quinta-feira, 31 de março de 2016

Lavo e seco, logo, existo

Vamos às revelações. Eu detesto secar a louça. Lavar a louça eu até suporto. E quanto a guardar a louça seca, isso eu na verdade curto, faço com prazer. Atenção, amigas psicólogas: eis aí algumas pistas valiosas para a compreensão do funcionamento da psiquê de um cronista mundano. Afinal, a essência das pessoas pode ser revelada por meio dos mais prosaicos atos do cotidiano. A essência e também a individualidade de cada um. Mas a equação descrita acima não é unânime entre as gentes. Senão, vejamos.
Mesmo que não haja em toda a obra de Freud um capítulo dedicado à relação entre o inconsciente e a posição de cada um frente às etapas do processo de lavagem da louça suja, acredito que o tema mereça ser analisado com atenção, na promessa de oferecer revelações valiosas para a compreensão da alma humana. Pelo menos, da alma da parcela da humanidade que precisa arregaçar as mangas, molhar a barriga frente à pia e administrar louça suja, louça molhada e louça seca. Faço parte dessa parcela, daí, meu interesse sobre o fenômeno louçal, como já puderam perceber sem subliminariedades o atento leitor e a atilada leitora.
As nuances de cada um vêm à tona quando se aplica o questionário sobre a louça às outras pessoas e as diferenças se empilham. Diferentemente de mim, por exemplo, a senhora minha esposa respondeu assim ao questionário: lavar a louça ela gosta (já eu, apenas suporto); secar, ela suporta (eu odeio com paixão) e guardar, ela odeia (eu gosto, aprecio, faço questão). Ou seja, não possuímos nenhum ponto de convergência no quesito da louça. Fui adiante. Apliquei o questionário a várias pessoas de minhas relações e obtive os mais diversos espectros de combinações de respostas. Concluí que, também nesse aspecto da vida, cada um é cada um, não há fórmula precisa que enquadre as gentes nos gostares das coisas, nem mesmo no ato de solucionar a louça doméstica.

Caso essa despretensiosa crônica venha a servir de gatilho para o início de aprofundados estudos acadêmicos e científicos sobre o assunto, a partir da participação de voluntários em pesquisas de laboratório plenamente monitoradas (ratos brancos lavam louça?), talvez se possa descobrir, no futuro, surpresas na relação direta entre temperamento e louça. “Pessoas mais introspectivas preferem secar a louça; proativos gostam mais de lavar; indecisos crônicos optam pelo meio-termo da guardança da louça seca”, coisas do gênero. Mas vamos terminando por aqui. Uma pilha de louça me espera na cozinha. Suja, molhada ou seca? Ah, prefiro deixar o mistério...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de março de 2016)

quarta-feira, 30 de março de 2016

O homem sem selfie

Eu não sei bater selfie. Apesar dos braços compridos, é curta a minha capacidade de sintonizar com as artimanhas tecnológicas dos aparelhinhos eletrônicos que passaram a surgir no mundo depois do advento do videocassete (aliás, que fim levaram minhas fitas VHS?). Estico o braço portando a câmera digital, abro aquele sorriso de boca fechada que me caracteriza, encosto a cabeça na da esposa e pimba: fotografo o azul do céu às minhas costas, uma vez que esqueci de clicar o botãozinho que inverte o foco da objetiva (câmeras digitais possuem objetiva?). Prática nada objetiva para a obtenção de selfies, mas ao menos já consegui uma boa coleção de nuvens esdrúxulas e de discos voadores flagrados ao acaso.
Mas também, calma lá, relativizemos as coisas, afinal, não sou tão anta assim. Meia anta, digamos. Não é sempre que esqueço de inverter a objetiva (concordando, ao menos para efeitos destas mal digitadas linhas, que então, sim, as câmeras digitais possuem objetivas nanotecnologicamente inseridas dentro de suas minúsculas entranhas chipadas). Há vezes em que parece que tudo vai bem, conseguirei registrar por conta própria uma foto de mim mesmo ou do casal que formo com a senhora minha esposa, porque o foco está certo e estamos outra vez sorridentes. Mas não dá outra. Seguro o aparelho de forma atravancada com os dedões se acavalando uns aos outros e o que obtenho são selfies de minhas impressões digitais. Ou de meia testa de um e as bochechas de outro, porque ergo demais a câmera. Ou o pescoço de ganso de um (o meu) e o de coral de outra (o dela), porque abaixei demais o aparelho. Sou a única pessoa do mundo que faz selfie do pescoço. Trata-se da assinatura do artista.

