bíblica de Pôncio Pilatos em “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, em 1988. Duas grandes películas, duas ótimas atuações para soterrar as discutíveis obras em que também emprestou sua imagem anteriormente, como a fantasia “Labirinto: A Magia do Tempo” (1986), de Jim Henson; e “Furyo: Em Nome da Honra” (1983), dirigido por Nagisa Oshima.
Mas o que me empurrou mesmo de encontro ao sofá da sala à noite, defronte à televisão e ao aparelho de DVD, após vasculhar minha “filmoteca pessoal de coisas boas”, foi a urgência de homenagear o artista reassistindo a um filmaço, um cult, protagonizado por ele juntamente a duas lendas do cinema moderno: Catherine Deneuve e Susan Sarandon. Falo de “Fome de Viver”, ou “The Hunger”, no original, filme de 1983 dirigido por Tony Scott, em que Bowie interpreta um idoso à beira da morte que luta para manter não só os últimos fiapos de vida que lhe restam como também os derradeiros fiapos do amor que outrora inspirara em sua musa (Deneuve), uma vampira centenária que sofre (talvez menos do que seus amados imaginavam) ciclicamente a perda de seus amores mortais enquanto segue vivendo e usando-os como caçadores a alimentarem sua fome, essa, sim, imortal.

David Bowie, ele-mesmo, representava como poucos essa ânsia imorredoura de que padecem (ou se regozijam) aqueles que têm fome pelo Belo, que só as Artes conseguem suprir, na forma de alimento para a alma. O camaleão parte, mas sua Arte segue e seguirá suprindo a sede de muitos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de janeiro de 2016)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A felicidade do burrico

Sou a expressão viva e semovente daquela máxima que diz assim: “quem não me conhece, pensa que eu sou burro; quem me conhece, tem certeza de que o sou”. Sendo assim, o que resta para mim mesmo, que me conheço de perto e intimamente como ninguém outro? Ora, a mim resta resignar-me com a consequência de minhas tolices e administrar, da melhor forma possível, as lacunas deixadas pela amplitude de minhas deficiências sapienciais, que parecem aumentar na justa medida e proporção em que procuro saná-las. Injusto isso, pois não?
Mas é assim que é, e os exemplos, ao passo em que vou vivenciando a vida, se vão acumulando e formando uma seleta de episódios exemplares dessa asnice minha, um dos quais debruço-me a citar na sequência, para que o amigo leitor e a estimada leitora não pensem que, além da autopropalada burrice, envergo de lambuja o defeito da falsa modéstia, ao pretender ficar escamoteando a divulgação das provas no intuito de obter o beneplácito e o afago gerais, o que, aliás, um período extenso e despudoradamente intercalado como este concorre para a obtenção imediata do efeito contrário, como sei que já ocorre com o distinto leitor que empalidece ao perder o fôlego e também com a frágil leitora, que já desabou sobre o sofá e pede pelo ponto.  Respiremos e, a seguir, o dito exemplo.
Pois bem: burro que sou, achava eu que a obra “Cyrano de Bergerac”, de autoria do francês Edmond Rostand (1868 – 1918), era um romance, uma novela em prosa. Pois errei. Não é. Trata-se de uma peça teatral. Que, aliás, fez estrondoso sucesso no mundo todo desde sua estreia em 1898, tendo nos papéis principais o ator Constant Coquelin (1841 – 1909), que atuou mais de 400 vezes interpretando Cyrano; e Sarah Bernhardt (1844 – 1923) na pele da bela Roxane (personagem que, quase um século mais tarde, inspirou Sting, do The Police, a criar uma de suas mais famosas músicas).

E do alto de minha estultice, julgava eu, por puro desconhecimento, que a obra era chata, enfadonha, datada, água-com-açúcar, mimimi. Porém, seguindo uma indicação de leitura, procurei o livro, adquiri-o na sexta-feira passada e devorei-o no final de semana, transformando-se ele, ao final da leitura, em uma das melhores obras que já li em toda a minha longa vida de asno leitor. Ignorei-o por décadas, exatamente como o fazemos nós, os burros: afastamo-nos do que não conhecemos e, por preconceito, privamo-nos de maravilhas. Como, felizmente, não é possível ser burro o tempo todo, às vezes ocorrem essas escorregadelas que nos permitem sermos, de vez em quando, antas felizes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de janeiro de 2016) 

