quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A lógica do lobo

Hoje a crônica vai por conta da Madama. Não o texto em si - até porque daí eu teria de partilhar parte de meus proventos decorrentes da digitação diária destas mal-tecladas linhas e minha síndrome de Tio Patinhas não o permitiria -, mas, sim, a essência do exposto, oriunda de uma pertinente preocupação que a vem assombrando nesses assombrosos dias e que ela teve a delicadeza de compartilhar com este escriba. Delicadeza aliada à esperteza, pois que ela, no fundo, imaginava (e esperava) que eu acabaria transformando o insumo em crônica e dando-lhe o crédito, já que isso sobre mim ela sabe: mundano cronista, sim; larápio de autorias alheias, jamais! Apesar de não ser banqueiro, sempre dou crédito a quem o merece.
Madama me confessou andar apoquentada (Madama é dessas raras criaturas que ainda se apoquentam com as mazelas do mundo imediato ao seu redor e também à distância, do Oiapoque ao Chuí; do Rio das Antas ao Deserto de Gobi), apoquentada e incomodada (que ela também se incomoda) com essa epidemia psíquica que anda contagiando as gentes de hoje, cegando-as em meio a uma neblina espessa de preconceitos e ideias preconcebidas impossíveis de serem removidas (as imagens literárias aqui usadas são de Madama, uma exímia escultora de figuras de linguagem). “As pessoas botam uma coisa na cabeça e não há Cristo que as tire; não há argumento, lógica ou razão capaz de remover o tijolo mental que elas criam”, exclama Madama, olhos arregalados por trás do pince-nez (Madama, elegante, equilibra há décadas um delicado pince-nez na ponta do discreto nariz).

Verdade, Madama. Suas reflexões fazem o mundano cronista evocar uma das mais famosas fábulas de Esopo, o filósofo-escravo grego do século VI antes de Cristo: “O Lobo e o Cordeiro”. Era assim: O lobo viu o cordeiro bebendo água num riacho e decidiu devorá-lo. Como precisava de uma boa razão para isso, acusou-o de sujar a água que ele mesmo bebia, apesar de o lobo estar bebendo na parte superior do riacho. “Como posso sujar sua água, se ela vem daí de cima onde você está?”, argumentou o cordeiro. Desarmado no âmbito da lógica, o lobo retrucou: “Sim, mas ano passado insultaste meu pai”. E o cordeiro: “Eu nem era nascido”. Irritado e determinado, o lobo vociferou: “Se não foi você foi seu pai, ou seu irmão, ou seu tio. Defenda-se como quiser, pois não vou poupá-lo”, e devorou o cordeiro. Nem precisava, né Madama, mas Esopo insiste em grafar a moral da história: “Quando alguém está disposto a nos prejudicar, de nada adianta nos defendermos”. A alcateia assombra Madama.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2016)

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Uma aposta bem sacana


Hoje vou propor fazer uma aposta com a senhora, madama. A senhora aceita? Concordaria em correr o risco? Veja lá, hein, madama, normalmente eu sei o que estou fazendo, mas a senhora também tem lá suas garantias, claro. Vamos jogar um pouquinho? Afinal, que graça teria a vida se de vez em quando não ousássemos brincar com o perigo, mexer com fogo, mesmo sob o risco de fazer pipi na cama de madrugada? É, sim, também sou do tempo em que as avós nos advertiam para não brincar com fogo porque isso dava piririri de noite na cama. A senhora lembra, né? Então, vamos jogar?

Lá vai a aposta. Trata-se de um desafio sacaninha, desses típicos de autor de livro policial que lança pistas falsas para desnortear o leitor que se acha esperto, na tentativa de manter o mistério até o final da trama. O desafio é o seguinte: aposto que consigo dizer o nome de uma personalidade mundialmente famosa que a senhora não tem nem ideia de quem seja. É estrangeiro e já morreu, não faz muito. Vamos lá? Está pronta? Vou dizer o nome: Michael Jackson! Calma, calma, não meta as mãos na mesa para arrebanhar as fichas, o jogo ainda não acabou, a senhora não venceu a aposta, nananina! Quietinha aí e escuta. Ou melhor: lê. Eu disse Michael Jackson, e a senhora jamais ouviu falar dele. Ao menos, não do Michael Jackson a quem estou me referindo. Ahá! Eu disse que era coisa sacaninha.