Sempre que navego pelas redes sociais, ponho-me a invejar profundamente todas aquelas pessoas (cem por cento delas, em média) que postam selfies de si próprias (esse pleonasmo horroroso faz parte de minha vingança), a todos os momentos, em todos os lugares. Fazem selfies com uma destreza natural, como se tivessem nascido com o dom. E eu aqui, a fotografar o topo da cabeça onde começam a rarear os cabelos, a barba do queixo, o lóbulo da orelha... Mas eis que vivo resignado. Sempre que desejo registrar alguma foto de mim mesmo, recorro à velha e ancestral prática de olhar em volta procurando identificar algum desconhecido que tenha um ar jovial, a quem possa abordar e pedir, gentil e sorridente, que bata de mim (ou do casal) uma foto. Sempre dá certo. Afinal, ainda desempenho com certa desenvoltura a arte analógica de me relacionar com gente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de março de 2016)

terça-feira, 29 de março de 2016

Os azares do homem-sorte

Estar no lugar errado na hora errada é uma fatalidade que pode acontecer a qualquer pessoa, ninguém está livre das armadilhas e do humor às vezes duvidoso do destino. Dependendo do caso, situações assim podem inclusive determinar o rumo da vida de alguém, se o tal do “lugar errado” for o palco de uma tragédia que ocorra no momento em que se está lá, na dita “hora errada”. Até aí, nada de mais, acontece e vemos acontecer o tempo todo. Estranho mesmo é detectar a existência de gente que parece ter nascido com uma vocação determinada para posicionar-se em lugares errados nas horas mais erradas ainda.
Sim, isso existe, e não se trata de ficção, pois que, como também bem sabemos, a arte imita a vida e tem coisas que nem o mais inspirado ficcionista é capaz de inventar, perdendo de goleada para as maquinações forjadas pela teia de acontecimentos que atuam na chamada vida real. Vejamos o estranho caso do jovem norte-americano Mason Wells, um missionário mórmon de 19 anos de idade que ganhou as páginas do noticiário internacional nos últimos dias, por ter sobrevivido aos ataques terroristas que recentemente sacudiram Bruxelas, capital da Bélgica. Bombas explodiram em um aeroporto e em uma estação de metrô, deixando um saldo de mais de 30 mortos e dezenas de feridos. Ele é um desses feridos, pois que estava no aeroporto (local errado) no momento da explosão (hora errada).
Wells recupera-se em uma cama de hospital em Bruxelas, de onde sua imagem sorridente ganha o mundo pelo inusitado de sua história. Este não foi o primeiro ataque terrorista que ele presencia. Foi o terceiro. Antes disso, escapou ileso dos ataques terroristas ocorridos em Paris em novembro do ano passado e também do atentado em Boston (EUA), quando bombas explodiram na maratona realizada em abril de 2013. Tudo bem, nas ocorrências anteriores, ele sequer se feriu, pois estava apenas próximo aos locais dos atentados. Mas, de qualquer forma, estava lá, nas imediações dos palcos das tragédias. Que faro! Que sina! Que vocação! Que capacidade para posicionar-se perto de homens-bomba e terroristas alucinados!

Não saberia dizer se Mason Wells é o homem mais azarado (presente em três ataques terroristas) ou o mais sortudo do mundo (sobreviveu a todos os três). Mas seria interessante saber com antecedência por onde ele pretende passear assim que tiver alta. Pois que, se ele for para a China, quero estar no Chile. Se ele passear pelo Polo Sul, corro a flanar no Polo Norte. Se ele vier ao Brasil, eu embarco no mesmo dia para a Síria. Afinal, não se deve brincar com a sorte...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de março de 2016)

segunda-feira, 28 de março de 2016

Enquanto isso, na Bobolândia...