sábado, 9 de janeiro de 2016

Arrabaldeando

Nós, caxienses natos ou por adoção, vivemos em uma cidade em constante processo de mutação, que não conhece estagnação. Caxias do Sul está sempre em crescimento, mutante, ativa. Independentemente de crises econômicas, respira a necessidade de mudar, de se adequar, de se reinventar. Isso está no DNA da cidade e seus reflexos podem ser detectados em todo o amplo espectro da vida cotidiana em comum, que comungamos, nós, caxienses natos ou por adoção.
Eu, por exemplo, que não moro no centro, mas em bairro, e que dirijo meu automóvel, mantenho há anos uma queda-de-braço interessante com o sistema viário do município. Com o crescimento constante da frota e do número de motoristas a disputarem o exíguo espaço das ruas e dos lugares para estacionar, vejo-me obrigado a lançar mão da criatividade na hora de escolher o local onde deixar meu carro para atender às demandas que semanalmente me obrigam a dirigir-me ao centro. Via-de-regra, procuro escapar dos estacionamentos pagos (exceto quando chove muito ou quando estou com pressa) e opto por escolher pontos em que o rotativo ainda não chegou com sua ininterrupta e crescente teia de parquímetros, tíquetes e fiscais.
 Nesse ritmo, distancio-me cada vez mais do coração da cidade e obrigo-me a procurar lugares novos onde deixar o carro. É assim que vou descobrindo ruelas, recantos desconhecidos, ruazinhas simpáticas ainda existentes no entorno dos disputados espaços pagos, e vejo novas gentes, descubro portões, anoto mercadinhos, encontro árvores, ouço novos ruídos, sinto cheiros diferentes, identifico alguém que cozinha, um gato cruza meu caminho, uma criança chora ao longe. Ontem vi uma casinha de madeira em cima de um poste, plantada pela vizinhança no meio de uma pracinha, com água e alpiste à disposição da passarada que voa livre pelas imediações. Antes de ontem fui assustado por um cachorro que guardava o portão da residência pela frente da qual passei pela primeira vez. Susto novo, de cachorro desconhecido. Amanhã ou depois, talvez, já sejamos amigos, enquanto ainda conseguir estacionar nas proximidades.
E daí, caminho. Ando quadras e quadras até meus destinos profissionais, atendendo assim, por tabela, às orientações médicas de enfrentar o sedentarismo e mexer musculatura, pulmão, coração e também a mente e o espírito, doutor, não esqueçamos deles ao falarmos sobre saúde. Porque é preciso saber buscar os oásis de humanidade mesmo em meio ao aparentemente selvagem crescimento urbano de uma cidade como a nossa. E eles existem, basta ter olhos e disposição para vê-los. Fazem bem para corpo e alma. Recomendo.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de janeiro de 2016)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Graça nenhuma

Seu erro foi ter rido. Quando viu, tinha rido. Não planejou aquele riso – quem é que planeja risos? –, sequer fazia parte da turma, estava sentado sozinho em outra mesa, não conhecia ninguém, vinha de fora, chegara no meio da tarde e entrara direto no hotel, cansado da longa viagem de ônibus iniciada ainda pela manhã. Não tinha nada com aquilo. Apenas estava ali e rira. Um riso que atrairia azar, o pior dos azares, mas quem iria imaginar isso na hora do riso?
Ainda mais quando o riso sai assim, sem aviso, sem avisar que vai vir rindo e atinge direto a cara e a honra do desconhecido que cai no chão por ter a cadeira puxada pelo companheiro de mesa por pura sacanagem depois de entornada a meia dúzia de cervejas que balançam vazias sobre a mesa chacoalhada com o tombo do qual todos na mesa de amigos riem, riso ao qual se soma e se sobressai o dele, involuntário, ali no outro canto na mesa do bar de quinta categoria escolhido para o jantar e a cervejinha pela única razão de ficar a meia quadra do hotel e facilitar ida e volta. Quem mandou rir?
Riu. Riu como reflexo incontrolável derivado do testemunho involuntário e imprevisto da queda do bêbado. Riu mas não era amigo. Riu mas não era parceiro. Não era da turma. Não tinha o direito de rir. Seu riso não foi o riso cúmplice dos companheiros de cervejada. Seu riso foi alienígena, estrangeiro, malvindo. Seu riso foi o único que soou mal aos ouvidos do quedante, apesar de, na essência, ter sido o único riso inocente risado no bar solitário da cidade estranha no avanço da noite. Seu riso invocou o peso do silêncio que baixou na mesa das seis garrafas vazias, a mesa que agora se fartava de ódio e de desejo de vingança.

