segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A hora do chá

“Chá?! Você quer tomar chá?!”, perguntei estupefato ao meu afilhado de quase quatro anos de idade, tomado pelo assombro que costuma preencher todo o ser de um dindo quando é pego de surpresa pelas idiossincrasias (pois que eles já as têm) de um cidadãozinho de cerca um metro de altura (será que ele tem um metro de altura?). Imaginava que ele iria querer suco de morango, ou leite morno ou água mesmo (“fresquinha e sem gás”). Nada disso; queria tomar chá.
“Onde foi que você aprendeu a tomar chá?”, perguntei, ainda perplexo, começando a amornar a água na chaleira e descendo da prateleira a caixa dos saquinhos de chá. “No copo”, respondeu ele, de pronto, sem tirar os olhos do helicóptero que na mãozinha direita preparava-se para se chocar no ar contra um Hot Wheels azul, suspenso pela outra mão. Sim, caro dindo, aprendeu a tomar chá no copo. Não foi no prato, nem no garfo, tampouco em uma panela. Aprendeu a tomar chá no copo, ora. Com meu afilhado é assim: pergunta feita, resposta dada. Nada de tergiversações. Sejamos objetivos, afinal, o tempo voa e é preciso ainda correr lá no terraço com os tênis mais rápidos do mundo, pular no sofá, assistir desenho, rugir como tigre, se esconder da dinda, debulhar Kinder Ovo, montar quebra-cabeças de dinossauro, colorir um livrinho, ensinar a canção do robô e muito mais. Que venha o chá.
Mas já que o negócio é fazer e responder perguntas, ele também as endereça ao dindo. “Dindo, como é teu nome?”. Eu respondo, e acerto. “E como é o nome da dinda?”, prossegue ele. Respondo e acerto de novo, haja vista a cabecinha dele que balança para cima e para baixo, em sinal de aprovação.  Estou indo bem. “E do meu pai?”. Eu sei; acerto. “E da minha mãe?”. Também sei. Até aqui, contabilizo 100% de aproveitamento. “E o meu nome?”, finaliza. Faço de conta que penso um pouco. Emendo uma careta de quem puxa da memória. Ele ri. Mas eu respondo e acerto. O chá está pronto. Ele cansou de me fazer a mesma bateria de perguntas que passou a vida tendo de responder desde que se lembra existir. O chá é de abacaxi com hortelã, que ele mesmo escolheu junto com a dinda horas atrás, quando foram fazer compras no mercadinho do bairro.

Só que agora não quer mais chá. “Dindo, vamos lá fora, que uma corrida já vai começar”, me puxa pela mão, conta até três, mas sai correndo antes. Queima a largada e chega primeiro. Não adianta. Ele sempre vence. Afinal, aprendeu a tomar chá no copo. Dindo que é dindo está sempre atrasado...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de fevereiro de 2016)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A musa de Caminha

Todo poeta, todo artista, todo escritor, todo cronista cultiva o hábito de cantar, enaltecer a sua ou as suas musas. A prática começou lá na Grécia antiga, quando os primeiros narradores de feitos épicos invocavam a proteção e a ajuda das nove Musas, a inspirarem suas tarefas de cantar aos homens os feitos de deuses, de semideuses e de heróis. Dali em diante, ao longo dos séculos, tornou-se hábito procurar agradar as musas no intuito de delas receber os favores da inspiração e, aquilo que era visto como realidade tangível na época dos antigos gregos, virou uma espécie de ritual lúdico a perdurar até os dias de hoje, em que cada criador elege musas a seu bel-prazer como fonte de inspiração.
O avançar da História provocou a descida das Musas do Olimpo e, hoje, a musa não precisa mais ser deusa para ser musa, apesar do fato intrínseco de, ao ser eleita musa, tornar-se deusa aos olhos de seu admirador. E o Brasil, claro, é um celeiro de musas (e musos, vá lá). A primeiríssima brasileira a estupidificar os olhos de alguém devido à sua formosura foi uma índia anônima que circulava entre a tribo que testemunhou a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral nas praias do Brasil ensolaradas em 22 de abril de 1500.

Na carta que enviou à Corte Portuguesa relatando a descoberta da nova terra, o escriba Pero Vaz de Caminha não deixa passar o encanto da bela índia: “E uma daquelas moças era toda tingida de baixo para cima daquela tintura e, certo era, tão bem feita e tão redonda e graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como a dela”. Quem seria essa índia formosa que seduziu o olhar de Pero Vaz de Caminha? Jamais se saberá, visto que desapareceu para dentro da mata junto com a tribo, tendo imortalizado o fato de sua existência e de seu poder de encantamento pela pena do escriba. A índia anônima de Caminha foi a primeira bela brasileira a virar musa, abrindo picada para as posteriores Capitu, com seus “olhos de ressaca” machadianos; Helô Pinheiro, cheia de graça a embalar Tom Jobim e Vinicius de Moraes e tantas outras. A cada qual, a sua musa (ou muso), o que é muito bom e democrático. Melhor mesmo é detectar que, assim como a anônima bela índia de Caminha, temos, todos, o potencial latente de servir de inspiração a outrem, sem sequer imaginarmos isso, e não só pela aparência física. Também há responsabilidade em simplesmente ser, mesmo que às vezes se queira fugir para a mata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de fevereiro de 2016)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Olha a melancia!

A coisa me parece ser cíclica, sazonal. E é mesmo, afinal, melancia não dá todo o ano. Dá todos os anos, mas não ao longo do ano todo. Sendo assim, sempre que é chegada essa época do ano, em que suponho ser o tempo das melancias (só posso supor, porque não entendo nada de agricultura e de ciência hortifrutigranjeira), surge aqui pelo bairro a caminhonete do vendedor de melancias. Sei disso porque ele tem um alto-falante instalado (automóvel equipado com alto-falante se transforma em auto-falante, quem sabe?), por meio do qual proclama a oferta de seu produto aos sete ventos que ventam pelo bairro.
Devo supor, por meio dos exercícios de lógica (pelos quais sou amplamente conhecido entre aqueles que me olham de soslaio), que existe um amplo e generoso consumo de melancias aqui no meu bairro. Porque entra ano, sai ano, chega o tempo das melancias e, com ele, a caminhonete a circular pelas ruas do entorno, o dia inteiro, a proclamar pelo alto(auto)-falante: “Oooolha aaamelanciaaa! Me-laaaancia boaebarataaaa, meeeeee-lancia fresquinha!”. O proclame para um pouco, período em que, suponho de novo, algum vizinho melancieiro sai de casa para adquirir algumas unidades, e logo é retomado: “oooolha, ooolha, olhaaamelancia!”. E não se trata de proclame gravado, não. O vendedor de melancias faz tudo sozinho ali, na hora: dirige a caminhonete, proclama o proclame ao vivo, desvia dos cachorros e dos cavalos (há cavalos no meio da rua aqui no bairro onde moro), faz a venda, dá o troco, joga um pouco de conversa fora e vai fazendo a féria.
Nunca desci para comprar dele uma melancia. Temo que o elevador não seja tão ágil quanto o necessário para me colocar em frente à caminhonete no momento em que passa pela rua defronte ao prédio. Também não vou ficar o dia inteiro de tocaia lá embaixo, esperando. Até porque, confesso, não sou tão fissurado assim por melancia como parte da vizinhança daqui do bairro. O que me fascina é a arte do proclame, que permanece viva e ativa nesse entrar de século das virtualidades ubíquas.