Um fato muito curioso que está em pleno andamento há muitas semanas na Bobolândia vem merecendo as atenções da imprensa internacional devido ao inusitado da coisa. Não é de hoje a geração contínua de fatos curiosos e insólitos naquele longínquo país situado entre as fronteiras do Afeganistão com a Nova Zelândia, todos já estão carecas de saber, mas é que esse em específico está dando mais pano para manga do que o usual.
Vale lembrar que a Bobolândia é uma nação cuja população se divide em dois grupos fundamentais: os Espertitos, que costumam levar vantagem em tudo e se aproveitar da ingenuidade alheia; e os Bobobos, ingênuos e crédulos, reiteradamente explorados pelos primeiros devido à sua passividade e à mania de agirem como boiada, sem refletir nem pensar no que fazem. Pois bem. Quem me conhece sabe que tenho parentes que moram lá e me enviam relatos exclusivos sobre o que se passa por aquelas plagas. São primos distantes ao quadrado: distantes porque moram longe e distantes porque o cruzamento dos galhos de nossa árvore genealógica já se perde no passado.
Mas, por mais distantes que sejam, seguem sendo primos e é por conta deles que sei da paixão que aquele povo nutre pelos esportes, em especial o futebol, o que os aproxima muito de nosso próprio país (há vários outros quesitos de inter-relacionamento, outra hora falo deles). Já é tradição a partida anual que ocorre entre a Seleção Espertita e a Seleção Boboba, certame que reúne os principais jogadores representantes de cada facção nacional. Porém, este ano, algo estranho está acontecendo e a partida já dura vários meses, sem vislumbre de que chegue a um desfecho.
Isso porque, dessa vez, cada uma das seleções decidiu levar algumas dúzias de seus próprios árbitros para atuarem na partida, o que vem gerando intermináveis conflitos a cada bola que sai pela linha de fundo, a cada choque entre zagueiro e atacante, a cada bola que entra na rede. É gol para quem chuta, não é para quem leva. É escanteio para quem ataca, mas é linha de fundo para quem defende. É falta para quem cai, não é para quem mete o pé. O lance é o mesmo, porém, os batalhões de árbitros puxam as sardinhas para os assados dos times que representam e o impasse está estacionado em campo, definitivamente e por tempo indefinido. As regras do jogo são claras, claríssimas; valem (na teoria) para todos, mas não adianta, tudo vira uma questão de interpretação tendenciosa por parte de cada árbitro do certame. Que fazer?

Ninguém sabe. Já tem quem pense em começar a torcer pelos gandulas. Aguardo novos informes em breve.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de março de 2016)

sexta-feira, 25 de março de 2016

A fórmula da panqueca

O mundo pode ser dividido entre as pessoas que optam pelo risco de seguir sua própria intuição e aquelas que preferem o conforto de obedecer à risca aos manuais. A afirmação traduz um óbvio reducionismo, já que não é tão fácil assim classificar os seres humanos e, analisando bem, perceberemos que, apesar de termos nossas preferências de conduta, na verdade transitamos entre esses dois grupos de acordo com a situação que se apresenta.
Se estamos inseguros diante da instalação do novo forno de micro-ondas recém-adquirido, procuramos obedecer ao passo-a-passo impresso nas folhinhas do manual que vem anexo ao produto, especialmente agora, que os fabricantes finalmente entenderam que precisam tratar a nós, meros consumidores, como as crianças de seis anos de idade que somos e agregam ilustrações de (teoricamente) fácil compreensão. Mas se nos julgamos plenos de experiência na instalação doméstica de aparelhos elétricos, esnobamos o manual que resta solitário no fundo da caixa do produto e botamos as mãos à obra, frente à torcida geral da esposa e das crianças que não veem a hora de meter dentro do novo integrante da cozinha o saco de pipocas.
Dia desses, vi-me encalacrado em uma encruzilhada entre optar pela intuição ou por obedecer ao manual, frente a uma panquequeira de formato revolucionário adquirida em um estande instalado nos pavilhões da Festa da Uva, durante os dias de nossa “festa maior”. Trata-se de artefato milagroso batizado de “panquequeira invertida antiaderente”, cujo princípio consiste em depositar o utensílio com a parte côncava para baixo, sobre a boca do fogão, e untar a parte convexa, que será mergulhada no recipiente que contém a massa de panqueca previamente preparada. Conforme a demonstração feita pela vendedora lá nos pavilhões, em questões de poucos minutos é possível produzir uma pirâmide enorme de panquecas saborosas uma atrás da outra. Basta fazer como ela fez, ou seguir o manual.

