terça-feira, 31 de maio de 2016

Proserpina e a dança do clima

Não somos romanos. Além disso, vivemos no século 21. Agora, caso fôssemos romanos e vivêssemos na Era Antiga, teríamos hoje mais um bom motivo para ficarmos em casa sem fazer nada, porque seria feriado (os romanos adoravam feriados e, ao menos nisso, nos assemelhamos a eles). Poderíamos ir ao Coliseu assistir aos leões devorar alguns cristãos e depois apostar nas corridas de bigas. Poderíamos aproveitar para remendar aquela túnica puída e depois passear pela Via Appia e debater com os patrícios o andamento das últimas conspirações no Senado (que é prática política muito antiga e também nisso nos assemelhamos a eles). Com sorte, seríamos convidados para alguma orgia regada a vinho e mel, ao som de harpas.
Mas não somos romanos e hoje, em plena Era Moderna, o dia 31 de maio passa batido e sem o significado sagrado de séculos atrás, quando era dedicado ao culto da deusa Proserpina, conhecida como “A Rainha do Mundo Subterrâneo”. Proserpina era uma divindade bastante popular entre os antigos romanos, considerada uma das mais belas filhas de Júpiter, o chefão de todos os deuses. Tão bela que encantou os olhos de Plutão, o deus que governava os subterrâneos da Terra, o Submundo, a ponto de ele decidir raptar a moça e levá-la a viver consigo em seus domínios obscuros. Isso deixou Ceres, a mãe de Proserpina, muitíssimo indignada, a ponto de destruir as colheitas e arrasar a terra em um acesso de fúria, exigindo a filha de volta.
Mas os deuses são bons em firmar tratados (muitas vezes para serem descumpridos logo mais adiante, hábito com o qual os seres humanos também se assemelham) e Plutão propôs um acordo com a sogra Ceres nos seguintes termos: a bela Proserpina passaria metade do ano vivendo com ele no Submundo (época que correspondia ao inverno, quando Ceres, entristecida, descuidava da Natureza) e a outra metade na superfície, em companhia da mãe (período correspondente ao verão, em que Ceres, feliz, fazia a Natureza refulgir outra vez). Assim se fez e as coisas meio que se acalmaram. A história talvez seja mais conhecida entre nós em sua forma grega, em que Proserpina corresponde a Perséfone, esposa de Hades (o Plutão romano), filha de Zeus (Júpiter) e Deméter (Ceres).

Às vezes temos de recorrer à mitologia antiga para compreender o que se passa nos dias de hoje. Se inverno significa Proserpina vivendo com o marido Plutão lá no subterrâneo e verão indica a deusa a passear pela superfície com a mãe, está explicada a maluquice atual do clima. Proserpina anda dando escapadelas sem que Plutão perceba. Só podia dar nisso...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de maio de 2016)

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Sol, caipirinha e bons sonhos

Salvador, Bahia. Sexta-feira da semana passada, dia 27 de maio, data mergulhada no feriadão de Corpus Christi. Nove horas da manhã e a praia já bombando sob um calor de mais de 30 graus, o sol intenso e sorridente pinicando minha pele, o guarda-sol fazendo uma sombra providencial ao banquinho em que repouso o copo de caipirinha gelada. Caipirinha gelada às nove da manhã? Sim, madama, sim. Na praia, pode. Em Salvador, à beira-mar, sob um sol de 36 graus (fui conferir no termômetro da barraquinha de venda de acarajé), pode. Não só pode, como deve. Ah, que delícia esse calor, esse sol, essa luz, essa caipirinha, esse despertador que não para de tocar... Droga! Acordei!
Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Sexta-feira da semana passada, dia 27 de maio, data mergulhada no feriadão de Corpus Christi. Nove horas da manhã e a neblina toma conta de toda a cidade, sob um frio de oito graus, nenhum vestígio de sol, apenas uma sensação de gelo picado pinicando minha pele, mesmo entrouxado em pijama, chinelo de lã, chambre e ceroulas (eu não uso ceroulas, madama, mas a imagem surte lá seu efeito no desenrolar da crônica, combinado?). Salvador ficou no sonho. A realidade é outra. Bem outra. Os compromissos se acotovelam na agenda e a caipirinha vai ter de ficar para o final de semana, quando e se alguém me convidar para uma feijoada. Até lá, realidade nublada pela frente.
Nublada ou, melhor dizendo, neblinada. Porque o que se vislumbra pela janela do escritório ao acordar é um imenso, convicto e inexpugnável... nada! Um nada só possível de ser tecido a partir do adensamento de uma neblina espessa, estacionária, profundamente alva e determinada a se manter envolvendo a cidade toda por ainda muitas horas depois de nascido o sol; um sol que ninguém vê e nem sente, mas que acreditamos, porque somos um povo de fé, que ainda exista e esteja a brilhar em algum lugar do planeta, além da neblina, sorrindo lá em Salvador, ao menos, que seja. Tomo uma atitude! Pego o telefone e me ponho a procurar números a fim de desmarcar os compromissos matinais que eu tinha de cumprir fora de casa. Afinal, com essa neblina, não se enxerga nada, acabarei me perdendo e indo parar em Farroupilha.

Mas, de repente, a esposa aparece vinda do nada e abre a janela. Não há neblina alguma. O dia é nublado, sim, porém, tratava-se do vidro que estava embaçado. Totalmente embaçado. Nem tanto a Salvador, nem tanto à Serra. “Nem tudo que reluz é loiro”, como dizia minha bisavó. As aparências enganam. Vamos ao trabalho. Suspiro profundo e aquela vontade de caipirinha...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de maio de 2016)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Reinventando a magia da leitura

Meter-se a atuar no universo da escrita acarreta lá suas dificuldades, bem como toda e qualquer atividade a que o cidadão decida se dedicar com afinco e envolvimento, mas também reserva surpresas fascinantes, agradáveis e emocionantes. Essas surpresas consistem no prêmio inesperado e imensurável que decorre diretamente da forma como o trabalho repercute na comunidade, justificando assim todo o esforço dispensado na construção de uma carreira, seja ela na área que for. No caso da escrita, elas vêm embaladas nos mais diversos formatos e são sempre bem vindas. Uma delas chegou na forma de um convite/homenagem que ainda está a tirar meu sono devido à alegria que está causando.
Dias atrás, recebi um telefonema/convite/comunicado, protagonizado pela professora e amiga Maria Cristina Tiburi Pisoni, informando que meu nome havia sido escolhido para ser o Patrono da edição deste ano da Feira do Livro do Colégio São Carlos, daqui de Caxias do Sul. O evento vai para sua 26ª edição, consolidado já como uma das programações culturais e literárias de tradição da cidade, mesmo que restrita às atividades específicas de um educandário. Mas um educandário que justamente em 2016 celebra seus 80 anos de existência e atuação em favor da formação de cidadãos para Caxias do Sul, a região e o mundo. E essa formação passa necessariamente pelas iniciativas desenvolvidas em favor da aproximação dos alunos ao universo da leitura. Iniciativas como a Feira do Livro que, nessa edição em que terei a honra de ser Patrono, acontece de 7 a 9 de junho, nas dependências da escola. O lema da Feira é sugestivo: “Seja oito ou oitenta... A Feira do Livro reinventa”.
Sou feliz em feiras de livros! Ainda mais quando na condição de Patrono! Que alegria poder compartilhar com os alunos, professores, direção, funcionários e pais esse encantamento perene com o mundo dos livros, da leitura e da escrita, que tanto me fascina, molda e dá sentido à minha existência. E isso tudo ao lado do Homenageado da Feira deste ano, meu amigo e parceiro Antonio Giacomin, talentoso artista plástico da Serra Gaúcha, com quem já produzi dois livros em conjunto. O convite traz impresso um trecho de crônica minha, publicada em janeiro deste ano aqui no Pioneiro, cujo conteúdo rima com o momento. Reproduzo o excerto por seguir sendo verdade: “A educação é a única magia capaz de tirar da cartola cidadãos íntegros e proativos. É por meio deles que se dá o passe de mágica que transforma a sociedade para melhor. Abracadabra e façamos mágicas!”. 