Quer uma melancia? Escuta o proclame, sai de casa, tira o dinheirinho do bolso, captura a pesada fruta, leva para casa, mete na geladeira (elas sempre acabam cabendo), reúne a família e carneia a dita-cuja, para a alegria geral das gentes. Nada de virtualidades, nesse quesito. Impossível fazer download de melancia ou comprar via site, com cartão de crédito. Para “olhar a melancia” ainda é preciso agir como gente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de fevereiro de 2016)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

... Então Adele é humana

Nem a própria Adele acreditou no que estava acontecendo. Quem assistiu ao vivo pela televisão, na segunda-feira retrasada (dia 15), à cerimônia de entrega do Prêmio Grammy aos melhores da música internacional, realizada nos Estados Unidos, presenciou o inacreditável momento histórico: uma das maiores vozes da música pop atual desafinando para o mundo inteiro. Adele cantava à capela, só ela e um pianista, e, lá pelas tantas, foi-se o boi com a corda: desafinou e não teve como recuperar a qualidade até o final da canção. Como pode?
Bom, aí é que está a coisa: pode. Pode, sim. Escorregar na maionese quando menos se espera é algo que pode acontecer a todos os mortais, inclusive com aqueles que parecem menos mortais do que os outros, como astros do quilate de Adele. Isso porque somos humanos e cometer erros faz parte da essência de nossa espécie. Porém, viver neles, repeti-los e nada aprender com eles significa optar pela via contrária ao desenvolvimento e ao crescimento pessoal. Uma erradinha básica de vez em quando até pode ser saudável para promover a retomada de nossa própria condição humana, amenizar possíveis soberbas, convidar à autorreflexão, reordenar caminhos, retomar o treino, cultivar a benfazeja humildade. Mas é preciso, para tanto, saber lidar com as derrapadas. Aí é que está o pulo do gato. Aí é que são elas. Uma desafinada pode ser revertida na chance de reafinar aspectos internos de nós mesmos, que talvez andassem sendo negligenciados.
Vejamos o exemplo de Adele. A cantora desafinou no palco, ao vivo, e o que ela fez? Bom, primeiro, agiu como todo e qualquer ser humano faria: botou abaixo o camarim com chutes e bater de portas, claro. Afinal, o camarim precisava ser punido pela desafinada dela (e quem nunca puniu os outros por suas próprias falhas, que jogue o primeiro microfone). Depois, abrandou a frustração saindo da dieta e devorando um hambúrguer duplo, batatas fritas e bebendo cerveja. Tudo embalado a muitas lágrimas.
Até aí, tudo normal. Rodou a baiana e abrandou a frustração, como fazemos todos nós, crianças humanas. Só que, depois, passou a tirar de letra: deu entrevistas, contou isso tudo, riu da situação e prometeu a si mesma melhorar, porque todos estamos sujeitos a errar. Somos humanos e imperfeitos, errar faz parte. O bonito da condição humana é justamente aprender com os erros e buscar permanentemente essa perfeição que, mesmo jamais alcançada, sinaliza o caminho perene da própria humanização.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de fevereiro de 2016) 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O fujão arrependido

A noite havia se debruçado sobre a vizinhança não fazia muito. O crepúsculo já se despedira, o entardecer recolhera para dentro das casas as famílias que agora jantavam assistindo juntas ao Jornal Nacional. Naqueles idos dos anos 1980, o famoso noticiário televisivo ia ao ar mais cedo, antecipando a novela das oito que, de fato, começava às oito. Lembro que era calor. As janelas e portas da casa na Rua dos Viajantes, lá na minha Ijuí natal, escancaravam-se no convite insistente à brisa que teimava em não cruzar por aquelas bandas. Ouviam-se grilos e cigarras lá fora. Nos quartos escuros zumbiam mosquitos. Nada refrescava.
Eu, adolescente, após o jantar, já me recolhera a meu quarto a fim de fazer a lição de casa ou (mais provavelmente) ler um livro ou datilografar uma carta a algum correspondente entre os muitos que mantinha Brasil afora. Era noite e estava quente. De repente, movimentação na sala de estar. Fui ver o que havia e deparei com a cena inesperada: minha mãe sentada no sofá acalentando, no colo, o garotinho de cinco anos de idade, filho da vizinha do outro lado da esquina. Ele chorava. Havia desespero em seu choro. Fugira de casa. Por algum motivo, fora repreendido pelos pais e, sentindo-se injustiçado, decidira tomar a corajosa decisão de abandonar o lar, em represália. Mesmo assim, fugiu para não muito longe e encontrou porto seguro nos braços de minha mãe, que lhe acolheu o choro e a mágoa. Após conseguir acalmar o pequeno fujão, minha mãe tratou de avisar por telefone aos vizinhos que o garoto se encontrava ali em casa, seguro, e em breve retornaria.

Foi o que se deu, pouco depois. A birra passou e ele retornou, resignado, lágrimas engolidas, à própria casa atravessando a rua, sob os olhares zelosos de minha mãe. Chamava-se Lucas. Deve ser (claro que é) um homem crescido, hoje, o Lucas, a quem não vi mais desde que fui-me de Ijuí a enfrentar o mundo. Um enfrentamento que nos exige coragem todos os dias de nossas vidas, desde muito cedo, como no episódio da fuga de Lucas, que, naquela noite, protagonizou uma lição de proatividade com risco calculado. Fugiu, sim, deu seu recado externo e interno, mas logo depois entendeu a importância de recuar e atravessar de volta a rua, aos braços do aconchego de seu lar. Saber agir, saber recuar... Lições de casa não se restringem às folhas dos livros escolares. O pulsar da vida preenche páginas e páginas delas a quem as souber decifrar.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O milho dos outros

“O que você pretende fazer com todas essas espigas de milho?”, perguntou ela assim, de cara, sem mais, também sem menos. “Hãn?”, respondi eu, perplexo, empurrando o carrinho por entre as gôndolas. “Hãn”, obviamente, não é resposta que se dê a ninguém, muito menos à esposa quando ela faz uma pergunta direta. Ainda mais sobre espigas de milho. Depois de meu estupidificado “hãn?”, ela ficou parada defronte ao carrinho, os braços arqueados na cintura, me olhando fixamente, a cabeça meio inclinada para o lado, aguardando resposta mais convincente. Essa postura dela  normalmente indica o florescer de leve descontentamento. Comigo. Melhor pensar rápido. Sempre. Mas nem sempre dá.
Baixei o olhar para as compras que vinham sendo acotoveladas dentro do carrinho desde que ingressáramos no hipermercado, minutos antes, e deparei com cerca de uma dúzia de espigas de milho ali acomodadas. Coisa estranha. Recém saíramos das imediações da seção dos hortifrutigranjeiros, onde ela fora catar mamões e eu ficara tonteando mais adiante, observando as castanhas e os pistaches, mas eu é que não havia capturado milho algum. Tampouco ela, conforme os braços arqueados na cintura e o olhar via cabeça inclinada explicitavam. “Ora, pois, milho...”, balbuciei, manuseando uma espiga e chacoalhando-a no ar, como que para me certificar de que era real, em pleno corredor dos ovos e leite. “Larga isso de volta e vamos sair daqui, esse carrinho que você está empurrando não é o nosso”, disparou ela, e disparamos.
Isso de você se ver de repente dirigindo um carrinho de outra pessoa é mais comum do que podem pensar os braços arqueados na cintura de minha esposa. Problema é o que fazer com o carrinho que você inadvertidamente sequestrou e que agora se vê refém em suas mãos. “Cadê meu milho”, há de ter exclamado outro cliente, gôndolas atrás, ao deparar com o espaço vazio no local onde o deixara. Nas proximidades, certamente, haverá de visualizar meu próprio carrinho, com o azeite de oliva e pacote de seis sabonetes cuja embalagem jura que vou pagar por apenas cinco. Eis o problema: que ele também sequestre meu carrinho e o use como moeda de troca ao me encontrar: “teus sabonetes pelos meus milhos”.