Eu optei por seguir o manual, mas untei a parte errada da panquequeira, confundindo côncavo com convexo. Tivesse escutado a intuição, untaria a parte correta, sem dúvida alguma, e teria obtido a minha Torre de Babel de panquecas. Errei, mas não fiquei na vontade. Catei a frigideira antiga e produzi panquecas a rodo, pelo método tradicional ao qual estou habituado pela repetição. Afinal, o mundo também se divide entre os que desistem frente às pedras no meio do caminho e os que se sentem estimulados a agir justamente devido à presença delas. Eu sou dos que jamais desistem das panquecas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de março de 2016)

quinta-feira, 24 de março de 2016

A verdadeira face de Bia

Bia. Falemos sobre Bia. Convido-os a deixar de lado por alguns minutos os afazeres do dia e acompanhar esta reflexão a respeito de Bia, porque acho que Bia merece. Bia. O nome, por si, já é pouco comum. Digo isso e logo vão entender a razão. Claro, talvez seja apelido de “Bianca”, o que é o mais provável, mas não sei, não posso afirmar, ninguém me disse nada a respeito. Apenas apresentaram-na como Bia e pronto. Desde então, Bia não me sai dos pensamentos.
Fomos apresentados no último final de semana, ao descermos do carro para uma visita a alguns parentes residentes no interior de Uvanova, no Travessão Fortaio. Apeamos do veículo e logo fomos recebidos por Bia, que veio se aproximando sorridente, desprovida de cerimônias, visivelmente alegre a esbanjando hospitalidade. Não lembro bem, mas parece que ela tem cerca de oito ou dez anos de idade, porém, sua estatura avantajada nos fez imaginá-la mais velha. De qualquer forma, causou-nos impressão a sua aproximação ao nosso pequeno grupo.
Eu logo presumi que ela era de boa paz, apesar da trinca de latidos guturais que emitiu ao descermos do carro. Isso fazia parte de seu show particular a fim de justificar as atribuições que lhe cabem por natureza, mas não insistiu muito naquilo. Logo baixou a cabeça e se achegou a mim, enorme como um bezerro, abanando a cauda e lambendo a mão que eu lhe oferecia em sinal de amizade. Fiz-lhe cafuné na cabeça, ela piscou os olhos, acelerou o abano da cauda e ergueu-se, colocando as duas patas dianteiras sobre meus ombros, ficando quase da minha altura, ereta. Fui abraçado por Bia, que revelou-se afável, apesar de grande e do latido ameaçador que remete a um rottweiler.

Os familiares que desejávamos visitar foram surgindo em seguida, depois de feita a devida recepção inicial por Bia, que insistia em seguir enrodilhando-se em nossas pernas a pedir carinho e interação. Foi quando recebemos informações sobre ela como nome, idade e índole, que, insistiam os donos, é pacífica. Não morde ninguém. Nunca. É um doce. Saímos de lá convencidos disso, mas a convicção durou pouco. À noite, visitando outros parentes, dessa vez na Linha Struffoli, ficamos chocados com a revelação de outra tia, quando ouviu nosso relato a respeito de Bia. “É, só que eu não posso ir até lá sem avisar antes para que a prendam, porque, a mim, ela morde”. Pô, Bia! Tua moral durou pouco! Não foi preciso nem CPI e nem operação da Polícia Federal para vir à tona teu lado obscuro! Não se pode mais colocar a mão no fogo por ninguém. Nem mesmo a pata.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de março de 2016)