A primeira facada veio pelas costas, assim que pagou a conta e saiu porta afora, rumo ao hotel do meio da quadra. Ninguém na noite escutou os golpes, ninguém na noite escutou os gemidos. Se alguém ao longe ouviu alguma coisa, foram risos. Risos de morte. Conforme ilustra este miniconto, a punhalada fatal pelas costas, real ou metafórica, pode vir de onde e de quem menos se imagina, mesmo em situações corriqueiras do dia-a-dia. Ao rir sozinho em um bar. Ao buzinar irado devido a uma fechada no trânsito. Ao responder a uma agressão gratuita feita em rede social. Ao simplesmente viver sua vida e ser quem você é. O personagem fictício deste texto poderia morrer de várias outras maneiras no mundo atual real, marcado pela intolerância e pela violência. É preciso ter muito cuidado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de janeiro de 2016)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Gentileza alienígena

Como é de lei, chego adiantado (muito adiantado) à reunião de trabalho marcada em um café da cidade, no meio da tarde. Para passar o tempo, pego o exemplar do jornal “Pioneiro” de cima do balcão e leio as notícias, os colunistas, os cronistas (tem um deles que não leio porque já sei de antemão exatamente o que escreveu), a página social, o caderno de cultura. Finda a leitura, repouso o jornal dobrado em um canto da minha mesa, como que a ofertá-lo a qualquer outro cliente, e me dedico a enterrar os olhos nas páginas do livro que estou a ler e que carrego comigo para esses momentos de espera.
Pouco depois, minha atenção é chamada por um senhor em pleno gozo da dita terceira idade, que se aproxima e, educadamente, pergunta se pode ler o jornal. Respondo que sim, claro, claro que pode, e faço um gesto largo com o braço como que a disponibilizar a ele o acesso ao impresso deitado ali no canto de minha mesa. Feito isso, retomo o mergulho à leitura do livro, pois que ainda tenho pela frente páginas e páginas de espera.
Passados alguns minutos e algumas páginas, minha atenção é novamente atraída pelo mesmo senhor que havia pescado o jornal de minha mesa. Ele se aproxima, recoloca o impresso no exato local de onde o havia tirado, diz “muito obrigado” e se retira do café. Agora, fecho o livro. Fecho para deixar a mente abrir e se render ao fascínio do pequeno grande fato que acabava de se materializar ali, naquele momento. Ora, de onde vinha aquela criatura, tão educada, gentil, humilde, delicada? Deste mundo é que não deveria ser, nem deste tempo. Sim, porque não havia necessidade alguma de ele devolver o jornal à minha mesa. Ele estava dobrado a um canto, dando claros indícios de que eu já o havia lido e de que pertencia ao estabelecimento, portanto, disponível a toda a clientela. Mas devolveu de onde tirou. Pediu “com licença” na chegada e disse “obrigado” na saída. De onde vinha?

Meu questionamento e surpresa eram plenamente válidos, porque, a este mundo e a esta época, repito, ele definitivamente não pertencia. Quem pertence a este mundo e a esta época é a criatura aquela que ontem me atropelou no bufê a quilo na hora do almoço, com sua bandeja vazia e seu ser empanturrado de fome, pressa, e desrespeito. E também o ser que invadiu o elevador porta adentro antes que eu saísse e cedesse a ele o espaço que tanto desejava dentro da caixa de metal. Uma pessoa plena de gentileza e educação como aquela só pode ter vindo de muito longe, ou no espaço, ou no tempo. E depois dizem que não existe mais magia no mundo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de janeiro de 2016)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A fila anda