Não foi preciso nada disso. Voltei ao local e recuperei meu próprio carrinho que ainda jazia lá, intocado. Orelhas baixas, fui ao encontro da esposa, que, à minha frente entre gôndolas, resmungava algo como “ora, milho...”. É temerário mexer no milharal dos outros.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de fevereiro de 2016)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Sobre teus lençóis

Mostra-me tua cama e dir-te-ei quem és. Como? Não, madama, que é isso? Longe de mim pensar coisas dessas. Ainda mais da senhora! Está a precipitar-se, até parece que não me conhece! Hein? Justamente porque me conhece bem é que... Mas, madama! Que horror! Deixemos disso e comecemos de novo, sem interrupções e sem observações antes da hora. Qual é a hora? Ao final do texto, madama, ao final do texto. Restart.
Mostra-me, então, tua cama, como eu dizia, e dir-te-ei quem és. Sim, isso mesmo. Refiro-me à cama em que dormes e da qual ergues teu ser completo, corpo e alma, todas as manhãs, para tomar posição e enfrentar a batalha da vida, da tua própria vida, dia após dia, na tecelagem da biografia que te coube erigir e pela qual respondes, dos mínimos atos aos mais sublimes. E entre os tais mínimos, és responsável pelo estado em que deixas toda a manhã o leito que te abrigou ao longo das horas noturnas, embalando teu repouso, acalentando teus sonhos, absorvendo teus pesadelos, abafando teus roncos (sim, eu sei madama, a senhora, não, a senhora, não), escutando tuas reflexões, amparando teus desesperos, dando-te o aconchego necessário para que recuperes tuas energias e preenchas de novo os cântaros de coragem, ânimo e força de que tanto necessitas para dela erguer-te e seres tu mais uma vez. É, sim, dela que falo, e de como a tratas.
Porque há quem diga, e daí o dito que disse eu no iniciar dos dois anteriores parágrafos, né, madama, caso não houvesse interrupções, pois há quem diga (sim, eu vi, agora eu mesmo interrompi a mim mesmo, desculpa), há quem diga, arre, agora me perdi. Acontece, até com mundanos cronistas. Ah, lembrei. Há quem diga, pois, que é possível avaliar o caráter de alguém se julgarmos a forma como esse alguém deixa sua cama ao dela levantar, todas as manhãs. Sim, porque arrumar o próprio leito pode se configurar em um ritual simbólico de demonstração de carinho próprio, denotando que uma cama arrumadinha, o lençol estendido, o travesseiro afofado em seu cantinho, são evidências da organização e da determinação que existem latentes dentro de você para superar os desafios que se enfileiram à sua espera a partir da porta do quarto. Já uma cama esculhambada...

Que é, madama? A senhora tem quem arrume para a senhora? Ah, bem, sim, tem disso, mas tudo bem, ok, a questão é que estará arrumada assim que dela elevares teu corpinho. Eu só estava falando de símbolos. Nem todos servem para todos. No fim, enfronhei-me onde não devia...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de fevereiro de 2016)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Incorrigível corretor

Quando, enfim, nossa voz se erguerá? Quando sairemos unidos às ruas protestando contra a opressão a que nos vemos submetidos sempre que tentamos exercer nosso inalienável direito de expressão? Até quando, corretor automático de texto, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo ainda esse teu poder nos oprimirá? Não vês? Não vês que nenhum de nós ainda coaduna com tua deselegância e aceita a invasão que fazes em nossas consciências? Ó tempos, ó costumes! Que saudades da borracha e do “liquid paper”!
Experimente, ó renomado leitor, excelsa leitora, escrever a abertura desta crônica em algum aparelho (telefone celular, tablet etc) que esteja impositivamente municiado com algum programa de correção automática de texto. O que lerás? Certamente produzirás alguma aberração textual como “Quasímodo, enfante, nossa vosmecê se erguida? Quasímodo saia justa união às suas potesdades contra a ópera a que nos vencemos submarinos sempre queda tentação excelência nosso intragável dirias de expulsão?”. Sim, segundo a lógica de raciocínio do corretor automático de texto que habitam alguns aparelhos meus, a insana frase acima, que deveria reproduzir a segunda sentença do primeiro parágrafo, é plenamente viável.
Precisamos, urgentemente, que algum programador de softwares crie programas que saibam corrigir as sandices e sacanagens dos ditos corretores de texto. Adulteradores de texto e de intenções eles são, isso, sim. Preciso, já, de um policiador de corretor de texto! Porque vou escrever a um amigo “bom dia” e o troço já sai tascando “bondade sua”. Quero demonstrar alegria pelo que alguém me escreveu teclando “heheheh” e, quando vejo a tela, acabo de xingar o amigo chamando-o de “herege”. Imagino “já volto” e anuncio “javali”. Teclo “espere um pouco” e envio “pareces morto”. Ando perdendo amigos, gerando desconfianças e passando recibo de louco a torto e a direito pela internet, devido aos desserviços prestados pelos corretores de texto. Deformadores de texto, isso é o que são.