Michael Jackson, madama, eu vou lhe dizer quem é. Ou quem foi, porque hoje, 30 de agosto, faz exatos nove anos que ele morreu. Trata-se de um famoso (sim, famoso) escritor e jornalista britânico, nascido em Wetherby em 27 de março de 1942, e que se notabilizou em todo o planeta por ser o maior especialista em análise de cervejas e uísques, tendo escrito vários livros sobre o tema, inclusive, publicados no Brasil. Não há referências a ele como sabendo fazer o passinho de dança “moonwalk”, como no caso daquele outro Michael Jackson que a senhora logo evocou mentalmente na hora de tentar rapar a mesa das apostas. Eu me referia a esse outro Michael Jackson, que a senhora nem sabia que existia, até agora.

Confesso que tampouco eu sabia da existência do tal especialista em cervejas e uísques até ontem, na hora de pesquisar para escrever esta crônica. Mas me espantei com a questão dos homônimos no mundo e do que eles fazem ao portarem nosso próprio nome. Haverá outros Marcos Fernando Kirst pela aí, dançando o “moonwalk” ou escrevendo sobre uísque? E quantas madamas será que há no nosso tão pequeno planeta, construindo biografias inimagináveis, madama? Há coisas que é melhor nem saber...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de agosto de 2016)

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O muso do Festival

A principal estrela da 15ª edição do Festival de Cinema de Gramado, realizada no longínquo ano de 1987 (quase três décadas atrás), fui eu mesmo. Ouso afirmar isso porque, imerso na condição humana como sou por direito nato, meço o mundo e relativizo a importância das coisas a partir de meu próprio umbigo. Viu só, madama? Hoje decidi chutar o balde que continha a pequenez de minha modéstia.
Resgato a memória embalado pela polêmica capitaneada na edição deste ano do Festival pela atriz Sonia Braga, que, em entrevista coletiva na abertura do evento (sexta-feira passada), voltou a criticar o governo de Michel Temer, chamando-o de golpista. Sonia Braga é e sempre foi uma mulher de posições definidas e exerce seu direito de expressá-las. E o Festival de Cinema de Gramado é e sempre foi palco para manifestações de seus participantes.
Vi isso ao vivo naquele ano de 1987, quando, na condição de ainda semi-imberbe estudante de Jornalismo, obtive credencial de imprensa por meio da Rádio da Universidade Federal de Santa Maria e, após raspar os trocos da caderneta de poupança para financiar pousada, alimentação e transporte, pude vivenciar “in loco” o clima do evento. Presenciei o diretor de cinema Rogério Sganzerla (1946 – 2004) interromper a projeção de seu filme “Nem Tudo é Verdade”, após falhas repetidas no sistema de som, e proferir discurso irado contra as más condições das salas de cinema do país na época. Cheguei pertinho e fiz fotos das musas Lúcia Verissimo e Bruna Lombardi.

E obtive meu diploma de foca inexperiente e inconveniente ao abordar, no saguão do Palácio dos Festivais, gravador de fita-cassete em punho, o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003), que tomava cafezinho e passava uma cantada em uma bela recepcionista. Imbecilizado pela inexperiência juvenil, interrompi a conversa e pedi entrevista para a Rádio Universidade de Santa Maria. “Para quem?”, exclamou o diretor, contrariado com a fuga da beldade que já estava quase no papo. Repeti e ele, vendo meu nervosismo, assentiu. E tasquei a primeira pergunta: “Quais as suas expectativas para o Festival?”. Novo enfado e a resposta desolada: “Oh, não, logo isso...”. Mas ele respirou fundo e deu a entrevista. Que não foi ao ar em lugar nenhum. Serviu apenas para tirar parte de meus temores. Conseguira entrevistar um famoso! Agora, o mundo seria meu! Dali em diante, não vi mais nada. Só eu sabia, mas eu era a estrela do Festival! Do meu festival pessoal rumo à formação profissional. Afinal, madama, somos as estrelas de nossos próprios filmes de vida, certo?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 29 de agosto de 2016)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Um freio aos voos de Solo