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 27 de maio de 2016)

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A verdadeira face de Kaspar

Aconteceu em um dia 26 de maio e o fato está devidamente registrado nos livros de História. O ano era 1828 e, o cenário, uma praça pública localizada na área central da cidade de Nuremberg, na Alemanha (não são poucas as coisas bizarras que a História costuma registrar tendo Nuremberg como palco, mas isso já é outra história). Amanheceu o dia e ele estava lá, não se sabe vindo de onde, nem como chegara ali e, o mais estranho, ninguém conhecia sua identidade. Começava ali o imbróglio que viria a ficar conhecido como “O Enigma de Kaspar Hauser” (virou até filme sob a batuta de Werner Herzog, em 1974). E nós com isso? Já veremos, madama, acompanhe.
A julgar pela conformação física, o estranho aparecido do nada em Nuremberg parecia ter cerca de 15 anos de idade. Não sabia falar e demonstrava visíveis traços de incompatibilidade social. Encontrou-se em seus bolsos uma carta endereçada ao administrador da cidade, na qual sua história era relatada (bem como seu suposto nome revelado), um livro de orações e alguns objetos que indicavam pertencer ele à nobreza. Na carta constavam os elementos que faziam descer um manto de surrealidade sobre sua suposta história de vida. O texto afirmava que Hauser havia passado a vida toda preso em uma masmorra, na mais completa escuridão, tendo sido alimentado apenas a pão e água. Por isso, não aprendera nenhuma língua e apresentava sinais de atraso mental.
A comunidade local adotou Kaspar Hauser e sua história logo ganhou fama mundial. Muitos acreditavam que ele poderia ser o príncipe herdeiro da família real da região de Baden, sequestrado do berço na mesma época em que Hauser parecia ter nascido. Recentes exames de DNA cruzando uma mancha de sangue das vestes de Hauser (guardadas em um museu) e os dados de descendentes da Casa de Baden derrubam a tese do parentesco. Kaspar Hauser foi assassinado com uma facada no peito em 1833, quando tinha cerca de 21 anos de idade. O crime jamais foi resolvido.

Muito se tem estudado sobre esse mistério e vários historiadores hoje acreditam que Hauser não passava de um garoto bastardo, filho ilegítimo de pessoas ricas  e abandonado pela família, que decidira inventar a historia da masmorra para angariar a simpatia das pessoas. Seria, assim, um dos maiores impostores da História. De lá para cá, vários outros vêm se esforçando para roubar-lhe esse título, independentemente de país e de época em que atuem. Kaspar Hauser não está sozinho nessa tribo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de maio de 2016)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Um iglu, um gelo e nada mais

Groenlândia. Já foste para lá, enceroulado leitor, encapotada leitora? Não? Se não me engano, é por lá que se situa a Lapônia, a terra do Papai Noel, onde ele estaciona o trenó e deixa descansarem suas renas. Não, não, a Lapônia fica no Polo Norte, isso mesmo, bem lembrado, entoucada leitora. A propósito, conheces o Polo Norte? Também não? Pois é, nem eu. E o Polo Sul? Tampouco? Não, eu também não. Islândia, quem sabe? Pequeninha, a Islândia. Conhece? Não. Eu também não.
Então nem o encachecolado leitor e nem a enluvada leitora conhecem essas regiões geladérrimas do planeta, assim como eu, que também jamais palmilhei com meus passos essas terras de gelo onde crescem os iglus, onde saltitam as focas, onde esquimós tomam banho nus a temperaturas abaixo de zero, onde os ursos brancos tapam os focinhos a fim de espreitar as morsas, onde cerveja morna é um mito mais inconcebível do que o já citado Papai Noel, onde pinguim traja casaca, onde as palavras se congelam no ar logo após serem proferidas, onde vendedor de freezer morre de fome, onde paleta mexicana é usada como fósforo. No entanto, conhecemos a Serra Gaúcha e, no quesito frio, nada ficamos a dever aos pinguins e afins acima citados, não é mesmo?
Ontem de manhã acordei me sentindo um legítimo pinguim. Um pinguim enclausurado dentro de um iglu. Um pinguim enclausurado em um iglu bebendo uma cerveja estupidamente gelada, com as mãos dentro de um freezer e os pés calçando paletas mexicanas. Era assim que eu me sentia ontem, madama, tamanho o frio. Sim, o pinguim da história era eu. Os dedos não se mexiam, enregelados, parecendo extremidades pontiagudas de asas (asas de pinguim). Meu andar, a desenvoltura cerceada pela baixa temperatura, assemelhava-se ao tosco e claudicante mover-se dos pinguins, que tão bem conhecemos por assistir aos documentários da tevê a cabo. Minhas ideias aprisionavam-se em um compacto cubo de gelo inderretível, a obstruir o fluxo do pensamento pelo cérebro.

Resultado disso tudo? Ora, encachecolada leitora, emboinado leitor... O resultado dessa configuração climática toda é essa crônica aqui, fria, difícil de ler e de escrever, reveladora de um congelamento inevitável das ideias, fruto das baixas temperaturas que regam essas semanas finais de outono. Pois é, e dizem que o inverno ainda está por vir. Vou procurar minha sunga, a esteira, desenterrar o protetor solar e me mando para a Islândia, onde já aluguei um iglu. Depois divulgo o endereço. Receberei a todos de asas abertas e um chopinho gelado.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de maio de 2016)

terça-feira, 24 de maio de 2016

Um expresso, sem pressa

Maio já está no final, o outono ainda aconchega e as portas da nova estação começam a ser entreabertas para dar lugar ao inverno (que só chega de fato em 21 de junho). Mas já faz tempo que anda um frio de lascar aqui por essas plagas sulinas e serranas e é aí que a gente percebe como foram felizes aqueles que, sabe-se lá quando e como, decidiram situar no final de maio a data para celebrar o Dia Nacional do Café, 24 de maio, hoje, senhores leitores, senhoras leitoras.
Ah, um café quentinho, saboroso e aromático, em meio a esses dias gelados, tem o seu valor, não é mesmo? Seja ele feito em máquina, seja passado, seja preparado em casa ou nas cafeterias, na lancheria da esquina, no escritório, na repartição, servido por um amigo ou na reunião de negócios, um cafezinho sempre cai bem, especialmente para acompanhar a queda da temperatura nos termômetros. Existem os mais requintados, criados para agradar aos paladares mais exigentes, como o cappuccino, o mocaccino, o irlandês (com conhaque), o gringolês (com graspa) e tantos outros. Mas a vedete mesmo, de norte a sul, de leste a oeste, segue sendo e sempre será o bom, honesto, simples e saboroso expresso, o rei dos cafezinhos.
“Dá um expresso”, pedimos ao garçom solícito ou à barista simpática. Quanto mais íntimos (do garçom, da barista e/ou do café), pedimos um “expressinho” mesmo e logo vem ele, fumegante, antecipando prazerosos goles de quentura e sabor. E, vem cá, cafeinado leitor, chantillística leitora, você sabe a origem do termo ”expresso” para o nosso cafezinho do dia-a-dia? Porque é feito rapidamente, a senhora diz? Nananinanina! Ledo Ivo engano! Deixa o mundano (mas esforçado) cronista aqui elucidar. O termo tem origem na língua italiana, “espresso”, que significa “espremido”, “esmagado”, fazendo referência ao método de preparo do café por meio de máquinas (essas cafeteiras que existem em todas as cafeterias) nas quais um jato de água quente passa com muita pressão pelos grãos de café, espremendo-os e deles extraindo o líquido que vamos consumir na condição de “café expresso”, ou “café espremido”.