quarta-feira, 23 de março de 2016

Tia Gertrudes no zero a zero

Tia Gertrudes não entende patavinas de futebol. Mas como é uma pessoa entusiasmada por tudo o que a cerca, jamais se recusa a sentar no sofá da sala junto com a família em dia de jogo importante e compartilhar as atenções que se fixam na tevê, unindo-se ao show de comentários que tomam conta do ambiente. Comentários “bola fora” e comentários “bola dentro”. Ela é a rainha dos comentários “bola fora”, como é de se esperar de quem entende patavinas de futebol e assiste a partidas de quando em vez, só para fazer companhia aos demais, como no caso de Tia Gertrudes.
Daí que é preciso haver paciência com a Tia Gertrudes ao longo da transmissão da partida, pois que ela alia os comentários “nada a ver” com perguntas “pra lá de óbvias”, testando a tolerância de sobrinhos, irmãos, sobrinhos-netos, amigos e agregados (Tia Gertrudes é solteirona e fica sempre com muita pena do time que perde). Torna-se necessário explicar para a Tia Gertrudes que aquele cara de amarelo que corre lá ao lado do campo é o bandeirinha, auxiliar do árbitro, que tem como funções principais detectar eventuais impedimentos, faltas, bola fora etc. Impedimento é melhor nem tentar explicar. Tia Gertrudes não vai entender. Mesmo que balance a cabeça após a explicação e diga “ah, sim”, ela na verdade não entende patavinas e vai repetir as mesmas perguntas na partida seguinte. Isso todo mundo já sabe.
“Foi gol?”, ela pergunta, assim que a bola sacode a rede após ser cabeceada pelo atacante, vencendo o goleiro, o juiz apitando e apontando para o centro do gramado e o narrador berrando a plenos pulmões. “Foi, sim, tia”. “Gol de quem?”, pergunta ela, que até então estava com os olhos fixos na tela, aparentemente acompanhando, como todos os demais, o desenrolar do lance de ataque. “Gol do nosso time, né, tia”, alguém responde, em meio à gritaria entusiasmada que toma conta da sala. “Ah, coitados”, condói-se ela, ao ver as imagens do goleiro adversário batido no chão, o zagueiro que falhou com as mãos na cintura e a cabeça baixa, enquanto “os nossos” cruzam correndo e celebrando. Tia Gertrudes tem pena dos que sofrem. Mesmo que sejam os panacas do time adversário.

É que Tia Gertrudes não tem time adversário. Isso porque ela não tem time nenhum. Ela, na verdade, não suporta disputas, sejam da natureza que forem. Aí fica difícil explicar a essência de um jogo de futebol, que não passa de uma metáfora da vida, essa eterna disputa em que, mesmo no zero a zero, alguém acaba levando vantagem. E na vida, Tia Gertrudes, não existe sequer zero a zero. Mas vai explicar...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de março de 2016)