Hope Solo, a goleira-musa da Seleção Feminina de Futebol dos Estados Unidos, coleciona fãs da mesma forma como enfileira polêmicas. Antes ainda de rumar para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, já levou merecidos puxões de orelha por postar fotos, em seus perfis nas redes sociais, comprovando estar paramentada para enfrentar os perigos do vírus da Zika no Brasil, exibindo uma espécie de kit completo repleto de repelentes e até uma máscara especial anti-insetos. “Se alguém na Vila Olímpica esquecer o repelente, pode vir falar comigo”, escreveu a bela goleira de feias atitudes. Acabou levando goleada de críticas na internet devido à brincadeira preconceituosa.
A gracinha de mau gosto obrigou a atleta a pedir desculpas aos brasileiros assim que pisou no país para o início da caça por medalhas. Mesmo assim, o público não perdoou e Hope amargou dezenas de minutos de vaias durante as partidas de sua equipe que, por fim, foi derrotada pela Suécia nos pênaltis, ainda nas quartas de final, e ela teve de voltar para casa sem Zika e sem medalha na bagagem (apenas os tubos de repelente, que sabe-se lá se usou). O incrível é que isso não bastou. Hope, provando que não se contenta em provocar polêmica solo, mas sim em dobradinha, seguiu em frente em sua indomável vocação para armar confusão. Ao final da partida decisiva contra a Suécia, a arqueira deu declarações à imprensa internacional chamando as adversárias de “covardes” por terem adotado uma tática defensiva durante a partida, que resultou empatada em zero a zero no tempo regulamentar e na prorrogação, e foi definida nos pênaltis (a favor da Suécia, que foi à final e levou a medalha de prata).

Mas agora chegou a fatura, uma vez que má-educação e falta de ética têm limite. Ao menos, nos Estados Unidos parece ter. Esta semana, a Confederação Norte-Americana de Futebol decidiu suspender a goleira de participações na Seleção Feminina de seu país por um período de seis meses, devido às suas atitudes. Diz a nota oficial divulgada pela entidade: “Os comentários feitos por Hope Solo após a partida contra a Suécia durante a Olimpíada deste ano são inaceitáveis e vão contra o padrão de conduta que exigimos de nossas jogadoras de seleção. Além da arena atlética, além dos resultados, as Olimpíadas celebram e representam os ideais de jogo limpo e respeito. Nós esperamos que todos os nossos representantes honrem esses princípios, sem exceções”. Os bons exemplos estão aí, para serem seguidos. Refiro-me aos da Confederação Norte-Americana, e não aos da goleira, só para deixar claro.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 26 de agosto de 2016)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Nem neve, nem santinhos

Já sou conhecido pela turma de carteiros e carteiras que atendem o bairro em que moro, uma vez que demando deles bastante trabalho na entrega de encomendas que faço via postal, atraindo até minha casa livros, revistas, discos e filmes para completar minhas inextinguíveis coleções. “Encomenda para o senhor Marcos”, avisa pelo interfone o bravo funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, e lá despenco eu do décimo-primeiro andar, pantufas nos pés, coração ansiado acompanhando o visor do elevador a me desembarcar logo no térreo para que possa descobrir qual encomenda chegou e pelas mãos de qual de meus já amigos carteiros: o senhorzinho que gosta de ler e que já foi presenteado com livro de minha autoria; a moça da van de Sedex; o rapaz da motocicleta ou a rapariga caminhante.
Dessa vez é a rapariga caminhante, simpática (como todos) e conversadora, que entrega o pacote e pede para assinar na linha marcada. Hoje ela veio cedo e me achou em casa. “Não o tirei da cama, senhor Marcos?”, brinca. “Não, eu sabia que você viria e já estava cedo de guarda”, devolvo, assinando na linha ao lado do xis. Pelo jeito, ela gosta do que faz e compartilha uma sutileza de sua profissão que até então eu sequer desconfiava: “A campanha eleitoral dificulta nossa vida; as caixinhas de correio ficam lotadas de propaganda e santinhos e não sobra espaço para colocarmos a correspondência”. Verdade, não havia percebido isso. É importante que nós, moradores/eleitores, mantenhamos nossas caixas de correspondência regularmente esvaziadas, especialmente em período eleitoral, sob pena de não recebermos nossas encomendas e nossas cartas (cartas, não, que ninguém mais recebe carta, mas as faturas, as contas, os boletos e as multas de trânsito).