Nada a ver com “rapidinho”, portanto. O termo “expresso” acabou ganhando contornos de “rápido” por conta da automação dos processos em geral na sociedade moderna. “Pegar um expresso”, “entrar na via expressa”, “fazer uma visita expressa”, derivaram disso e evocam pressas. Mas o nosso café expresso segue sendo apenas espremido, mesmo, a ser degustado com todo o ritual manso e tranquilo necessário para dele extrair parcelas dos bons sabores da vida. Vai um aí?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de maio de 2016)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Devagar se vai ao longe, creio

Vinte e três de maio, Dia Mundial da Tartaruga. Você sabia disso, atilado leitor, perspicaz leitora? Também não? Pois é, nem mesmo sabia-o eu, este esforçado mundano cronista que vos digita, mas sempre acabo descobrindo essas coisas, sei lá, é como se um ímã me conduzisse a temas dessa natureza. Mas, enfim, hoje é o Dia Mundial da Tartaruga, evento promovido desde 2000 pela American Tortoise Rescue, entidade ambientalista internacional preocupada com a preservação desses quelônios. Trata-se, portanto, da décima-sétima edição do evento e só agora ficamos sabendo. Andam devagar as coisas, em se tratando de tartarugas, haha! Desculpem.
Mas, então, o que falar a respeito das tartarugas, neste dia dedicado a elas? É preciso discorrer sobre alguma coisa, temos uma crônica a cumprir. E, mesmo devagar, se vai ao longe. Haha, de novo. Isso era um joguinho de tabuleiro nos tempos da infância, não era? Falava-se “vamos jogar devagarsevaiaolonge”, assim, tudo junto, substantivado. Mas temos de focar nas tartarugas e, falando em infância, recordo dos pequenos cágados e jabutis que na época ainda era permitido adquirir de vendedores de rua e levar para casa, a título de bichinhos de estimação. Tive muitos; alimentava-os com fiapos de carne e nacos de frutas e ficava horas observando-os a fazerem nada. Eles e eu, tartarugando.
Disso, porém, há pouco a resgatar e oferecer ao leitor. Melhor evocar uma leitura envolvendo filosofia e lógica, para justificar, frente ao leitor, minha ocupação deste espaço. Em seu livro de ensaios “Discussão”, o escritor argentino Jorge Luis Borges se debruça sobre as nuances de um dos mais famosos Paradoxos de Zenon de Eléia, um filósofo pré-socrático. Zenon usa essa demonstração teórica na tentativa de provar que o movimento não existe, trata-se de uma ilusão. No paradoxo, ele imagina uma corrida entre o veloz Aquiles (personagem mitológico) e uma morosa tartaruga. Como a tartaruga é sabidamente mais lenta, ela sai com dez metros de vantagem. É dada a largada. Aquiles corre os dez metros, enquanto a tartaruga corre um metro. Aquiles vence esse metro, mas a tartaruga corre um decímetro. E assim, até o infinito, Aquiles jamais ultrapassará a tartaruga.

Ao menos, não aos olhos da lógica pura e simples. Mas nem sempre a lógica nos conduz à descoberta da verdade, é o que nos demonstra a tartaruga. Há de haver também lugar para o bom senso. E, pela lógica, a julgar pelo início do texto, tampouco o mundano cronista conseguiria conduzir esta crônica de hoje a bom termo. Por que esse “haha”, madame??
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de maio de 2016)

sexta-feira, 20 de maio de 2016

A fórmula segue secreta

De idade, eu tinha apenas 16 anos nas costas. De ousadia (ou de falta de noção), uns dez mil séculos espalhados por todo o ser: da cabeça aos pés, do cérebro aos dedos das mãos. E foi com esses últimos (o cérebro e os dedos das mãos) que me instrumentalizei para cometer a dita ousadia: escrever uma carta ao meu ídolo. A ousadia em si não residiu no ato de datilografar a carta na máquina de escrever portátil marca Facit que eu tinha em casa, naqueles idos dos inícios dos anos 1980 (época, jovem leitora, mancebo leitor, desprovida de internet e de paletas mexicanas). A ousadia mesmo foi o ato de selar o envelope e despachar a missiva pelo Correio, rumo à residência do destinatário.
Foi! Agora era tarde demais para voltar atrás. Mas não havia muito com o que se preocupar, pois a expectativa era de que aquilo não desse em nada mesmo. Só que deu. O ídolo, duas semanas depois, respondeu. E ainda por cima se desculpando pela “demora em responder à minha missiva”. Eu não esperava por aquilo. Lembro que era no meio de uma tarde de final de dezembro de 1982 (fica fácil dizer que lembro porque ainda guardo a carta devidamente datada e, mais importante ainda, assinada), já estava em gozo das longas férias escolares e lia um livro estirado sobre o sofá da sala de estar, na casa da família, na Rua dos Viajantes. Foi quando o carteiro arremessou para dentro da sala, por meio da persiana que encobria a janela semiaberta, o maço de correspondência, provocando-me um susto.
Susto esse superado pela surpresa maior de ver, em meio à correspondência geral, a carta endereçada a mim e remetida pelo dito ídolo. Com o coração pulando à altura da boca, abri e li. Gentil, simpático, bem humorado, o escritor Luis Fernando Verissimo respondia ponto a ponto aos quesitos de minha carta. E encerrava a missiva dizendo saber, sim, a fórmula mágica para ter sucesso na literatura, mas que não a revelaria, por envolver “cogumelos do Tibet, pestanas de núbias virgens e filtros fumegantes”, além de “muita sorte”.