Circulei pelo centro da cidade na segunda-feira, a primeira segunda-feira do ano que se inicia, logo após o acúmulo de feriados proporcionado por Natal e Ano- Novo, e o que mais vi foram filas. Filas nos caixas eletrônicos dos bancos, filas nos postos bancários, filas nas agências lotéricas, filas em lojas. Filas. Filas e filas. Poderia enfileirar o número de filas que detectei, e detectei somente uma pontinha do iceberg das filas que se formavam por todos os cantos da cidade.
Fazer fila é uma habilidade nata do povo brasileiro. Somos bons nisso. Somos profissionais das filas. Grande parte das pessoas que integravam as filas que presenciei no abrir do primeiro dia útil da primeira semana do primeiro mês do ano estava de volta à cidade após passar os feriados no Litoral ou nas casas de parentes em cidades diversas. Essa gente toda enfrentou filas quilométricas (e aqui não se trata de figura de linguagem) nas estradas no domingo anterior para chegar de volta ao lar. Quem esteve na praia enfrentou filas nos restaurantes para almoçar, filas na tenda do picolé, na tenda da caipirinha, na tenda do pastel de camarão, na padaria para comprar o cacetinho do café da manhã, no açougue para a carne e o carvão do churrasco, no caixa do supermercado.
Quem vive nas cidades depara com filas para entrar no cinema dos shoppings, filas para pagar o tíquete de estacionamento dos shoppings, filas para capturar comida nas praças de alimentação, filas para obter uma paleta mexicana (dessa fila não abro mão), fila para entrar na fila. Somos o povo das filas. Já é quase automático. Dia desses, cheguei cedo demais para uma consulta médica e tive de aguardar a abertura do consultório defronte ao portão do prédio, na calçada. Não demorou para chegarem outros pacientes que, automatica e pacientemente, logo se posicionaram atrás de mim, em fila. Ninguém ordenou nada; a fila se formou de maneira natural e, quando o portão foi aberto, subimos em fila as escadas e entramos em fila na sala de espera. Somos seres de filas. Ninguém no mundo constrói filas como nós, brasileiros.

Fazemos filas reais e filas imaginárias. Há filas para transplantes, fazemos a fila andar quando terminamos um relacionamento, enfileiramos feitos, desejos, temores, projetos, deveres, fracassos e sucessos. A fila é uma forma de expressão de civilidade. Uma instituição nacional. Enquanto seguirmos fazendo filas, nem tudo estará perdido.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de janeiro de 2016)

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Dias riscados

Calendário de mesa novo estreando sua vida predeterminada em cima da escrivaninha, ocupando o espaço destinado aos de sua espécie, onde até poucos dias atrás reinava soberano o de 2015, agora já obsoleto, guardador apenas de memórias e risquinhos. Faço risquinhos nos dias que passam nas folhas do calendário de mesa, como os filmes ensinam que fazem os prisioneiros nas paredes de catacumbas frias, profundas, úmidas e desoladas, para não se perderem na contagem do tempo das penas que lhes curvam as costas e espicham as barbas.
De semelhança a esses apenados da ficção, guardo tão-somente o hábito dos risquinhos mesmo, uma vez que vivencio da melhor maneira possível a liberdade relativa que tenho (sim, relativa, pois que, mesmo que vivesse em uma ilha deserta, nu e sem relógio, minha liberdade seria limitada pela geografia da ilha e pela produção anual dos coqueiros) e, quanto à barba, raspei-a a zero na passagem do ano e agora desreconheço essa cara redonda que me olha do lado de lá do espelho, mas deixemos isso para lá, voltemos ao calendário. Somos pautados pela passagem ordenada do tempo, nós, que teimamos em viver em sociedade, por mais que nossos sócios impostos nos decepcionem, apavorem, assustem e preocupem. Chegamos todos juntos aos mesmos dias do ano (descontadas as nuances dos fusos horários), vivenciamos as mesmas horas (com as pequenas diferenças de segundos e minutos que não chegam a comprometer), viramos sincronizadamente as folhinhas dos meses.
Vivemos o tempo oficial ao mesmo tempo. Porém, cabe a cada um de nós determinar o ritmo desse tempo a ser vivenciado. Até porque, nos diferenciamos justamente na posição em que cada um de nós se encontra na escala temporal: os jovens no início, onde o ritmo é acelerado; os de meia-idade no meio, começando a tirar o pé; os maduros nas áreas mais sólidas, quando aprendem que o fluir da vida requer uma cadência desapegada aos ditames loucos do empilhamento de segundos.
 Os risquinhos no meu calendário passei a fazê-los com mais vagar. Saboreio o início do traço no alto do quadradinho do dia impresso na folhinha, um ponto que se vai estendendo sem pressa, ao longo de dois ou três centímetros, até a base do quadro, cobrindo então, delicada e respeitosamente, o número da data que se vai para o passado. Sem pressa, pois que nunca se sabe quanto de futuro em riscos ainda se tem de fato pela frente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de janeiro de 2016)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Hoje, passado do futuro