Vejo-a trotar rua abaixo com a pesada sacola às costas e me invadem a mente as belas palavras do lema dos carteiros norte-americanos, que diz mais ou menos assim: “Nem a neve, nem o frio, nem a chuva, nem o calor e nem a escuridão da noite impedirão estes carteiros de cumprir com agilidade as missões que lhes foram designadas”. O belo lema deriva da descrição que o historiador grego Heródoto (484 a.C. – 425 a.C.) fez do Angarium, o incrível sistema de mensageiros que existia na antiga Pérsia no século cinco antes de Cristo e que garantia o fluxo de informações naquela região. Se tanto na Pérsia quanto nos Estados Unidos nem a chuva nem a neve impossibilitam o trabalho dos carteiros, aqui no Brasil tampouco os santinhos eleitorais os impedirão de cumprir suas missões. Façamos votos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de agosto de 2016)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A resposta está na cara

Ela repousa logo ali, separada do presente pelo tênue fio intangível da sucessão dos dias que se transformam em anos e estabelecem a compreensão do passar do tempo. Observo meu rosto no espelho e tento encontrar nele a permanência de traços que me remetam a ela ou que pelo menos insinuem a existência de um elo concreto com uma época distante no calendário e, ao mesmo tempo, tão presente nas manifestações da memória. Talvez os sinais dela se escondam em meio às dobras das rugas que já raiam as esquinas dos olhos; talvez seja possível seguir seu rastro contando os fios brancos de cabelo que já se fazem incontáveis e irredutíveis em seu movimento de avanço; talvez a pista de seu paradeiro repouse nos sulcos da testa ou no relaxamento das pálpebras. Não sei.
Olho, olho e nada descubro. Algo me diz que a chave está ali, em algum lugar, e devo continuar perscrutando. Talvez a resposta não se encontre na mudança dos traços físicos e, sim, em algum aspecto que se mantém imutável apesar da marcha das horas. Para encontrá-lo, devo reorientar o foco do olhar. Percebo que o redirecionamento da linha de investigação me aproxima da resposta. O segredo não está na transformação dos traços, mas na essência intangível que os molda, cuja fonte reside na força vital e única que molda cada ser.
Sim, acho que descobri. O segredo de seu esconderijo talvez esteja exatamente na forma de olhar para si mesmo. Repousa no olhar, na intensidade do brilho que toma os olhos quando se olha o mundo com o mesmo entusiasmo de quando se veio há pouco a ele. Eis a chave. Redescobrir os traços da infância, distanciado cronologicamente dela por décadas, requer prestar atenção a alguns aspectos da capacidade infantil de seguir observando o mundo. É aí que se esconde a infância que às vezes dizemos “perdida”, mas que, na verdade, segue acompanhando nossa jornada diária de amadurecimento e de enfrentamento da vida, sempre presente no moldar da história pessoal que a cada um de nós é dado construir. Ela está no olhar e não nas rugas que envolvem e adornam os olhos.