Borracha era o que se usava na escola, ao copiar errado no caderno, a lápis, a lição que a professora ia desenhando a giz no quadro-negro. “Liquid paper” era o produtinho que se pincelava na lauda datilografada às pressas à máquina de escrever para sanar erros de teclas acavaladas. Bons tempos. Hoje em dia, programinhas etéreos de computador andam querendo antecipar até nossos pensamentos. Sorte nossa que ainda pensam de forma incorrigivelmente burra.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 18 de fevereiro de 2016)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A primeira não se esquece

A primeira Festa da Uva de nossas vidas a gente nunca esquece. Bom, mas eu esqueci. Fazer o quê? Preciso confessar com honestidade o delito memorioso que cometi, afinal, um cronista mundano como eu sobrevive da credibilidade que angaria junto à sua massa leitora (carbonara ou bolonhesa, prezado leitor, endeusada leitora?). Não posso enganá-los. Urge, pois, que eu confesse, às vésperas da abertura de nova edição da efeméride: a minha primeira Festa da Uva esvai-se de minhas memórias como o soprar da brisa que esvoaça as folhas de um parreiral. Não lembro patavinas.
Estará (elucubram os preocupados leitores) o mundano cronista apresentando indícios do instalar galopante de degenerescência cerebral que conduz ao alheamento na floresta da lucidez que até então o caracterizava? Não, nada disso. Trata-se, apenas, da dificuldade compreensível de resgatar do fundo do baú da memória um acontecimento encalhado em alguma rocha que permaneceu soçobrada nos longínquos tempos da infância, época da vida tão repleta de novos estímulos que acabamos mantendo acesa somente ínfima parcela deles (uma árvore de Natal, conchinhas de mar catadas na praia, a voz de um bisavô tirando balinhas do bolso). A Festa da Uva que visitei na década de 1970 (provavelmente a 13ª edição, de 1975) submergiu nesse poço de não-memórias.
Viemos de Ijuí a Caxias do Sul em um ônibus especialmente fretado pelo colégio em que eu estudava, provavelmente na terceira série do primeiro grau, muitos alunos e alguns professores. Não lembro da vinda. Não lembro da volta. Não lembro da estada. Com esforço, um flash de poucos segundos permite um vislumbre dos gramados em morrinhos nos quais fizemos um piquenique (de comida a gente lembra com maior generosidade). Mas é só. Não lembro dos pavilhões. Não lembro da rainha Roxane Torelly. Não lembro das uvas. Nem sei se essa viagem de fato aconteceu ou se é uma criação forçada das crônicas de minha vida, uma vez que, conforme o dramaturgo inglês Harold Pinter (1930 – 2008), “o passado é aquilo que você lembra, aquilo que você imagina que lembra, que você se convence de que lembra ou finge lembrar”.

Repouso, então, minhas recordações na edição de 1994 (a 20ª), a primeira que rolou desde que passei a residir em Caxias do Sul (a partir de 1992), soberaneada pela beleza de Cristina Briani. Essa sopra ventos recordatórios seguros pelos recantos de minha memória. Ao menos, por enquanto...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de fevereiro de 2016)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

De volta para casa

Poucos prazeres são tão plenos, reconfortantes e redentores quanto o de voltar para casa. Especialmente quando temos uma casa e quando nessa casa vivenciamos a inegociável sensação de paz, que a consolida em lar. O abraço dos entes queridos transmite e simboliza a grandeza dessa sensação. O cachorro a lhe sorrir latindo em frente ao portão ou o gatinho se enrodilhando a seus pés, também.
Conhece bem essa sensação quem saiu da casa paterna para estudar fora e retorna em algum final de semana, ou mesmo anos depois. Ou quem sai por alguns dias a trabalho e retorna. Sente-se a mesma alegria de voltar mesmo que se consiga realizar o sonho de uma longa viagem perfeita de muitas semanas do outro lado do planeta. Devem também sentir isso os astronautas quando os módulos que os trazem de volta à Terra reentram na atmosfera. Sentimos também uma fração significativa dessa emoção reconfortante todos os dias ao chegarmos em casa de volta do trabalho, tirando os sapatos e calçando as chinelas. Como é bom voltar para casa!
A obra que é um dos pilares da literatura ocidental tem como pano de fundo justamente a saga do protagonista em sua busca homérica de retornar para casa, o que só consegue depois de longos dez anos de tentativas permeadas de incríveis aventuras. Trata-se da “Odisseia”, de Homero, clássico grego que narra as desventuras do guerreiro Ulisses que, finda a Guerra de Troia, da qual participou (contada na “Ilíada”), empenha-se em retornar à sua cidade Ítaca, onde a esposa Penélope o aguarda fiel e pacientemente. Quando enfim chega em casa, não é exatamente uma sensação agradável que o invade ao perceber o que estava rolando, mas, no final, seus esforços acabam recompensados e vou parar por aqui para não estragar a leitura de ninguém. Poderíamos também lembrar a alegria que gerou a volta do filho pródigo para a casa paterna, conforme relatado no Novo Testamento, no Evangelho de Lucas. Foi uma festança de proporções bíblicas.

Essa mesma sensação estou sentindo eu desde ontem, com o retorno de minha coluna de crônicas para o abrigo das páginas do caderno Sete Dias, o guardião das notícias de cultura e variedades do jornal Pioneiro. Como é boa essa sensação de voltar para casa e de se sentir à vontade e bem colocado onde se está. O sentimento de pertencimento é uma das mais benfazejas panaceias que existem para renovar o espírito. Bem-vindos comigo, leitores.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O copo quebrado

Quebrei um copo. Fui tentar pegar um coador que estava atrás do copo, no armário aéreo da cozinha e, ao invés de primeiro retirar da frente o copo, inventei de esgueirar o braço por cima e pelos lados e em ziguezague ao redor do copo e o óbvio aconteceu: ao puxar de lá de trás o coador, veio abaixo o copo estatelar-se sobre a pia e a quebrar-se em vários irremediáveis pedaços. Foi-se o copo devido a uma atitude estúpida. Minha. Minha culpa, minha máxima culpa.
O resultado, na maioria das vezes em que optamos por uma atitude estúpida, costuma ser justamente a catástrofe. É por isso que classificamos de estúpidas as atitudes que resultam em catástrofes evitáveis, como essa, de tentar pescar um objeto interposto por um copo e decidir seguir fazendo-o sem retirar antes o copo da frente. Ninguém se machucou e o prejuízo foi quase nulo, mas o fato é que eu gostava daquele copo. Muito saciou a minha sede aquele copo transparente de vidro, pelo qual eu nutria uma predileção especial na hora de tomar água, ou suco. Não gostei da maneira como deu-se o fim dele, especialmente por ter sido eu e minha estupidez os causadores de seu desaparecimento como copo. Triste imagem a do corpo do copo.
Também não levarei tamancadas devido à simples quebra do copo, que não buscarei omitir ou camuflar. A senhora minha esposa é compreensiva nesse quesito (ao menos, assim espero eu e imagino – torço – que assim também esperem os nobres leitores e as estimadas leitoras, afinal, era apenas um singelo copo, mas, por via das dúvidas, será que custa muito caro uma passagem urgente só de ida para Adis Abeba? Preciso consultar minha agente de viagens...). A questão é o simbolismo e o aprendizado que se pode tirar da equação é: atitude estúpida plenamente evitável = pequena catástrofe doméstica. Quantas vezes já fizemos ou ouvimos falar de gente que fez coisas assim que resultaram em problemas maiores do que a singela quebra de um copo?