O cara da foto

Remexer em caixa de fotos antigas em um sábado à noite, em casa, com tempo para trafegar pelas quebradas do passado, dá nisso. Fica-se nostálgico, estaciona-se com os olhos fixos em determinada foto, relembrando o momento, as gentes, que fim levou Fulano, a mente vagando pelas surpresas do destino, as reflexões tangendo de leve a alma para driblar eventuais tristezas, evitando entregar-se de todo às reminiscências porque a regra estabelecida ao capturar a caixa era restringir-se a curtir o ato e alegrar a noite. Mas o risco está sempre à espreita. Mesmo assim, segue-se em frente.
Outra foto. Quem é essa pessoa ali retratada? É um rapaz. Jovem. Sorri para a câmera, uma máquina fotográfica antiga, de filme em rolo, de 24 poses, da época em que era preciso enviar o material para a revelação em um laboratório fotográfico e esperar duas semanas para enfim saborear o conjunto de imagens, levando-se em conta sempre que alguma pose pode ter saído fora de foco, que pena, logo aquela de que havíamos gostado tanto e que não há mais como repetir. Mas quem é o personagem que sorri para a foto? Seus traços me são familiares. Reconheço o meio-sorriso na boca, os detalhes da expressão, o posicionamento do corpo. Que é alguém da família, não há dúvidas. Mas quem?
A própria foto vai dando pistas. A julgar pelo formato quadrado do papel em que foi ampliada, pode-se inferir que é alguém que nasceu no século passado (quando ainda usava-se máquinas fotográficas analógicas). O relógio no braço esquerdo do personagem, pulseira de couro preto, ponteiros, é precursor de relógios digitais. Funciona a corda, não a pilha nem a bateria. Ele não porta telefone celular, nem smartphone, nem sonha com a possibilidade da existência de aparelhos dessa natureza. Está ao ar livre, o vento lhe revolve os cabelos. Não tem o nariz enterrado em nenhum aparelho que o conecte com a internet, pois não sabe o que é e-mail, blog, rede social, twitter.
Pelo visto, ele se comunica por telefone, orelhão, cartas datilografadas em máquina de escrever. Sua televisão a válvula, de 14 polegadas, sintoniza quatro canais, o que o deixa muito faceiro. De fato, a foto mostra o sorriso pleno de uma criatura inserida no século passado. Agora reconheço. Ele é eu mesmo. Fecho a caixa e devolvo-a à prateleira. Já viajei o suficiente por esta noite.

Como até cronista mundano tem direito, saio amanhã em merecidas férias. Volto a encontrar o estimado leitor e a prezada leitora neste espaço dia 23 de março.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 7 de março de 2016)

sexta-feira, 4 de março de 2016

Argentino, o esquecido

Muitas pessoas que leram e acompanharam a saga de meu amigo Argentino durante o Carnaval, quando participou do Bloco da Velha, serpenteando pelas ruas da cidade junto à massa de milhares de foliões e perdeu seu telefone celular, causando-me um certo transtorno que prefiro não relembrar, essas pessoas, as que leram, muitas delas me contataram pedindo mais detalhes sobre a personalidade e a história de vida deste meu singular parceiro de longa data. Argentino tem um jeito muito particular de ser, de se relacionar com as pessoas e com o mundo ao seu redor, conforme meus leitores mais antigos já detectaram, pois que, sazonalmente, ele inspira alguns de meus textos, haja vista que, em sendo (eu) cronista mundano, seria um descalabro deixar passar certas coisas, sob o risco de nunca mais receber os bafejos benfazejos da inspiração.
Argentino já fez download de uma ferramenta de trabalho virtual cujo ícone era um macaquinho azul e foi perseguido dentro de casa pelo bicho, que materializou-se na sala enquanto Argentino dormia, após concluído o baixamento do programa. Argentino já quis sequestrar a filha do Silvio Santos, essa que hoje é apresentadora de TV, por ter se apaixonado por ela e ameaçou, em setembro de 2001, roubar um monomotor e se chocar contra o Monumento ao Imigrante caso ela não lhe desse bola. Ela não deu e consegui dissuadi-lo de seus intentos a tempo. Prova disso é que o Monumento ao Imigrante segue ali, ereto, incólume, impávido, colosso, às margens da BR-116.
Mas como ele veio parar em Caxias do Sul? É o que quer saber os leitores. Sem que ele saiba (porque não lê minhas crônicas) e sem que autorize, revelo. Argentino foi esquecido aqui por seus pais em meados da década de 1970, quando regressavam à Argentina de carro, após uma temporada de 15 dias de chuva em Camboriú. Foi esquecido em um posto de gasolina em Caxias, à noite. Contava, na época, 16 anos de idade. Entrou no banheiro do posto e, como demorou-se demais, os pais seguiram viagem e só foram notar sua falta já em Posadas, na Província de Misiones.