Impossível não pensar nos tempos de criança neste 24 de agosto, definido nos calendários oficiais como Dia da Infância, e evitar ser invadido pela nostalgia inerente a uma época da vida em que o mundo ao redor descortinava oceanos infinitos de possibilidades. Ao longo da vida vamos escolhendo caminhos. Mas saber detectar a presença ainda em nós da criança que fomos e que ainda podemos ser se configura em amparo crucial para seguir em frente na companhia das rugas e das cãs.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2016)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O cardápio da mesa do Rei

“É preciso saber viver”, já dizia (cantava) Roberto Carlos. Mas não só isso. Também é preciso saber viver de acordo com o que se propõe a fazer na vida, digo eu, observando as atitudes do próprio Roberto Carlos. É preciso conhecer seu próprio lugar no mundo, ter consciência de suas metas e de como chegar a elas. Tendo a elas chegado, é preciso também saber mantê-las e isso requer um exercício constante, sempre alerta, de autoconhecimento e de atitudes coerentes. Viu só, madama, como é possível aprender lições importantes somente observando atos de Roberto Carlos? É uma brasa, mesmo, mora?
Como foi que eu cheguei a essas conclusões? Sim, a senhora tem o direito de perguntar. E sempre é um prazer preenchê-la, madama, de informações. Então, vamos aos fatos. Manhã dessas flagrei Roberto Carlos e seu sorriso participando como convidado especial do programa de Ana Maria Braga na televisão. Estavam em torno de uma farta mesa de café da manhã, o que aguçou as atenções de minhas papilas gustativas e, atendendo a seu pedido (das papilas),estacionei o controle-remoto por ali mesmo, para ver o que acontecia. Ana Maria oferecia bolinhos e pãezinhos a Roberto, que gentilmente agradecia, justificando que, de boca cheia, não poderia responder às perguntas dela e nem cantar. Esperto, esse Roberto Carlos, pensei. Ligeiramente frustrada, Ana Maria deixou no prato o bolinho que acabara de arrebanhar e chamou logo a entrada das perguntas que a produção gravara com populares, direcionadas ao cantor.
E lá veio a primeira: “Roberto, qual a sua comida favorita”? Opa! Também queria saber. Qual o rango favorito do Rei? O mistério seria revelado ao vivo. Depois da risadinha tradicional, o artista, sem pestanejar, respondeu: “Feijão, arroz e ovo frito”. Bingo, Roberto! Muito esperto! Ao invés de vir com masterchefices esdrúxulas como paleta de cordeiro ao molho de hortelã ou suflê de palmito com amoras, ele veio logo com um dos mais típicos pratos da preferência nacional. Todos se identificaram de cara com sua resposta. Roberto Carlos sabe que é um ídolo das massas (“Como, não era feijão e arroz?”; não, madama, “massas”, aqui, usado no sentido de “povo”) e, para se manter no posto, é preciso renovar constantemente a identificação com seu público.

Até eu, que também sou massa, me identifiquei. Apenas acrescentaria um bife como acompanhamento, mas aí já estaria elitizando o cardápio, eu sei, e o Rei cuidou para não fazer isso. Roberto Carlos sabe estar em sintonia com seu público. Prova é que nunca o vi ser olimpicamente vaiado em estádios.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, em 23 de agosto de 2016)

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Muito além dos 90 minutos

Coisas estranhas acontecem em Uvanova, aquela pequena cidadezinha de colonização italiana encravada no seio da Serra Gaúcha, às margens do Rio das Antas, que faz divisa ao sul com a cidade de Tapariu; ao norte com a localidade de Vila Faconda; a leste com Nova Brócola do Sul e, a oeste, todos dão uma paradinha no final da tarde para apreciar o pôr-do-sol, porque, também, ninguém é de ferro e não dá para preencher a vida só com trabalho, trabalho, trabalho. Mantenho-me informado a respeito dos acontecimentos que movimentam a cidade por meio das notícias impressas no “O Uvanoveiro”, jornal semanal local que fielmente assino e recebo pelo correio com um atraso médio de quatro semanas porque, para economizar selo, são enviadas juntas as quatro edições do mês.
A grande novidade que mexe com o cotidiano dos uvanovenses (“uvanovense” ou “uvanoveiro”, uma das celeumas que chacoalham a comunidade há décadas) provém da área esportiva, mais especificamente do setor futebolístico, uma vez que o futebol é o esporte mais popular entre os nativos, seguido de perto pela esgrima de mêscola e pela bola na sporta. Aliás, a transmissão dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro provocou uma renovação geral do interesse dos uvanovenses pelas mais variadas práticas esportivas e campeonatos os mais diversos surgem em todas as partes pelo município, aquecendo o setor da venda de apitos e o do comércio de pão com salame, porque é preciso alimentar bem os atletas de todas as categorias.
Mas a grande novidade vem do tradicional ramo do futebol, mesmo. Por meio de um decreto prefeitural, a partir de agora, partidas de futebol que definem campeonato não podem terminar empatadas. Em Uvanova, não tem mais isso de levar a decisão para a prorrogação e depois para os pênaltis. “Futebol tem de ser ganho com a bola no pé, correndo dentro das quatro linhas e chacoalhando as redes; nada de cobrança de pênaltis”, declarou o prefeito em cadeia municipal de imprensa falada, escrita e fofocada.