Sempre que fazemos besteira, pensando em retrospecto, percebemos que desde o início poderíamos ter evitado o desfecho infeliz pois que, lá no fundo de nossas almas, aquela vozinha da sabedoria (o Grilo Falante que aconselhava Pinóquio) já estava a nos alertar desesperadamente que retirássemos o copo de vidro da frente do coador. Mas teimamos em não dar ouvidos e seguimos em frente em nossos desatinos diários. Enquanto o saldo se restringir a apenas um mísero copo quebrado, saímos no lucro. Mas a voz sempre está ali. O segredo reside em aprender a ouvi-la.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de fevereiro de 2016)

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Para não murchar

Eu sabia de antemão que aquela relação teria vida curta. Mesmo assim, efetivei nela a aposta, convicto de que, mesmo efêmera, valeria a pena, pois legaria à memória frutos únicos e inolvidáveis. Nada é eterno, tudo passa, mas tudo o que é bom vale a pena ser vivenciado, mesmo que passageiro, justamente por sabermos que, enquanto tivermos acesa a chama da memória para recordar, a lembrança será o legado mais duradouro que guardaremos conosco a partir das experiências ao longo de nossas também por demais curtas existências. Pensando nisso foi que dei o passo adiante, convicto, e buzinei.
Buzinei para chamar a atenção do vendedor de flores que nas sextas-feiras se posiciona em certa esquina na entrada do bairro em que moro, do qual já sou cliente há algum tempo. Compro flores dele, sempre que dá no jeito (às vezes estou sem dinheiro na carteira, outras vezes o fluxo do trânsito me impede de estacionar nas proximidades, vezoutras a maldita pressa se interpõe no caminho da poesia). Compro rosas. Rosas de todas as cores possíveis e imagináveis (até mesmo as cor-de-rosa, clássicas, elegantes, majestosas perante as demais, às quais dirigem ares superiores mesclados a certa condescendência floral). Semanalmente vou alternando as cores dos buquês de rosas que levo para alegrar o ambiente do apartamento, então decorado com contornos de aconchego de lar.
Dessa vez fui capturado direto pelo buquê solitário de rosas azuis. Elas se destacavam entre todas as demais que vinham se oferecendo a mim ao longo do trajeto do florista até a porta de meu carro. Enrolados em jornais que os protegem e unem, os buquês disputam as atenções do freguês com ansiedade semelhante à dos cãezinhos e gatos órfãos que clamam por adoção e carinho de donos que os queiram. Por mim, levava todas. Mas vou alternando. Semana passada levei rosas amarelas. Antes, alaranjadas. Lembro do sucesso que fazem também os buquês mistos, de cores variadas. Mas dessa vez levei as azuis clarinho, um tom que jamais havia detectado em rosas. Rosas azuis.

Era um início de tarde de sexta-feira quente, muito quente. Cheguei em casa e imediatamente coloquei-as nos vasos com água, sabendo que seu tempo de vida seria curto devido ao calor. Mesmo assim, duraram, valentes e generosas, quase uma semana inteira. Mas valeu a pena. O relacionamento com uma rosa sempre vale a pena, independentemente da duração. Essas rosas azuis não vão murchar tão fácil de minha lembrança.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de fevereiro de 2016)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Carnaval Argentino - conclusão

O leitor ainda está aí? A leitora também? Ah, que bom. Então, concluiremos a saga do telefone celular que meu amigo Argentino perdeu em meio à multidão de 19.999 pessoas (seriam 20 mil se eu não tivesse optado por ficar em casa lendo um livro do Daniel Defoe) que transformaram em recorde de público a sexta edição do Bloco da Velha, tradicional evento carnavalesco que animou o centro de Caxias do Sul domingo passado. Argentino pediu emprestado o celular de um novo amigo, Ralphson, parceiro de folia, para me ligar e pedir que eu saísse do conforto de meu lar e fosse até o local onde supunha ter deixado cair o aparelho. Fui até lá e encontrei o celular pisoteado e destruído, sob uma pilha de confetes, serpentinas e a carteira de identidade de uma tal de... melhor não dizer. Isso, soluciono depois.
Mas aí cometi a burrice (pessoas que não participam do Bloco da Velha ficam mais propensas a agir de forma impensada, como foi meu caso) de telefonar para o número do tal do Ralphson, que imaginei estar ainda ao lado de meu amigo Argentino, para informá-lo do sucesso relativo de minha empreitada, pois que encontrara seu telefone, porém, falecido. Atendeu outro folião que havia, por sua vez, pescado do chão o telefone que o saltitante Ralphson também havia perdido. Eu queria falar com Argentino, mas o cidadão insistia em me devolver o telefone de Ralphson e foi difícil convencermos um ao outro de que nenhum de nós era Ralphson.
Decidi desligar e fui para casa, seguir lendo meu livro de Daniel Defoe. No início da semana contataria Argentino e lhe devolveria seu telefone destruído. O problema agora é o sujeito que encontrou o telefone do Ralphson, que não para de ligar para mim, querendo devolvê-lo. Eu insisto em que não sou Ralphson e que nada tenho a ver com a perda desse telefone, mas não tem jeito, a coisa está atolada e, o pior de tudo, impedindo o avanço da leitura do meu livro do Daniel Defoe. E ninguém conhece o tal do Ralphson. Começo a achar que Ralphson não existe, era um codinome de algum folião que quis foliar incógnito no Bloco da Velha.
Agora, Ralphson, quem quer que ele seja, está sem celular; Argentino está com o celular pisoteado e eu estou encrencado com esse folião prestativo que quer devolver a mim o telefone de Ralphson. Já sei. Vou dizer a ele que deixe o telefone de Ralphson lá na Livraria e Café do Arco da Velha, responsável pelo Bloco da Velha. Ralphson que o procure lá. E poderei, enfim, retomar minha leitura de Daniel Defoe, encerrada essa folia de Carnaval.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de fevereiro de 2016)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Carnaval Argentino - Parte 3

Estou desde terça-feira narrando ao paciencioso leitor e à resignada leitora o transtorno a que fui submetido domingo passado, em função da participação desastrada de meu amigo Argentino na sexta e recordista edição do Bloco da Velha (público de 19.999 pessoas, e seriam 20 mil caso eu não tivesse permanecido em casa, lendo um livro de Daniel Defoe), que sacudiu momescamente a cidade na tarde e noite de domingo. Argentino chacoalhou tanto o esqueleto desde a saída da procissão foliã pela Rua Os 18 do Forte, defronte à sede da Livraria e Café Do Arco da Velha (promotora do evento), que deixou cair do bolso da bermuda seu aparelho celular, perdendo-o na via pública, o que o deixou desesperado.
Pegando emprestado o celular de um tal Ralphson, que ele em meio à massa foliã, Argentino me ligou implorando que eu fosse até o centro da cidade vasculhar a rua depois da passagem da multidão em meio à qual ele estava imerso e não podia sair, para procurar pelo aparelho. Prevendo incômodos maiores por parte de um Argentino desesperado a posteriori, achei melhor largar no pufe cor-de-laranja da sala de minha casa o livro de Daniel Defoe que estava lendo e fazer o que ele pedia. Fui, então, ao centro e, depois de furungar por alguns minutos no meio da rua por entre abadás rasgados e colares de flores de plástico, encontrei, sob uma pirâmide de confetes e serpentinas, o telefone celular de Argentino, que reconheci devido à capinha com a bandeira de seu país. Lá estava ele, pisoteado por centenas de pés sambantes, destruído, inútil, morto. Um cadáver de telefone celular.