Janus é um antigo deus romano caracterizado por ter duas faces: uma que olha para frente (o futuro) e outra que olha para trás (o passado). É o deus dos portões, das entradas e das saídas. Ele simboliza a transição entre o findar de um processo e o início de outro. É dele, portanto, que deriva o nome do primeiro mês do calendário, o mês dedicado a Janus, já que a passagem de 31 de dezembro para 1º de janeiro é um momento simbolicamente de dupla face, quando celebramos o findar do ciclo que se encerra e renovamos as expectativas para o novo período que se inicia. Mesmo que não percebamos conscientemente, nossos brindes, nessa noite, são ambíguos.
Se formos pensar a fundo, o que é exatamente que celebramos na passagem do ano, senão o fato de estarmos vivos, nós que vivos estamos, para testemunhar a chegada de um novo ano no calendário? Celebramos (os que estamos aptos a fazê-lo), em uma data carregada de significados, uma nova vitória sobre a morte, uma vez que conseguimos chegar até aqui para trocar abraços e brindes com nossos entes-queridos, mais uma vez. Não sabemos se poderemos fazê-lo daqui a novos 365 dias (366, em se tratado de ano bissexto, como este 2016), pois nada garante nossa presença no palco no próximo 31 de dezembro, tampouco as dos que amamos. Infelizmente, é assim, mas é exatamente a consciência disso que procuramos sublimar nesse momento de festa, e o fazemos bem, pois é vital para a manutenção de nossa sanidade mental e para termos forças de seguir em frente.
O fato é que não sabemos o que o futuro nos reserva. O que nos cabe, a cada um de nós, é nos esforçarmos ao máximo para fazer o que está ao nosso alcance pessoal para que as trajetórias de nossas vidas possam rimar da melhor forma possível com nossos sonhos e nossas expectativas em relação a nós mesmos. Só assim estaremos aptos a enfrentar o imponderável da melhor maneira possível, quando o imponderável se apresentar. E ele, quase sempre, se apresenta sem avisar, já que faz parte da essência do imponderável se comportar assim, de modo meio... imponderável.

Ao vivermos o hoje, estamos construindo o passado de nosso futuro. Fundamental é nos esforçarmos agora para que tenhamos, no futuro, orgulho de nosso passado, e que possamos ser hoje pessoas humanamente admiráveis aos olhos de quem viermos a ser amanhã. Eis aí o grande desafio para o iniciar de cada novo ciclo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de janeiro de 2016)

sábado, 2 de janeiro de 2016

Marcas do que ficou

Sempre gostei de retrospectivas jornalísticas de final de ano sobre os fatos que marcaram os doze meses que se botam a findar em 31 de dezembro. Nos anos 1980, aguardava com expectativa e ansiedade os programas especiais televisivos, tradicionalmente narrados por Cid Moreira, para relembrar os acontecimentos que haviam sacudido o Estado, o país e o mundo. Não havia internet e o gatilho da memória ficava por conta das televisões, dos jornais e das emissoras de rádio.
Mas agora tem internet. Tem internet e tem também a tevê a cabo, com trocentos canais, cada qual com suas retrospectivas específicas: o que marcou na música, o que marcou na moda, o que marcou nos esportes, nisso, naquilo, naqueloutro. Hoje há uma banalização das retrospectivas e confesso que sequer estaciono o olhar nos canais de tevê que se dedicam ao levantamento jornalístico do que rolou durante o ano. Até porque, Cid Moreira está aposentado. Perdeu a graça.
Mas quando a graça se perde, há que se reencontrar a graça onde quer que ela esteja. Fui dar uma vasculhada pela internet e não é que encontrei? Olha só essa: um site se deu ao trabalho de fazer um levantamento elencando as perguntas mais bizarras feitas em entrevistas de emprego ao redor do mundo, no ano de 2015. Questionários aplicados em várias empresas em diversos países foram analisados e as “pérolas”, selecionadas. Entre elas, uma me chamou a atenção: “Qual a sua princesa Disney favorita?”. Bem, o amigo leitor e a atilada leitora poderão contrapor que a pergunta até poderia fazer sentido em se tratando de entrevista de emprego para trabalhar na Disneylândia. Ok. Só que não era. Eu, por exemplo, teria dificuldade em escolher entre Cinderela, a Bela Adormecida e Branca-de-Neve. Não passaria nessa pergunta.

Outra: “Quem venceria uma luta entre o Batman e o Homem-Aranha”? Ora, o Homem-Aranha, lógico! Ele tem teia! Outra (essa aplicada pela Apple): “Qual o seu segredo pessoal”? Ora, essa é fácil. A resposta certa seria: é segredo! A lista é grande e segue nesse nível. Daí para baixo, claro. O que se tira disso? Ora, estimado e prezada: tira-se disso nada ou tudo, dependendo da capacidade de cada um extrair o que reside de sentido nas entrelinhas. De minha parte, preferiria uma retrospectiva jornalística tradicional de final de ano. Vou ligar para o Cid Moreira...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de janeiro de 2016)