Como sempre soube que não poderia contar com a sorte; como nunca fui ao Tibet catar cogumelos e como jamais ousei tentar arrancar as pestanas das núbias, pois que pelas pestanas é difícil descobrir se são virgens, desisti de querer aplicar a fórmula. Ah, sim, havia os filtros fumegantes. Essa era a parte fácil, mas joguei-os fora, em um dia de faxina. Na verdade, os elementos que Verissimo manteve secretos eu só fui descobrir mais tarde. Chamam-se esforço e talento, ingredientes que ele tem de sobra. E eu aqui, há anos tentando identificar núbias virgens...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 20 de maio de 2016) 

quinta-feira, 19 de maio de 2016

O negócio é falar de sax

No início desta semana, botei-me a escrever passeando por searas que me são estranhas e, como era de se esperar, chamei a atenção de leitores atilados que, por sua vez, chamaram-me a atenção para aspectos que deixei a descoberto. Não fizeram ouvidos moucos esses leitores à abordagem que teci aqui sobre meu encantamento pelo instrumento musical conhecido como saxofone, coincidentemente inventado na metade do século 19 por um belga chamado Adolphe cujo sobrenome continha o nome do objeto de sua invenção: o senhor Sax. Monsieur Sax inventou o saxofone. Fico imaginando se Phillip Battery foi quem criou a bateria; John Guit a guitarra e a Senhorita Claire o clarinete.
Brincadeiras à parte, o fato é que meu despretensioso comentário relativo aos encantos da musicalidade produzida pelo saxofone encontrou eco na sensibilidade musical e estética de diversos leitores que decidiram se manifestar, compartilhando também seus gostos e saberes a respeito, o que muito me honra. Cito alguns deles, sem pedir autorização, pois que imagino valer a pena compartilhar aquilo com que me brindaram. Primeiro, a amiga (e leitora) Miriam Farina me chamou a atenção, na postagem da crônica em minha página do facebook, para os discos do grande saxofonista e compositor norte-americano de jazz John Coltrane (1926 – 1967). A leitora Patrícia Martins de Barros, por e-mail, apontou que eu esqueci de citar “um dos melhores grupos dos anos 70 que tem um som de sax maravilhoso”, referindo-se ao Dire Straits, do Mark Knopfler, e recomendando escutar a música “Your latest trick”.
Já o saxofonista Luiz Alberto da Cunha, também por e-mail, escreveu-me assim: “Parabéns pela tua crônica de ontem, não só por eu ser saxofonista, mas por comungar com a ideia de que o universo do sax acalenta segredos insondáveis. O sax cria um excelente ambiente, faz você se sentir bem e é um som agradável a qualquer hora. Sem contar que saxofonistas são pessoas legais. E ainda tem o lado da sedução. Ouça músicas de filmes, com uma cena romântica e diga que instrumento está criando aquele clima. Na maioria das vezes o belo e "sexy" saxofone”. Bem isso, Luiz Alberto!
E digo mais, já que o assunto é interminável (como um bom solo de sax): não podemos esquecer da participação do saxofone em composições da banda Supertramp (ouçam, por exemplo, “School” e “It´s rainning again”). E agora, fecho com nota de ouro: alguém aí lembrou de “Love Theme”, do Vangelis, que marcou o filme “Blade Runner”, dirigido por Ridley Scott em 1982? Procure e escute. Com essa, fecho o round.

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de maio de 2016)

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Frustração ou duplo prazer?

A fim de nos posicionarmos sempre próximos da esfera em que sopra a chamada felicidade, precisamos saber moldar nossas exigências em relação a aquilo que nos dá prazer, fazendo com que se revistam de alto potencial prazeroso aqueles pequenos e corriqueiros fatos do dia-a-dia, sempre tão ao alcance de nossas expectativas e realizações. Da mesma forma, é também aconselhável que saibamos domesticar as frustrações que podem eventualmente surgir no meio dessa perseverante caminhada, pois que frustrar-se demais quando contrariados em alguma demanda, por maior ou menor que seja, tem o efeito de nos distanciar cada vez mais da tal linha demarcatória que permite o ingresso na zona da felicidade.
Deu para entender, madama? Pois é, é uma equação meio complexa de explicar, porque as coisas mais simples, quando tentamos reduzi-las à luz das explicações, parecem ficar complicadas, mas não são. Quer ver? Vou aos exemplos, que é a parte que a senhora mais aprecia, eu sei. Dia desses, estava eu (mas óbvio, madama, que o personagem do exemplo serei eu mesmo, como poderia ser diferente?) a flanar pelas ruas do centro da cidade, no intervalo entre um compromisso e outro, quando meus passos me levaram para dentro de uma loja de livros e discos usados, típico ambiente em que gosto de estacionar minhas flananças e passar a pescar preciosidades.
E daí deu-se que, em meio às gôndolas, de repente, deparei com um álbum do ex-beatle Paul McCartney, importado, ainda lacrado, que eu desejava muito para completar minha coleção! Estava lá o CD, me olhando e sorrindo, com aquela típica feição sedutora que costumam fazer os livros e discos de meus desejos quando encontro-os desamparados nas estantes e gôndolas das lojas, pedindo para que eu os acolha no calor de meu lar. Dificilmente resisto a esse tipo de apelo e, claro, comprei o disco. Aí, então, o exemplo do corriqueiro fato que me transportou para dentro da esfera da felicidade.

Porém (não houvesse um porém, não haveria crônica, certo, madama minha?), ao chegar em casa com a relíquia e tentar colocá-la na estante dos CDs, junto aos demais álbuns do cantor, qual a minha surpresa ao perceber que eu já possuía um exemplar daquela obra, adquirida sei lá eu quando, sei lá eu onde! Surpresa, sim! Mas, frustração? Não, madama, não. Aí é que está o segredo da coisa. Agora, estou com um CD duplo, de que gosto muito. Primeiro, com isso, tive confirmada a convicção de que realmente desejava aquele disco. Por fim, tenho um bom presente para dar a alguém que o mereça. É assim que as coisas podem ser.
(Crônica publicadano jornal Pioneiro em 18 de maio de 2016)

terça-feira, 17 de maio de 2016

Os sedutores mistérios do sax

Sou um devotado fã do som oriundo do instrumento musical conhecido como saxofone. Adoro escutar um saxofone. Quando bem tocado, então, acho melhor ainda. Solos de saxofone me conquistam mais do que solos de guitarra, ousaria eu escrever, caso não contivesse a frase uma perigosa incongruência, porque, convenhamos, gostar de saxofone é uma coisa, mas querer meter o sax em tudo, também, não dá. Solos de guitarra têm seu valor, especialmente quando inseridos em uma faixa de rock. Keith Richards, se estiver lendo, balança a cabeça em absoluta concordância, aposto. Mas Keith e os demais Stones não abrem mão da presença do músico Bobby Keys em sua banda de apoio, pois que ele traz o sax e tece solos fantásticos no meio de uma que outra composição.
Sim, um bom sax tem o seu valor. Acho que meus ouvidos começaram a ter sua atenção atraída ao instrumento devido a um disco (LP em vinil) que meus pais possuíam e botavam a tocar no aparelho três-em-um lá em nossa casa na Rua dos Viajantes, em Ijuí, na distante década de 1970, que abrigou parte de minha infância e adolescência. Lembro até da capa: fundo azul com uma estátua em primeiro plano e um enorme saxofone sobreposto à imagem. Faço uma nostálgica busca google e lá está o disco, achei! Trata-se de “Reverie en Sax”, disco do saxofonista italiano Fausto Danieli, pseudônimo de Fausto Papetti (1923 – 1999). O que levou Papetti a manter seu Fausto e trocar o sobrenome? Não encontrei explicação. Nem para isso e tampouco para a razão que o levava a inserir fotos de belas moças seminuas na maioria das capas de seus discos. O universo do sax acalenta segredos insondáveis, creio eu.
Insondáveis e fascinantes. Tanto é assim que alguns dos maiores escritores e intelectuais do mundo moderno são apaixonados pelo instrumento e dedicados praticantes. O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo é um deles. O cineasta norte-americano Woody Allen é outro. Eu, mero cronista mundano, longe de ser intelectual e tampouco músico, me restrinjo a admirar o instrumento e a procurar por sua aparição nas músicas que aprecio (as faixas do Kid Abelha, por exemplo, são repletas dessas surpresas, por conta do George Israel). Seguindo as pesquisas, descobri que o saxofone foi inventado na metade do século 19 por um belga chamado Adolphe Sax. Daí o nome. Viram só? É nessas horas que se percebe como a História é sábia. O mundo tem sorte de eu não me meter a tocar saxofone. E mais sorte ainda de eu não ter inventado nenhum instrumento. Quem iria querer tocar um kirstofone?