Peguei-o e, para tentar acalmar meu amigo, avisando que havia encontrado o aparelho (a condição mortal do telefone eu deixaria para que ele tomasse conhecimento na entrega, já sóbrio), cometi, então, o erro estúpido de telefonar dali (com o meu celular, óbvio), para ele. Como? Ora, ligando para o número do tal do Ralphson, seu novo amigo de folia, que ficara gravado na memória de meu próprio aparelho. Eles deveriam ainda estar juntos, imaginei, ingênuo e desconhecedor da dinâmica de movimentação pulsante que ocorre dentro do Bloco da Velha. O telefone de Ralphson chamou, alguém atendeu e eu disse: “Oi Ralphson, por favor, chama aí o Argentino!”. A pessoa, do lado de lá, disse: “Hein? Quem? Aqui não é Ralphson. Eu achei esse telefone caído na rua e juntei para entregar ao dono. Você é o Ralphson? Quer o aparelho? Você está onde?”. Pois é, amanhã, então, concluímos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de fevereiro de 2016)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Carnaval Argentino - Parte 2

Conforme comecei a contar ontem aos estimados leitores e às valorosas leitoras, a sexta edição do Bloco da Velha que, domingo, reuniu público recorde de 20 mil foliões pelas ruas da cidade, trouxe-me alguns dissabores por conta de meu amigo Argentino, carnavalesco de primeira hora desde que adotou Caxias do Sul para viver há 20 anos e prestigiador do evento criado e organizado pelo pessoal da Livraria e Café do Arco da Velha desde a primeira edição. Estava eu tranquilo em casa, lendo um livro de Daniel Defoe (detalhe que não concorre em nada para a compreensão da história, mas vá lá, em se tratando de Carnaval, a tolerância alheia aumenta e aproveito-me), quando meu telefone toca e é o Argentino, desesperado, informando que havia perdido seu celular no meio daquele oceano de gente, de ala-la-ô e de serpentina.
Para me avisar do ocorrido, Argentino pedira emprestado o “teléfono” de um amigo que recém havia feito ali na turba, chamado Ralphson. “Que quer que eu faça?”, perguntei a Argentino. “El teléfono caiu do bolso de minha bermuda creo que bem no início da la caminhada” (o Bloco da Velha sai em passeata dali do centro, defronte à livraria, e dirige-se pela Rua Os 18 do Forte até o Largo da Estação, em São Pelegrino, por quadras e quadras), disse-me ele, em meio ao ala-la-ô ala-ô circundante, que dificultava a compreensão. Consegui entender que Argentino queria que eu saísse de casa e fosse até a região de onde partira a procissão carnavalesca, vasculhar a rua para achar seu telefone, que eu conhecia bem, revestido com uma capinha de celular com a bandeira da Argentina.

“Por que você não dá meia-volta e vai até lá você mesmo?”, perguntei, bastante lúcido”. “Pero no me puedo locomover-me de acá... la multitud es muy, muy, muy compacta, Marcos. Usted no compreendería! Es impossible dar la vuelta. Estoy en el ojo del furacán! Solo puedo seguir adelante junto com la turba, e adelante, e adelante! No hay como volver”, respondeu ele, transtornado. Não me restava outra alternativa senão apaziguá-lo prometendo que, sim, eu sairia da tranquilidade de minha casa onde lia um livro de Daniel Defoe e iria até o centro da cidade, vasculhar a Rua Os 18 do Forte nas primeiras quadras do início do desfile do Bloco da Velha, à cata de seu precioso telefone celular que deveria estar caído por ali. Que me restava fazer? Amigos são para essas coisas (coisas como essas, sim, é que são específicas para amigos do Argentino, mas, vá lá), e fui. Vejam amanhã o que rolou alalaô-alaô.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de fevereiro de 2016)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Carnaval Argentino - Parte 1

Criou-me problemas o público recorde e gigantesco que afluiu ao Bloco da Velha que, em sua sexta edição no Carnaval deste ano, reuniu cerca de 20 mil pessoas a brincar pelas ruas da cidade, domingo. Vinte mil pessoas não é coisa pouca. Em se tratando de Caxias do Sul, município com estimados 475 mil habitantes, trata-se de cerca de 4,2 por cento da população. É muita coisa. É muita gente. É muita festa. É muita alegria.
Esse número (20 mil pessoas), na verdade, precisa ser relativizado. Quem quer que tenha contado as gentes que lá estavam, formigando quadras e quadras do centro da cidade desde o início da tarde de domingo até a noite, deve ter chegado a esse total a partir do uso de ferramentas lógicas de cálculo e prospecção de multidões. Claro que 20 mil é um número arredondado. Para chegar a ele, devem também ter levado em conta a imensa lista daquelas pessoas que prometem ir, mas tem as que acabam não indo, como eu, por exemplo, que, pela sexta vez consecutiva, não estava lá (devido à mais pura e irremovível inércia carnavalesca). Sendo assim, começamos a chegar a um número mais próximo da realidade das ruas no domingo no Bloco da Velha: 19.999 pessoas, já que eu me encontrava sentado no sofá da sala de casa, os pés sobre um pufe cor-de-laranja, nas mãos um livro de Daniel Defoe.
Daí veio o incômodo. Não devido ao evento em si, que admiro, defendo e propagandeio, mas, sim, de um participante da festa: Argentino, um amigo meu de longa data que, sempre que se vê em fria, recorre ao amigo aqui. Meu celular tocou e era Argentino, gritando do outro lado, imerso na multidão do Bloco da Velha: “Marcooossss... me ajudaaaaa! Yo perdí meu teléfono celular aqui na calle, chê!”, berrou ele, com seu portunhol irreproduzível por escrito. Sua fala era entrecortada por gritos de “alala-ô, ala-ô, ala-ô” emitidos ao redor, mas, mesmo assim, pude entender. E, ao mesmo tempo, não entender. Como assim, perdera o celular? Como então estava me telefonando?

“Ora, pedi emprestado (alala-ô, ala-ô) el teléfono de un amigo aqui... como es mismo su nombre, mí amigo? Ah, sim, o Ralphson! Diz aí alô (ooô-ô, oo-ô) pro meu amigo Marcos, Ralphson!”, e passou o celular para o Ralphson, que gritou de lá algo como “aaaaeeeeee... meuu feeeeraaaaa... tudo bemm, Márcioooooo.... eeeee aaaauueeee   aaaaalalaôôô-ô!”, o que relevei, pois estavam todos, naturalmente, inebriados pela alegria de Momo que, até então, não havia visitado a sala de minha casa. O que sucedeu, eu conto amanhã.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Com o bloco na rua

Ô balancê, balancê! Quero dançar com você! Entra na roda, morena, pra ver! Ô balancê, balancê! Ao contrário do que possam pensar a briosa leitora e o circunspecto leitor, eu não sou daqueles que detestam Carnaval e que aproveitam os dias da folia que sacode o Brasil de ponta a ponta para resmungar contra os festejos de Momo e purgar raivas blasfemando, trafegando na contramão da alegria geral. Não sou nada contra o Carnaval. Sou, isso sim, contra eu mesmo durante o período de Carnaval.
Bumbum paticumbum prugurundum, o nosso samba, minha gente, é isso aí! O problema durante os dias de Carnaval é que eu me torno uma pessoa insuportável, praticamente inconvivível, e isso, mais do que aos que me cercam, oprime e atazana a mim mesmo. Isso porque tenho uma mente inexplicavelmente esponjosa para absorver refrões musicais. Assim, passo esses dias cantarolando refrões carnavalescos pela casa, no carro, nas calçadas, no clube e nos restaurantes. Não há quem me aguente. Pior: nada disso condiz com a manutenção da imagem de um respeitado cronista mundano. Melhor nem dizer nada a respeito.
Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí! Me dá um dinheiro aí! Além do mais, todo ano prometo a mim e a terceiros que participarei de corpo presente do Bloco da Velha, esse já tradicional, bem-humorado, divertido e sadio evento cultural que toma as ruas de Caxias do Sul no Carnaval, porém, na hora “h”, acabo cedendo à inércia e fico em casa. Uma ausência que, segundo alguns amigos sensatos, vem garantindo o crescente sucesso da efeméride a cada ano. Há quem diga que me vê por lá fantasiado de outras pessoas, mas é boato.