Assim, em Uvanova, uma partida decisiva de futebol que resulte empatada após os 90 minutos regulamentares, entra em ritmo de prorrogação eterna até o instante em que um dos times marcar um gol e sagrar-se campeão. Não importa quanto tempo leve (minutos, horas, dias, semanas, meses). A partida-teste está em andamento já há cinco semanas. Sei que há ainda cinco jogadores em campo (dois de um time e três de outro); os demais, foram vencidos pelas cãibras. Na arquibancada, resta o prefeito, monitorando o certame. Aguardo a próxima remessa de periódicos para saber o desfecho.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro" em 22 de agosto de 2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Livros, CDs e filmes neles!

Olha, madama, vou lhe segredar uma coisa: se seu neto anda voltando desolado de passeios súbitos por diversos logradouros da cidade, infeliz por não estar conseguindo encontrar algum Pokémon pela aí, pode ter certeza de que ele se escondeu aqui em casa. Quem? Seu neto? Não, madama, o tal do Pokémon que ele caça. A Pokemonada toda parece que cansou de ser facilmente encontrada pelos celulares alheios e andam fugindo para cá, deixando a ver navios os caçadores de Pokémon na Praça Dante, nos pátios da UCS, na Avenida Júlio de Castilhos. Se é para brincar de esconde-esconde, eles decidiram radicalizar e vieram todos se esconder aqui.
Aqui tem Pokémon no banheiro, tem Pokémon embaixo da cama, tem Pokémon em cima da televisão, tem Pokémon enfiado na lata de biscoitos, tem Pokémon dormindo nas minhas pantufas, tem Pokémon congelado no freezer, tem Pokémon por tudo, madama. Tenho certeza de que o Pokémon perdido de seu neto está aqui entre eles. Pode mandar vir buscar, que é um favor que a senhora me faz. Entrego-o banhado e penteadinho.
Não é que eu me incomode com a casa atopetada de Pokémons espraiados por todos os cantos, longe disso. Até gosto da companhia que fazem, tiram aquele ar de solidão que costuma invadir uma casa quando não se tem gato, cachorro, periquito, tartaruga ou calopsita de estimação. Eles são minúsculos, silenciosos e amarelos. Um tanto agitados, sim, mas basta cuidar para não esmagar nenhum deles ao andar pela casa que tudo segue com certa tranquilidade. Não me importo que oito deles estejam sentados sobre a tevê quando, à noite, me ponho a acompanhar o salto com vara nas Olimpíadas. Eles torcem junto comigo e já andamos até ensaiando, com relativo sucesso, umas “olas” no sofá da sala.
O que incomoda, mesmo, madama, são os caçadores de Pokémons. E se descobrirem que aqueles mais difíceis de encontrar estão se escondendo aqui em casa? Com os Pokémons até ando aprendendo a lidar, mas os obstinados, fissurados e obcecados caçadores de Pokémons, o que se faz com eles, madama? A senhora veja seu neto! Não tira o nariz do aparelho celular, caçando Pokémons o dia todo, do café da manhã à janta, não é mesmo? Ele caça Pokémon no banho, caça na xícara do café, caça no prato de mingau, caça dentro do ônibus, é um inferno! Como lidar com ele?