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de maio de 2016)

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Coincidências nas esquinas do rock

Uma vez convencido pelo luso poeta de que “tudo é símbolo e analogia”, sendo  possível extrair significados a partir da observância metafórica das coisas do mundo, é natural que também germine na alma do cronista uma irresistível inclinação a valorizar e evidenciar coincidências. Difícil uma coincidência passar batida ao olhar de quem busca permanentemente encontrar sentido até mesmo nas meras incongruências do existir. Na maioria das vezes, uma coincidência não passa disso mesmo: apenas uma coincidência. Mesmo assim, jamais deixará de exercer sobre essa categoria de observador o seu poder de fascínio e encantamento.
Isso posto, vamos aos fatos. A data de 16 de maio, por exemplo, exerce certa espécie de fascínio inexplicável sobre algumas das principais mentes criativas do universo do rock mundial, a ponto de se tornar referência em termos de lançamentos de obras que o passar do tempo tratou de tornar icônicas. Coincidências? Vai saber. Se sim ou se não, de qualquer forma, vale a pena se debruçar um pouco sobre os fatos, nem que seja para, pelo menos, agradar momentaneamente aquela parte da alma (ou do cérebro) que se deleita com o sabor das coisas incomuns. Meio século atrás, em 16 de maio de 1966, a banda norte-americana de pop-rock The Beach Boys trazia a público aquele que viria a se tornar um dos grandes e revolucionários clássicos da música contemporânea: o álbum “Pet Sounds”. O disco inovou e avançou no quesito ampliação do espectro de sons, instrumentos e arranjos que o universo pop estava habituado a praticar extraindo proveito máximo dos recursos disponíveis em estúdio, como resposta direta ao que o líder da banda, Brian Wilson, detectara ao escutar o álbum “Rubber Soul”, dos Beatles, lançado um ano antes, do outro lado do Atlântico (em contrarresposta a “Pet Sounds”, os Beatles viriam, em 1967, com “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, e o resto é História).

No mesmo dia e no mesmo ano (16 de maio de 1966), Bob Dylan lançava um de seus mais criativos e fundamentais álbuns, “Blonde on Blonde”, traçando e consolidando sua iminência no cenário folk-rock. Catorze anos depois, no mesmo 16 de maio, o ex-beatle Paul McCartney vinha a público com seu marcante “McCartney II”, pontuando com alto estilo a retomada de sua carreira-solo após o fim da banda que formou depois dos Beatles, os Wings. E, afinal, o que quer dizer tudo isso? Ora, absolutamente nada, afinal, são meras coincidências. Que servem para quê? Ora, pelo menos, como convite para relaxar ao som de excelentes dicas musicais no começar da semana.  E nem precisam agradecer.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de maio de 2016)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O que diz a Dona História

Mesmo estando o país com todas as atenções voltadas às consequências da recente decisão do Senado em aprovar a admissibilidade da abertura do processo de impeachment contra a presidente da República, creio conveniente parar um pouco para refletir sobre os simbolismos e significados que a data de hoje oferece. O 13 de maio entrou para a História como uma das mais importantes datas cívicas do país há exatos 128 anos, quando a então regente do Brasil, a Princesa Isabel (filha do Imperador Dom Pedro II que, na data, estava em viagem ao Exterior), sancionou com uma assinatura a lei que extinguia a escravidão no Brasil, a chamada Lei Áurea.
Com aquele ato, dava-se um fim, enfim, ao hediondo ciclo da escravidão que pontuou a formação do Brasil subjugando milhões de homens, mulheres e crianças que eram livres em seus países africanos de origem, vergando-os à mais extrema humilhação, opressão e exploração em terras brasileiras por sucessivas gerações. O ano era o de 1888, estava-se às vésperas (a um ano) da Proclamação da República e o ato da Princesa Isabel encerrou o período imperial brasileiro com chave de ouro. Ou melhor, com pena de ouro, uma vez que as três vias da nova lei foram assinadas, cada uma, com uma pena dourada diferente, daí a razão do apelido de Lei Áurea. E, também, metaforicamente, porque doura uma das mais humanitárias e importantes leis já promulgadas no solo deste país ao longo dos séculos de sua existência.
Sempre remando na contramão da História e insistentemente nadando contra a maré, o Brasil foi o último país independente do Continente Americano a abolir a escravatura, já que não foi nada fácil vergar os interesses das oligarquias dominantes, cuja riqueza exploratória foi construída às custas justamente do investimento na mão-de-obra escrava. De lá para cá, na prática, pouca coisa mudou de fato. A escravidão no Brasil não acontece mais de forma oficial e nem se dirige só a uma determinada raça. Agora, ela é velada, subliminar, ampla e classista. As oligarquias continuam enriquecendo às custas da manutenção dessa nova forma de escravidão (amparada nos processos de exclusão social, intelectual, cultural, econômica etc) e segue sendo muito difícil contrariar seus interesses.
Como este 13 de maio de 2016 se configura em momento histórico na política nacional, a própria História não se furta a fazer um convite à reflexão, uma vez que o passado sempre tem muito a ensinar e muito ainda há a se fazer neste país para que seus cidadãos possam realmente vivenciar a liberdade na plenitude do conceito.


(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 13 de maio de 2016)

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A batalha do cartunista

Uma notícia triste divulgada há poucos dias movimentou o cenário nacional dos quadrinhos, causando preocupação. O jornal “Folha de São Paulo” divulgou, no dia 8 de maio (domingo passado), que o cartunista Angeli não participará mais da sessão diária de tiras em quadrinhos do periódico. Isso põe um ponto final a uma saga de 33 anos contínuos, por parte do quadrinista, de publicação de cartuns diariamente em um dos mais significativos órgãos de imprensa do país. Quanto dá isso em volume de produção? Vejamos. Iça-se a máquina calculadora da gaveta e aplica-se a fórmula básica: digamos que cerca de 360 tiras por ano vezes 33... Chega-se a um total mínimo de 11.880 tiras publicadas. É coisa! E deve ser mais.
Angeli, paulistano, 59 anos de idade (nasceu em agosto de 1956), é um dos grandes ícones dos quadrinhos nacionais, tendo participado da geração de artistas que revolucionou e conferiu novo gás a essa arte nas décadas de 1980 e 1990, juntamente com cartunistas como Laerte, Glauco, Luiz Gê, Adão Iturrusgarai e outros. Os nomes desses artistas podem até soar apenas ligeiramente conhecidos ao estimado leitor e à prezada leitora, mas certamente as criações vindas do talento deles lhes são mais familiares. Aos exemplos. Laerte (64 anos) consagrou-se criando “Os Piratas do Tietê” e fez, juntamente com Glauco e Angeli, a série “Los Três Amigos”. Glauco, criador do personagem “Geraldão”, morreu assassinado por um fanático religioso em 2010, aos 53 anos. Luiz Gê foi um dos editores e ativos colaboradores da revista “Circo”, e o gaúcho Adão Iturrusgarai é o criador de personagens como “Aline” e o casal de caubóis homossexuais “Rock & Hudson”.