Explode coração na maior felicidade, é lindo meu Salgueiro, contagiando e sacudindo esta cidade! Aí, no fim, resigno-me a comprar meia dúzia de latinhas de cerveja e me plantar no sofá da sala em frente à tevê para assistir aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Invariavelmente, durmo com a tevê ligada na metade do desfile da segunda escola e na metade da segunda latinha. Na quarta-feira de cinzas me recomponho, como todos os demais brasileiros, e, passado mais um Carnaval, estou pronto para retomar a luta pela vida na realidade nossa de cada dia. O Carnaval é democrático e tolerante (até mesmo comigo) e cada um festeja como quer, como sabe ou como pode. Uma tolerância e uma democracia que deveriam ser estendidas para outras esferas de nosso convívio social. No Brasil, país imaturo por natureza, até o Carnaval pode servir de exemplo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de fevereiro de 2016) 

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Um abraço no vampiro

Muito se pode aprender assistindo a filmes de vampiro. Eu assisto a filmes de vampiro e aprendo com eles algumas coisas, sempre que, ao final, me ponho a refletir sobre determinados aspectos da narrativa ou sobre as motivações dos personagens.
Dia desses andei assistindo a um filme de vampiro interessante, intitulado “Garota Sombria Caminha Pela Noite” (no original, “A Girl Walks Home Alone at Night”), que fez sucesso em 2014 no Festival Sundance de Cinema Fantástico, aquele evento cinematográfico concebido pelo ator e diretor Clint Eastwood. Rodado em preto e branco e falado em persa, o filme é dirigido pela britânica Ana Lily Amirpour e já ganha contornos de obra cult. A história se passa na fictícia cidade iraniana de Bad City, onde uma bela e jovem vampira veste seu xador preto e sai à noite às ruas atrás de, óbvio, sangue. Tem-se a impressão de que ela procura ser uma vampira boazinha na medida em que isso é possível e viável para alguém na condição de vampiro, ou seja, ela procura estraçalhar vítimas malvadas (como um traficantezinho que toca o terror na vizinhança) e poupar pessoas boazinhas (como um garoto de uns dez anos que anda de skate pelas ruas à noite até ser abordado pela morta-viva e ver confiscado por ela o seu meio de transporte).
Certa madrugada, a vampira cruza em uma calçada com Arash, um jovem pobre e batalhador, repleto de problemas a resolver, o protagonista da trama. Arash acaba de voltar de uma festa à fantasia (à qual fora vestido de Conde Drácula, vejam só), onde andou consumindo substâncias que não deveria ter consumido e agora está doidão paralisado frente a um poste de luz que lhe parece uma lua cheia mutante. A vampira se aproxima e Arash se surpreende por ela ter a mão tão fria (ela é uma vampira, Arash, está geladamente morta há séculos!). Condoído com a situação (a seu ver, uma bela moça sozinha à noite passando frio), Arash envolve a vampira em um longo e caloroso abraço para aquecê-la, desarmando-a e fazendo florescer uma paixão.

O abraço quente do rapaz desconstrói a vampira no filme. Podemos, então, refletir sobre o poder do calor humano como instrumento a favor da transformação daquilo que destrói, daquilo que suga, daquilo que oprime, daquilo que ataca, daquilo que não tolera, daquilo que discrimina, daquilo que humilha e assim por diante. Nem sempre um filme de vampiro é apenas um filme de vampiro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de fevereiro de 2016)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Escolha seu destino

Se não existissem barreiras nem limites para eleger um destino, qual seria o país que você escolheria para viver? Com essa pergunta engatilhada, consultores do instituto norte-americano de pesquisas WIN Gallup saíram a campo em 66 países para detectar quais são as nações que estão no topo da preferência (e dos sonhos) da maioria das pessoas quando a questão é morar em um lugar considerado o melhor do mundo.
As respostas, obviamente, não foram unânimes e variaram de país para país, empilhando surpresas que podem render algumas reflexões interessantes. No Brasil, por exemplo, a pesquisa ratificou aquilo que se percebe no cotidiano: a maioria dos brasileiros tem os Estados Unidos como sonho de consumo para residir. Até porque, para tanto, não faltaria muito, uma vez que há décadas importamos alegremente os ditames do estilo de vida norte-americano: bebemos refrigerantes à base de cola; vestimos calças jeans; reverenciamos arrasa-quarteirões de super-heróis nos cinemas (comendo pipoca); devoramos fast-food (inclusive, chamamos lanches rápidos de “fast-food”); ao invés de fazermos entregas, fazemos “delivery”; nossas liquidações se chamam “sales”; passamos a “deletar” aquilo que julgamos descartável; o símbolo de nosso Natal em pleno verão é um Papai Noel enluvado, de botas, com touca e vestindo um quentíssimo traje vermelho; adoramos rock and roll (a começar por mim); usamos diariamente o windows e o word em nossos computadores, mas se perguntar como se diz “janelas” e “palavra” em inglês, a maioria não sabe responder; celebramos datas esdrúxulas como Halloween e assim por diante. Portanto, a pesquisa, no Brasil, não deu outra: Estados Unidos na cabeça, sonho compartilhado também pela maioria dos mexicanos, dos sul-africanos e dos indianos, por exemplo (detalhe: não fui entrevistado e minha opção seria outra).