Eu nunca acreditei muito nessa versão, sustentada até hoje por ele mesmo. Só foram perceber sua ausência ao chegarem em casa? Ora, Argentino sempre foi um cara agitadíssimo, não para quieto, não dorme em viagem, fala ininterruptamente. Faz-se notar o tempo todo. Mas, desde então, recebeu mesadas polpudas dos pais, que o incentivaram a “fazer a vida” no Brasil mesmo. Daí ele foi ficando. Generosos os pais dele. Espertos, também.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de março de 2016)

quinta-feira, 3 de março de 2016

Longa vida a Norma

Nas reportagens que estão correndo o mundo, ela aparece na foto principal sorrindo e erguendo um brinde com uma garrafa de cerveja. Um brinde à vida, um brinde à alegria de viver, um brinde ao bom senso, um brinde à coragem, um brinde ao que pode haver de melhor nas motivações de um ser humano, mesmo frente à maior das adversidades: a certeza da morte. Ela se chama Norma. Ela mora nos Estados Unidos. Ela está com 91 anos de idade. Ela tem câncer terminal. Ela vai morrer. Mas ela decidiu, antes disso, viver. E intensamente.
Desde que descobriu, ano passado, aos 90 anos, que estava com um câncer incurável nos ovários e que a alternativa que a medicina lhe apresentava era uma cirurgia de alto risco seguida (caso sobrevivesse à operação) de sessões de quimioterapia que lhe causariam terríveis efeitos colaterais, agravados pelo avanço da idade, Norma tomou uma decisão irrevogável. Não faria cirurgia coisíssima nenhuma e aproveitaria seus últimos meses de vida viajando de ponta a ponta pelos Estados Unidos conhecendo lugares, vendo gente diferente, se divertindo, respirando, saudando o sol, agradecendo a chuva, curtindo a noite, bebendo cerveja de vez em quando, coisas assim. Ótima e sábia decisão, sabendo-se que as alternativas a isso eram ou a morte na mesa de cirurgia ou um leito de hospital, esperando a mesma morte. Até seus médicos a apoiaram.
Se é para esperar a morte, pensa ela, que o seja celebrando todos os segundos que houver de vida. É o que Norma está fazendo, acompanhada pelo filho Tom, pela nora Ramie e pelo cãozinho de estimação Ringo. Ela vendeu a casa em que viveu 67 anos com seu marido, morto ano passado em decorrência de câncer, e adquiriu um trailer, com o qual caiu na estrada. Foi ao fazer exames após a morte do marido que detectou-se também nela a doença. Mesmo em luto pela perda do companheiro, Norma já está há seis meses viajando. Conheceu a Disneylândia, visitou o Grand Canyon, experimenta comidas típicas nos lugares por onde passa, vê gente diferente, anima os sentidos e, por meio deles, a alma. Sente-se bem, está disposta e os familiares publicam suas aventuras em uma página no Facebook (basta acessar “Driving Miss Norma”, que significa “Conduzindo Miss Norma”), onde é seguida por 86 mil pessoas (número que só cresce).
A história de Norma fala por si. Dessa vez, não há necessidade de o cronista elaborar um fecho criativo para a reflexão do leitor. Palavras a mais seriam somente palavras ao vento. Longa vida a Norma.


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de março de 2016)

quarta-feira, 2 de março de 2016

E o Oscar foi para...

“You can´t always get what you want”. Já vou traduzir, já vou traduzir. É que eu quis abrir a crônica direto com a frase no original, conforme composta pela dupla roqueira Mick Jagger e Keith Richards, da banda inglesa Rolling Stones que sacudirá  Porto Alegre hoje à noite. Em tradução livre, o refrão da música de mesmo nome significa algo como “você não pode ter tudo o que deseja”. Mas pode, sim, tentar bastante e, algumas vezes, obter o que precisa. É por aí que vai a canção, que serve de base para tecer algumas reflexões sobre a vida, como sói acontecer com as obras de arte de qualquer natureza.
Se é verdade que não podemos ter sempre tudo aquilo que desejamos (que é o que vamos aprendendo a duras penas desde que nascemos), também é verdade, por paralelismo de sentido e intenção frasal, que não podemos ser tudo aquilo que imaginamos. Querer tudo é questão de aprender a domar o egoísmo e a ganância. Querer ser tudo é questão de aprender a domesticar o ego. Nem sempre é fácil.
Vejamos, por exemplo, o que aconteceu no trânsito da noite do último domingo para a madrugada de segunda-feira, durante a transmissão televisiva da entrega do Oscar. A Rede Globo decidiu escalar a atriz Glória Pires para integrar um time encarregado de fazer os comentários pertinentes à premiação ocorrida em Los Angeles, nos Estados Unidos. Diferentemente do que se esperava, para surpresa de todos, Glória pagou mico ao vivo ao não avançar em seus comentários muito além de expressões como “bacana”, “gostei, muito bom esse filme” e “esse eu não assisti”. Pouco acrescentou (para não dizer “nada”) em termos de informação para o telespectador notívago do lado de cá da telinha, deixando a impressão de não ter assistido aos filmes e de não ter se preparado convenientemente para o desafio. Uma lástima.