E Angeli? Ora, Angeli tem na conta a criação de figuras marcantes como “Os Skrotinhos”, “Rê Bordosa”, “Bob Cuspe” e muitos outros. Por que, então, essa súbita freada em sua produção diária para a “Folha”? Simples (só que não): o cartunista sofre de depressão e precisa focar todas as suas forças no tratamento da crise pela qual está passando. E não há como fazer graça quando o mundo interno e externo se apresenta pesado e sem graça. A depressão é uma doença maliciosa, que se infiltra sem avisar, devagarinho, sendo de difícil detecção por quem sofre dela e pelas pessoas ao seu redor. Mas Angeli não se abate. Seguirá participando eventualmente de outros espaços semanais no jornal, afinal, o desafio da tira de papel em branco e o lápis na mão, para um cartunista, ainda são seus melhores instrumentos de batalha frente à vida. Nós, do lado de cá das páginas, ficamos na torcida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de maio de 2016)

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Camisa verde com blusão amarelo

Dentro da infinita (e em constante processo de ampliação) coleção de minhas inabilidades domésticas (este é apenas um grupo, pois há também o grupo das inabilidades sociais, o das inabilidades literárias, o das inabilidades manuais etc), descobrimos (a senhora minha esposa e eu) que também figura (e com destaque) minha incapacidade para harmonizar cores no momento de me vestir, pela manhã, a fim de me apresentar minimamente aceitável ao convívio social. Como é, madama? Esta (crônica, suponho, a senhora quer dizer) está daquelas difíceis de acompanhar, devido à incessante interpolação de apostos e parênteses e assim não dá, que eu seja mais direto e objetivo, é isso que a senhora está querendo me dizer balançando assim a cabeça e chacoalhando ameaçadoramente esse longo e fino dedo em minha direção? Sim, senhora, deixa comigo e, por favor, repouse essa sombrinha lá longe, perto da porta, sim? Certo. Vamos lá, então.
Antes, permita-me defender minha tática dos parênteses que, às vezes, são necessários para impedir cacofonias e construções estranhas de sentenças, como ali acima em que, por pouco, não fosse a intercalação gráfica inserida estrategicamente bem no meio, a frase começaria com a esdrúxula combinação “esta está”, viste? Espera, volta, deixa aquela sombrinha quieta lá! Eu vou ao foco agora mesmo, prometo, sente-se. Então, como eu dizia, a senhora minha esposa, essa personagem sempre tão atenta e atuante em minha vida mundanamente cronical, chamou-me, dia desses, a atenção, parada defronte ao roupeiro, ao fato de eu ser desprovido da mínima capacitação estético-vestuária no que tange à escolha das roupas para vestir no dia-a-dia.

Tecia ela essa chocante (para mim) avaliação enquanto observava, de alto a baixo, as combinações que eu havia feito entre camiseta, camisa, blusão, jaqueta, calça, meias e sapato (a cueca não entrou na equação, e, nisso, ela deixou furo... a esposa, não a cueca) afirmando que estava tudo errado, porque, onde já se viu, uma camisa verde sob um blusão vermelho, ambas as peças sobrepondo uma camiseta roxa da qual se podia vislumbrar parte do colarinho sob o sanduíche roupal, isso, entre outras coisas, porque não vou reproduzir o que ela disse (rindo à larga) sobre as meias e os sapatos. Desvestiu-me ela e, em minutos, colocou-me melhor apresentado ao mundo, para sorte minha (e da imagem dela, por tabela). A vida é assim. A cada estação, surgem (ou ressurgem) algumas de nossas inabilidades. Isso que a madama nem imagina a cena que faço para descascar pinhões...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de maio de 2016)

terça-feira, 10 de maio de 2016

Na alça de mira da sorte

Há dias em que a sorte decide lembrar de você e coloca seu nome na lista daqueles que, hoje, serão bafejados por ela. Sim, porque, conforme a sabedoria dos adágios populares, a sorte bafeja (e quem sou eu para colocar em xeque os adágios populares). Existem aqueles que são lembrados mais amiúde por ela (a sorte) do que outros. Daí que surge mais uma classificação reducionista das gentes do mundo: os sortudos e os menos sortudos (não vou chamar ninguém de azarado aqui nesta crônica, que se pretende mundana e democrática, acolhedora e gentil). A turma do Pato Donald (os menos sortudos) e a turma do Gastão (os sortudos), para animar quem teve a sorte de ler historinhas de Walt Disney na infância.
Eu pertenço à turma do Pato Donald, pois que não sou lá dos mais assíduos a integrar a lista de lembranças da sorte em suas bafejadas pela aí. Não que tenha motivos para me queixar da vida, muito pelo contrário, posso ser, sim, considerado um sujeito de sorte em diversos aspectos. Mas me refiro àquele tipo de sorte que se revela em nosso cotidiano por meio dos pequeninos fatos que servem para estampar um sorriso de boa surpresa em nossos rostos. Ganhar uma torta em rifa de almoço comunitário, entrar na fila mais rápida entre os caixas do supermercado, essas coisas.
De minha parte, considero muita sorte quando deparo com um garçom ou garçonete que vai com a minha cara. Tem coisa melhor do que ser atendido com extremada simpatia por garçom ou garçonete em bar, restaurante, boteco, evento? Não tem. E, nisso, muitas vezes, tenho sorte. Fui bafejado nesse aspecto no final de semana que passou, quando compromissos profissionais me obrigaram a chegar atrasado, no meio da tarde, à festa de aniversário de quatro anos de meu afilhado. Esforçado dindo, ainda cheguei a tempo de me unir ao coro dos parabéns. Porém, a comilança generalizada (perpetrada, em festas de crianças, pelos adultos) já havia desacelerado. Mesmo assim, uma simpática garçonete fez-me o mimo de aterrissar à minha frente dois pratos repletos de cachorrinhos-quentes, pães-de-queijo e minipizzas aquecidos especialmente para mim. Não é uma sorte?

Mas também acho algumas outras coisas em relação a isso. Acho que é possível atrair os bafejos da sorte e fazer por merecer ser lembrado por ela, sendo incluído com mais frequência em sua lista diária. Não acredito no mantra do braço cruzado. Estou convicto de que é possível provocar a aterrissagem do prato de cachorrinhos-quentes, bem como atrair a gentileza dos garçons. Qual o segredo? Ah, fale com o Gastão...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de maio de 2016)