Eu, aqui, tenho adestrado os Pokémons que se enfiam dentro de minha casa. Meto bons filmes no DVD, toco música de qualidade no aparelho de som e promovo rodas de leitura. Os seus, eu não sei, mas os meus Pokémons não vão gastar tempo caçando Pokémons pela aí, não.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 19 de agosto de 2016) 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Pokémon, don´t go!

É surreal, admito. Mas, me diga você, madama: existe algo mais surreal do que a vida real? Pois é. Então: aquilo que narrei aqui ontem, do Pokémon a invadir meu quarto de madrugada, foi só o começo do pesadelo. Teve (e tem) mais. Narrar e compartilhar o drama é minha forma de purgar o problema, a senhora me desculpe, mas tenha paciência. E com Pokémons, madama, há de se ter muita paciência.
Engraçado é que essas coisas só acontecem quando estou sozinho em casa. À noite, minha esposa chega e não acredita em nada do que eu digo. Mas a senhora, madama, eu sei que sempre me dá um voto de confiança. Tudo começou no meio da tarde, dia desses. Estava eu no meu escritório caseiro (isso, “home office”, a senhora já sabe) quando escutei uns barulhos estranhos vindos de lá dos lados da cozinha. Levantei e fui ver. Pra quê! Deparei com três Pokémons saltitando em volta da mesa do jantar. Pronto, era o que eu temia: meu apartamento invadido por Pokémons! Dentro do armário da louça, mais barulhinhos. Abri e saltaram de lá mais quatro. Pelo corredor, adentraram outros tantos. Quando vi, a sala estava tomada por duas dezenas deles. Que fazer?
Não sei me comunicar com Pokémons, nada conheço de seus hábitos. Mas sei que eles têm algum tipo de relação com aparelhos celulares. Empunhei o meu e apontei para o bando. Funcionou. Ficaram como que hipnotizados olhando para o aparelho. Arrebanhei assim a turba e conduzi-a até o sofá da sala. “Sit down there”, falei em inglês, apontando para o sofá. Não sei se foram as palavras ou o meu tom imperativo seguido pelo gesto, mas funcionou. A Pokemonada toda se acotovelou no sofá, juntinhos e quietinhos. De repente, outro ruído dentro da máquina de lavar roupa. Abri o tampo e de lá saltou outro. “Go there, with your friends”, ordenei, e funcionou de novo (meu inglês básico parece servir, pelo menos, para me comunicar com Pokémons).
Agora, o que fazer com eles? Liguei a tevê, tentando encontrar os canais infantis (bastava lembrar daqueles que sintonizo quando recebo a visita do afilhado). Encontrei um que transmitia “A Casa do Mickey Mouse”. “Iiiikk!”, guincharam, em protesto. Claro: Mickey é vetado, eles não gostam de concorrência. Que fazer? Desliguei a tevê e passei a mão em um livro de Monteiro Lobato: “O Picapau Amarelo”. Comecei a ler em voz alta: “O Sítio de Dona Benta foi-se tornando famoso tanto no mundo de verdade quanto no chamado mundo de mentira”. Funcionou. Ficaram quietinhos, escutando. Oba, eu tinha plateia! “Pokémon, don´t go”! Agora, quero-os todos aqui. Vou botá-los a ler!
(Crônica publicada ano jornal Pioneiro em 18 de agosto de 2016)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Amarelado na madrugada