E os norte-americanos, gostariam de viver onde? No Canadá, diz a pesquisa. E os canadenses, onde? Na Grã-Bretanha! Os russos? Ah, esses gostariam de morar na Suíça, da mesma forma que os chineses (se a pequena Suíça souber disso, terá um infarto). Os australianos elegeram a Espanha como o país de seus desejos de bem-viver. E os argentinos, nossos vizinhos? Agora é que vem a maior surpresa do estudo... Os argentinos, queridíssima leitora, estimado leitor, os argentinos elegeram, por maioria absoluta, o Brasil como seu sonho de consumo para morar! Vai entender nossos hermanos...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de fevereiro de 2016)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Menos luz, mais vida

E de repente, quando menos se esperava (até porque, uma coisa dessas nunca se está a esperar), a luz faltou em todo o bairro no meio da tarde de uma segunda-feira. O estrondo que se ouviu ao longe, soube-se depois pela eficiente e rápida rede de comunicações criada pelos vizinhos nesses momentos de enfrentamento comum de adversidades, originou-se do choque de um caminhão alto demais contra os fios de alta tensão de um poste que, devido à ação dos ventos de ultimamente, estavam, eles, os fios, baixos demais, e deu no que deu: ausência de energia elétrica prolongada até que a companhia de luz conseguisse sanar o problema que, dessa vez, era dos graves.
Nesses tempos modernos de século 21, totalmente dependentes das traquitanas e dos serviços eletrônicos, ficar sem luz, mesmo que durante o dia, representa um profundo e quase imobilizante apagão nas atividades que o ser humano contemporâneo está habituado a desenvolver em seu cotidiano pessoal e profissional. A sensação de orfandade, de fragilidade, de desnudamento e de desamparo só faz aumentar e aprofundar com o passar das horas sem que o restauro da energia se dê, trazendo o retorno automático à vida. À vida? Essa é então nossa vida?
Será essa nossa vida ou será aquela que, aos poucos, começa-se a detectar florescer de dentro das casas para o ar livre, à medida em que a escuridão vai tomando conta dos aposentos com o baixar do sol? As crianças, em férias escolares, reúnem-se na pracinha do bairro, tirando as teias de aranha dos aros das bicicletas. Uma bola de plástico amarela surge picando entre as roseiras do quintal de uma casa ao lado, a dupla de irmãos se divertindo às gargalhadas a cada chute errado desferido. Quatro meninas fazem uma roda e brincam e batem as mãos umas com as outras, em uma brincadeira que eu imaginava extinta há décadas. Uma algazarra viva, vivíssima, humana e nada eletrônica invade as quadras desenergizadas do bairro. Ou reenergizadas.

Adultos começam a chegar em casa do trabalho e não conseguem abrir os portões eletrônicos das garagens. Automóveis são momentaneamente estacionados na rua, no meio-fio, e vão se formando grupinhos de vizinhos conversando, se apresentando, trocando humanidades. Logo surge uma cuia de chimarrão, transportando de mão em mão comentários, piadas, calor humano. Já é noite. Opa, a luz voltou. Todos de volta para suas tocas. As calçadas retomam seu habitual abandono e a vida volta a se esgueirar para dentro de fios eletrônicos. Tempos modernos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de fevereiro de 2016)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Marmota profética

O medo é a condição psíquica natural dos seres humanos, responsável pela maioria das ações e pensamentos que movem a humanidade desde a época das cavernas até esses dias regidos pelas redes sociais. A incerteza do que está por vir, do que pode nos acontecer ou deixar de acontecer gera angústia e apreensão e vivemos estressados, amedrontados, lutando contra adversidades reais e imaginárias e nos precavendo contra possíveis futuras desgraças. Gerenciar esse medo primordial é o segredo para uma vida tranquila e é aí que entra em cena a importância dos sistemas sociais e filosóficos concebidos para reger a vida em sociedade, gerando instrumentos para que possamos aplacar na medida do possível esses temores e vivenciarmos uma vida mais plena. Nem sempre dá certo.
Como não temos, a princípio, a habilidade de prever o que o futuro nos reserva, precisamos viver um dia de cada vez, sabendo que é seu somatório que, com o passar do tempo, vai se constituir no tão temido futuro, essa entidade temporal que, a bem da verdade, não existe. Mas não seria reconfortante se fôssemos dotados do dom da precognição, aquela habilidade paranormal que permite sabermos de antemão os eventos que estão reservados às pessoas e ao mundo nos dias futuros que, por ora, só existem previstos e impressos nas folhinhas dos calendários e das agendas?
Profetas, visionários e paranormais preenchem vastas páginas da história da humanidade, nem sempre sendo encarados como embusteiros ou estelionatários, mas, ao contrário, levados a sério por muita gente (inclusive e especialmente pelas castas dirigentes), em muitas partes do mundo, ao longo de muito tempo. Sabe-se que até Júlio César mantinha adivinhos em Roma que previam o sucesso (ou não) de suas batalhas. Há quem bote as cartas, há quem tenha sonhos, há quem perscrute as estrelas e mesmo o voo dos pássaros para adivinhar o futuro. Nos Estados Unidos, hoje (2 de fevereiro) é o Dia da Marmota, em que comunidades de várias regiões geladas aguardam o movimento desse roedor, típico daquelas paragens, ao sair de sua toca para prever se o fim do inverno está próximo ou ainda se alonga.

Eu não sou adivinho, mas ousarei uma profecia. Não temos marmotas aqui no Brasil, mas não demorará muito para estarmos também celebrando o Dia da Marmota, imitando os ritos culturais da matriz norte-americana. Vide o Halloween, que agora fazemos igualzinho a eles. Vai que um dia imitemos também a seriedade no combate à corrupção. Alguém arrisca uma previsão aí?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sob o reinado de Fébruo

Chegamos, chegamos, são todos bem-vindos, sentem-se, há lugar para todos. Entramos em fevereiro, o segundo mês do ano. Janeiro já é passado, recém ontem erguíamos as taças em brindes ao primeiro dia do novo ano, que agora empilha contas com reajustes, impostos anuais, novas safras de descalabros noticiados pela imprensa, cada brasileiro operando os milagres que precisa protagonizar para ir abrindo clareira dia a dia em meio à selva cerrada e às pedras que se acumulam no caminho, ano adentro. Lá vamos nós.
Bem-vindos, então, a fevereiro. Sacamos fora a folhinha de janeiro, o mês dedicado ao antigo deus romano Janus, aquele que tem duas faces e guarda os portões, olhando para o passado e para o futuro ao mesmo tempo e evoca os começos e os encerramentos. Olhamos agora para fevereiro, o mês cambiante que a cada quatro anos ganha um dia a mais (o último, o 29º), como neste 2016, transformado, assim, em ano bissexto porque terminará com 366 dias (“bissexto” = dupla de seis ao final). Fevereiro, o mês dedicado ao deus Fébruo (“Februs”, em latim), de quem ganha o nome, pois de Februs derivou, na forma latina, “februarius”, o mês dedicado a essa divindade.
Fébruo é um deus pouco conhecido na modernidade, bem menos lembrado do que Janus, talvez por não integrar o panteão oficial da deidade romana, mas ser uma entidade reverenciada pelos etruscos. Os etruscos eram um povo que habitava ampla região da Península Itálica e que foi absorvido pelo poderio de Roma por volta do século III antes de Cristo. Em sua mitologia própria, Fébruo era o deus que reinava sobre os processos de purificação. Daí a origem remota das festas carnavalescas, que derivam dos antigos rituais pagãos de purificação e renovação, todos dedicados a Fébruo, neste mês que o representa.

O Carnaval moderno se transformou em uma grande festa popular e seu significado purificador acabou se perdendo ao longo do passar dos séculos. Neste 9 de fevereiro, dia de Carnaval, talvez possamos, em meio à alegria da folia, dedicar alguns instantes para pensarmos seriamente nas purificações que andamos precisando fazer em várias esferas que nos cercam: na política, na convivência social, na urbanidade, nas relações interpessoais, nos nossos próprios atos e formas de vermos o mundo. Refletir um pouco nunca é demais, pois é daí que nascem as energias para os atos que podem transformar o que precisa ser transformado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de fevereiro de 2016)