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O remorso de Rômulo

Muitos séculos atrás, num passado realmente distante, a data de 9 de maio consistia em uma efeméride importante no calendário do povo que dominava a maior parte do planeta no Mundo Antigo: os romanos. Era nesse dia que celebrava-se um festival muito popular conhecido como Lemúria, ou Lemurália. O principal objetivo dessa celebração (que também acontecia nos dias 11 e 13 do mesmo mês) era dar um para-te-quieto nos espíritos dos mortos que, acreditava-se, ficavam rondando as casas das pessoas. Especialmente os espíritos de parentes e ancestrais já falecidos.
Em cada uma dessas datas, cabia ao chefe da família cumprir todo um ritual estipulado para fazer com que os espíritos penados parassem de rondar os lares e fossem descansar em paz, deixando, por tabela, descansarem também em paz os ainda vivos habitantes das moradas. Cabia ao “pater famílias” (pai de família) descalçar suas sandálias e, descalço, dar voltas ao redor da casa, sempre à meia-noite, estalando os dedos, para afastar os espíritos. Depois disso, ele lavava as mãos nas águas correntes de uma nascente, pegava umas favas e atirava-as pelas costas, sem olhar para trás. Enquanto as favas eram consumidas avidamente pelos espíritos, o “pater famílias” devia afirmar nove vezes, em voz alta, que estava fazendo aquilo para redimir a família.
Reza a lenda que esse festival teria sido instituído por Rômulo, o mítico fundador de Roma, para apaziguar o espírito de seu irmão gêmeo Remo, que teria sido assassinado por ele. Rômulo sentia remorso pelo assassinato do irmão e, por isso, criara todo um rito para acalmar os espíritos vingativos dos mortos (inicialmente batizado de Remúria). Por sinal, “remorso” (inquietação da consciência por culpa ou crime cometido) e “remoer” (pensar ou refletir muito, afligir-se) são palavras que trazem na origem a raiz do nome do irmão de Rômulo, Remo. Coincidência linguística? Sei lá. O fato é que, com a derrocada do Império Romano, já se perde nas sombras do tempo a última vez em que celebraram-se os ritos da Lemúria em 9 de maio.
É uma pena que o remorso seja uma sensação que ande tão em baixa nos dias de hoje e ninguém mais sinta a necessidade de expiar os erros praticados contra os demais (vivos ou mortos) celebrando rituais em que se procure expiar a culpa pelo mal cometido. A regra em alta na atualidade é patrolar a tudo e a todos sem remorso algum e varrer as culpas para debaixo dos tapetes. Os remorsos de Rômulo e sua Lemúria são coisa do passado. E ainda tem quem ache que estamos evoluindo...

 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de maio de 2016)

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Sede saciada no quintal

Discorríamos, então, sobre a desnecessidade de ir procurar ao longe os talentos que existem aqui do nosso lado, atuando em nossos quintais, ao alcance de nossas mãos e ao ouvido de nossos elogios, caso sejamos suficientemente generosos para elogiá-los e minimamente habilitados a detectá-los. Nós, habitantes da Serra Gaúcha, temos o privilégio de contar, entre os cidadãos nascidos ou radicados por essas bandas, com um número significativo de talentos de envergadura universal atuando entre nós, sem que precisemos sair à procura deles por plagas distantes. Isso, em todas as áreas da atividade humana.
Atenho-me a lançar luz, a partir desse enfoque, aos nossos escritores, já que a literatura é área na qual transito com certa desenvoltura por ganhar a vida enfileirando palavras de sol a sol, mesmo quando nublado. Nossa região é pródiga, por exemplo, no permitir e estimular o florescimento de grandes, geniais e talentosos criadores de metáforas literárias. E isso não é pouco, em se tratando de buscar na literatura a expressão do gênio, o sabor do novo, a simplicidade do Belo que desvela o talento único do criador. Porque tecer novas, boas e surpreendentes metáforas é uma arte delicada e sutil, difícil de ser esgrimida e que elege poucos representantes qualificados. Mas nós temos os nossos representantes e se faz necessário manter viva a memória deles.
Refiro-me em especial a dois escritores serranos já falecidos, cujo poder de criação poética e metafórica os assenta junto aos grandes da literatura universal: Ítalo Balen (1917 – 1981) e Flávio Luís Ferrarini (1961 - 2015). O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986) cultivava, entre os temas de sua predileção, o estudo profundo das metáforas, a ponto de se perguntar: “por que diabos os poetas, pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis?”. Ora, elementar, meu caro Borges, respondo eu: porque esses poetas de mundo afora não foram tocados pelo mesmo talento que movia as mãos criativas de um Balen e de um Ferrarini. Vai uma degustação aí? Então:

“Antônia Muco tece cortinas com fios de choro... as longas noites não umedecem dedos para virar as páginas mortas de sono” (Ferrarini). “Não, meu amigo, meu peito é basalto/. Apenas, de quando em vez,/ brota da pedra, milagrosamente,/ um fio d´água, que não é néctar,/ mas aplaca, porque é puro,/ a angústia dos que são simples/ e têm sede” (Balen). Ah, que bom poder saciar essa sede tão pertinho de casa...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 6 de maio de 2016)

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O milagre do santo da casa

Não é preciso ir longe para buscar o que se tem de bom aqui, tão perto. Sábia a aldeia que sabe reconhecer a existência das gentes de talento entre as gentes da própria aldeia. Abençoada a casa que possibilita a manifestação dos milagres de seus santos, evitando que eles (os santos, os gênios, os artistas) precisem mudar de aldeia ou fugir de casa para encontrar acolhimento e reconhecimento aos milagres de suas artes e de seus talentos. Temos a tola e viciada propensão a admirar aqueles que estão longe de nós, reconhecendo-lhes o valor, ao passo em que cegamos nossa sensibilidade para admitir e detectar a qualidade (muitas vezes imensamente superior) daqueles que nos cercam e estão ao nosso lado no dia a dia.
Caxias do Sul é uma cidade privilegiada nesse aspecto. Não precisamos procurar exemplos de empresários de sucesso fora de nossas fronteiras, pois somos um caldeirão formador de lideranças dessa estirpe aqui mesmo e nem preciso gastar linhas elencando nomes. Também não precisamos invejar outros municípios por sediarem empresas líderes nacionais (e internacionais) em seus segmentos, pois temos disso aqui de sobra. Políticos honestos, desvinculados de falcatruas e focados nas questões da cidade, os temos também, pois que nossos prefeitos e vereadores e secretários, ao longo dos anos, no geral, são exemplo de trabalho e dedicação séria e ilibada. Em todas as áreas de atuação, possuímos profissionais de qualidade e valor, desde o mais anônimo até as lideranças.
No campo das manifestações artísticas, então, temos para dar e vender, mas não os daremos e não há preço que os pague. São de qualidade nacional (quiçá internacional) manifestações como nosso Coral Municipal, a Orquestra Municipal, a Companhia Municipal de Dança; nossas companhias e grupos teatrais e poderia me dedicar a elencar fileiras intermináveis de talentos em áreas como literatura, música, artes plásticas, fotografia, cinema, vídeo, quadrinhos, arte de rua, esportes em geral, artes gráficas, jornalismo... Temos produção intelectual dentro e fora de nossas faculdades, somos referência em centenas de frentes.