É indiscutível que Gloria Pires é uma das mais competentes atrizes brasileiras da atualidade, ao lado de Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Regina Duarte e poucas outras. Mas isso não lhe confere credencial automática para ser também comentarista de cinema. Isso ela não é. Porque não se pode ser tudo o que se imagina na vida, ou que se deseja, ou que pedem (ou ordenam) para sermos. Dizer “sim” a tudo, além de denotar subserviência, também pode levar a escorregar nas armadilhas decorrentes do culto ao próprio ego. Precisamos de foco, direção, dedicação e verdade naquilo que fazemos. Caso contrário, queimamos o filme e o Oscar vai para a concorrência.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de março de 2016)

terça-feira, 1 de março de 2016

Falou e disse

 O que o ex-primeiro ministro inglês Winston Churchill (1874 – 1965), o ex-ator norte-americano Groucho Marx (1890 – 1977), o ex-jornalista brasileiro Apparício Torelly (1895 – 1971) e o ex-comediante estadunidense Will Rogers (1879 – 1935) têm em comum? Como disse, senhora? A senhora quer arriscar? Vai firme, diga. Ah, sim, todos já estão mortos. Bem, é verdade. Se bem que a dica em relação a isso foi dada pelas datas inseridas nos parênteses após cada nome, não é mesmo? Algo mais? Perdão? São todos “ex” alguma coisa? Bem, sim, mas trata-se da mesma dica apresentada de forma diferente. Quer tentar mais uma vez? Nasceram todos no século 19? Ah, que interessante... De fato, isso é verdade, eu não tinha percebido. Muito atilada, a senhora, parabéns. Mas não é disso que se trata a crônica que pretende uni-los. Tente outra vez.
São, eles todos, pessoas famosas? Ah, isso sim, está chegando perto. Mas qual seria o aspecto que os une na fama, apesar de terem atuado em áreas distintas ao longo de suas vidas? Como? Ah, a senhora desiste? Está indo lá para o fim do caderno resolver as Cruzadinhas? Não seja assim, madame, está impaciente hoje. Não me abandone ainda. Siga lendo, já elucido. O que acontece, e que me veio à mente reunir essas quatro personalidades na mesma frase hoje ao abrir destas diárias mal digitadas linhas, é que foram grandes frasistas. Criadores de frases de efeito, impactantes, repletas de significados e que nos induzem à reflexão. Tanto que eles passaram, mas alguns de seus ditos vencem os ditames do tempo e permanecem vivas, plenas de significado para nossos dias de hoje.

Churchill, Torelly (o Barão de Itararé) e Marx (o Groucho, saliente-se) já renderam, com suas sentenças, crônicas de minha lavra ao longo do tempo. Mas, dia desses, tomei conhecimento da existência de Will Rogers, ator e comediante norte-americano pouco conhecido dos brasileiros. Fiquei sabendo dele devido a uma de suas sentenças espirituosas, por meio da qual podemos identificar um aspecto interessante da sociedade moderna. Eis a frase: “A maioria das pessoas gasta o dinheiro que não tem para comprar coisas de que não precisa a fim de impressionar pessoas de quem não gosta”. E não é verdade, madame, isso que ele disse? Não faz a gente pensar sobre o que algumas pessoas ao nosso redor fazem e sobre atitudes que às vezes nós mesmos adotamos sem perceber? Pois é. Tem razão. Vamos às Cruzadinhas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de março de 2016)