A questão agora é passarmos a ser também referência na capacidade de sabermos reconhecer, prestigiar e defender nossos talentos. É preciso também talento para saber reconhecer o talento que mora ao lado, que habita a alma de nosso vizinho. É preciso também generosidade e desprendimento. Eis aí, talvez, um segmento que ainda nos falte exercitar com mais assiduidade. Mas acredito em nós. Chegaremos lá também nisso.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de maio de 2016)

quarta-feira, 4 de maio de 2016

A sina que vem do berço

Estou convencido de que existem alguns traços de nossas personalidades que já nascem instalados na gente, quer queiramos, quer não. Viemos ao mundo já imbuídos de alguns programas instalados em nossas psiquês, independentemente dos ensinamentos que viermos a receber de nossos pais, do acesso que viermos a ter à educação e à cultura, de nossa condição social e econômica, dos esforços de nossos mestres, das ralhadas de nossas avós, das experiências que vivenciarmos, do desencanto com o Papai Noel. Esses downloads vêm à luz junto conosco e vão se manifestar ao longo de nossas existências, moldando e determinando aspectos de nossas personalidades.
Tomemos como exemplo eu mesmo (sim, e quem mais haveria de ser, né, madama?). Muitas das tendências e das antipatias que eu manifesto hoje, na idade madura (deixando claro minha concordância de que maturidade é um conceito relativo), já se faziam notar nos primórdios de minha aventura sobre este vale de lágrimas, na minha mais tenra infância, quando ainda usava fraldas (não, madama, não as geriátricas, mas as pueris mesmo), era, analfabeto, engatinhante e, naturalmente, fofo, muito fofo. Sim, senhora, já fui fofo. Não me obrigue a prová-lo, aqui não é o lugar e nem o momento para isso. Deixemos disso e sigamos no tema da crônica. Foco, madama, foco. A senhora também deve tê-lo.
Dizia eu que daria exemplos pessoais para ilustrar e embasar minha tese de que já viemos ao mundo aparelhados com algumas características de nossas personalidades. Ah, pois. Então: final de semana caiu-me no colo um livrinho intitulado “Diário do Bebê”, que minha mãe se dedicou a preencher, cinco décadas atrás, com alguns detalhes a respeito desta minha pessoa em meu primeiro ano de vida. E está lá, com todas as letras maternas: “Dia tal: foi pela primeira vez ao barbeiro: chorou, mas conseguiram cortar seu cabelo sem maiores complicações”. Interessante, pois que, até hoje, tenho um inexplicável horror a ir cortar o cabelo. Na página destinada a anotar minhas primeiras distrações, consta que eu ficava fascinado olhando o interior da geladeira. Ficava e ainda fico. Sou fascinado por geladeiras. Pelas coisas que elas guardam, na verdade. Também diz o livro que eu gostava de brincar com tampas de panelas. Sigo gostando, especialmente de panelas e do que se pode fazer com elas.

Ou seja: já havia muito de mim em mim mesmo desde que nasci. Não estou reinventando nada. Até voltei a ficar fofo. Sim, eu sei, preciso praticar exercícios. Mas fofo é fofo, né, madama, pega leve.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de abril de 2016)

terça-feira, 3 de maio de 2016

O risco letal de não fazer nada

Atenção, preguiçosos em geral e sedentários militantes: dedicar-se a fazer nada é uma (in)atividade de altíssimo risco e pode matar. Não só pode, como vem matando. Os números e as informações oficiais a respeito dos malefícios do ócio são assustadores. Suficientemente assustadores para fazer qualquer marcha-lenta decidir saltar do sofá e se botar a fazer cooper ao redor da mesinha de centro da sala, atrapalhando a novela do restante da família. Preferível correr o risco de ser atacado a chineladas pelos noveleiros do que vir a cair duro pelo simples fato de não fazer exercícios.
Os dados aterradores foram divulgados recentemente pela ONU por meio de seu Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), cujo levantamento aponta que 5,3 milhões de pessoas morrem no mundo, a cada ano, em decorrência de complicações advindas simplesmente da falta de incluir o hábito de fazer exercícios em sua rotina diária. Trinta minutinhos por dia já bastariam, segundo o estudo. Ou seja, não é nem necessário decidir se transformar em desportista semiprofissional de uma hora para a outra ou fazer fila defronte à academia mais próxima. Não precisa se inscrever na próxima maratona ou sair correndo pelas movimentadas estradas do interior. Não. Basta abandonar as almofadas do sofá por meia hora por dia e se dedicar a algum exercício que bote esse seu corpinho a funcionar um pouco.
No Brasil, ainda conforme as estatísticas do Pnud, ocorrem cerca de 300 mil mortes por ano devido à falta de atividades físicas. É mais da metade de uma Caxias do Sul por ano. Muita gente. A falta de exercícios físicos está relacionada ao surgimento de doenças como hipertensão, diabetes, depressão e obesidade, entre outras. Não significa que passar a andar de bicicleta meia hora por dia vai eliminar imediatamente essas doenças ou impedi-las de surgirem. Mas será, sim, um aliado poderoso para a conformação de sua saúde física e mental. O estudo da ONU vai mais além e atesta que o desenvolvimento de uma nação está, sim, ligada diretamente à qualidade da saúde de seu povo.

Nisso eu acredito. O grau de desenvolvimento e de civilização de uma nação decorre diretamente, sim, da saúde de seus cidadãos. Da saúde física deles. E também da sua saúde mental. E da saúde intelectual. Da saúde educacional. Da saúde espiritual. Da saúde infraestrutural. Da saúde política. Da saúde empresarial. Da saúde moral. Da saúde ética. Povo sadio é povo desenvolvido e com futuro. Há muitas áreas a exercitar saúde no Brasil de hoje.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de maio de 2016)

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Pois é, de novo o estrogonofe

Todo cronista que se preze está sujeito à ação de um fenômeno que poderia ser classificado como o “eterno retorno temático”. Ou seja, trocando em miúdos, trata-se da recorrência cíclica e sazonal, por parte do cronista, a assuntos anteriormente já abordados, uma vez que, convenhamos, né, estimado leitor e calorosa leitora, haja imaginação para conseguir abordar um tema novo a cada dia, apesar de, no Brasil, não ser difícil encontrar inspiração que alimente a surrealidade cronical a partir da observação da realidade surreal que nos cerca, é verdade, é verdade, reconheço e admito, basta sintonizar os noticiosos, mas, enfim, deixemos disto e vamos em frente.
Sendo eu um cronista da classe mundana (eu estava a ponto de utilizar o adjetivo “categoria”, mas, talvez, seja justamente esse tipo de atributo que falte aos cronistas dessa natureza, então, deixei por “classe” mesmo, que causa menos impressão e inibe celeumas), estou plenamente afeito ao efeito (trocadilho, viram?) dos assuntos que voltam a visitar as linhas que tão mal traço e não tenho como evitar, sob pena de, em o fazendo, ficar sem crônica. E por mais mundano que seja o cronista, ele não pode se dar ao luxo de ficar sem crônica, pois deixaria de ser cronista e teria de se dedicar ao mundanismo por si só, o que, convenhamos de novo, não tem o menor sentido sem que sobre ele se cronique. Croniquemos, então, sobre assunto já abordado, e o de hoje, tolerante leitora, paciencioso leitor, é o estrogonofe. De novo.
Mas sabe o que é? É que não existe estrogonofe igual ao estrogonofe de minha mãe. O estrogonofe dela é único, como, aliás, suponho ser também único o estrogonofe da mãe de qualquer cidadão que possua progenitora habilitada a cozinhar o delicioso manjar. Venho aqui recorrer ao tema para perenizar meu espanto frente ao fato de ser impossível reproduzir às panelas o sabor, a textura, a consistência e o perfume do estrogonofe de minha mãe. Tenho em casa a receita que ela utiliza, copiada para mim pelo próprio punho dela, mas não adianta: mesmo seguindo a risca cada passo, o meu jamais fica igual ao dela.

E por que isso, caro leitor, queridíssima leitora? Onde reside o mistério? Ora, simples. O mistério reside no fato de que há segredos que não podem ser desvelados por meio de uma receita. Há atos, fatos e jeitos de ser que decorrem da unicidade de cada um, impossíveis de serem imitados. Daí que um ser humano não pode ser reduzido a uma receita, e eis aí a crônica. Recorrente, sim, mas, ao menos, fugindo à receita.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de maio de 2016)