Acordei no meio da madrugada com a nítida sensação de que havia algo ou alguém no quarto, além de mim mesmo e de minha esposa, que dormia profundamente. Nesses tempos de insegurança e violência, é uma sensação arrepiante. Nem de longe pensei em fantasmas ou seres de outro mundo, pois meu pavor surgia a partir da possibilidade de ter de enfrentar ali a invasão de algum ser deste mundo mesmo.
Tempos atrás, imaginaria tratar-se de meu gato que, cansado de dormir sozinho no sofá da sala, costumava vir ocupar seu devido lugar embaixo das cobertas junto a meus pés, a esquentá-los, pelo que sempre fora bem-vindo. Mas há anos o gato partiu para o céu dos gatitos e meus pés adormecem gelados, exceto nas vezes em que a esposa vira para o lado de cá, verdade. Não se tratava, portanto, do finado gato, tampouco da visita de sua alma felinada. Era alguma outra coisa, e eu precisava descobrir o que. Nessas horas, o medo imobiliza, mas aguça os sentidos de forma excepcional, especialmente a audição. Imobilizei-me na cama e me pus a ouvir.
Pic...pic... pic... Passinhos curtos em volta da cama. Passinhos de coisa pequena. Um anão assaltante? Difícil. Mas, se fosse, talvez eu levasse vantagem sobre ele em um ataque surpresa, com meu um metro e oitenta e um de altura e 85 quilos (cinco em excesso, confesso) de peso. Tenho assistido a combates de luta greco-romana nessas Olimpíadas. Saberia como fazer. Pic... pic... pic... Agucei as orelhas... O intruso se afastava lentamente da cama em direção ao roupeiro. Era agora ou nunca, precisava agir. Dei um salto na cama, acendi a luz e dei um grito de advertência: ráurgh!
“Que é isso, marido?”, gritou assustada a esposa, num pulo na cama, ao mesmo tempo em que eu ainda flagrava os olhinhos arregalados do Pokémon imobilizado ali, flagrado junto à porta do armário dos calçados. “Alhalá, alhalá, um Pokémon aqui no nosso quarto!”, esganicei, excitado e embaralhado, arremessando uma pantufa contra o local em que via a aparição amarelada. Blonc,  fez a pantufa contra o móvel. Blonc, fez também o peteleco que ela me deu na cabeça. “Dorme, você está sonhando acordado”, disse ela. “Pode ser, mas não quero Pokémons aqui dentro de casa”, resmunguei, desligando a luz e abraçando o travesseiro.

Na manhã seguinte, por via das dúvidas, dei uma geral em todas as peças da casa: embaixo das camas, atrás das portas, dentro dos armários... Não quero Pokémons aqui dentro. Nada contra eles, que parecem seres dóceis e adoráveis. Mas eles atraem hordas de caçadores de Pokémons. Isso é o que me apavora e tira o sono.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2016) 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Os recados das tabelas

Gosto de despender certa parte de meu tempo a analisar tabelas. Algum engraçadinho diria que “vivo pelas tabelas”, mas não chego a tanto. Mesmo assim, minha experiência demonstra que muito se pode obter em termos de informações sempre que uma tabela é examinada com o devido afinco e com predisposição para ir além dos números ali apresentados. Tabelas também possuem entrelinhas, camufladas aos olhos do observador superficial, mas prontas a revelar nuances e mistérios aos perseverantes, que navegam o olhar pelas ondas de mares não explícitos.
Tabelas que sempre consulto são aquelas que demonstram o desempenho dos times de futebol ao final das rodadas semanais de confrontos. Tanto a do Gauchão quanto a do Brasileirão recebem minhas visitas semanais e gasto nelas bons pares de minutos analisando o desempenho do time para o qual teimosamente torço. E o que se aprende após passar tantos anos observando o desenrolar de números de gols feitos contra o número de gols sofridos; a quantidade de partidas vencidas, perdidas e empatadas; a coleção de cartões amarelos e vermelhos e o aproveitamento dos times? Ora, conclui-se o óbvio: campeonatos são ganhos por quem joga melhor, vence mais do que perde, faz mais gols do que leva. Em resumo: por quem se prepara melhor e por quem se empenha mais do que os outros.

Mesma coisa nas Olimpíadas e seu Quadro de Medalhas. As obviedades estão ali, escancaradas entre os países amealhadores de medalhas de ouro, prata e bronze, contra aqueles que só fazem figuração. Interessante detectar que os protagonistas e os figurantes no Quadro de Medalhas Olímpicas equivalem aos países protagonistas e figurantes no cenário da geopolítica mundial. Óbvio que não se trata de coincidência. Detalhe singular: ontem pela manhã, os ocupantes das oito primeiras posições no Quadro de Medalhas eram exatamente os oito países protagonistas da Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, Rússia, França, Alemanha, Itália e Japão. Entre vencedores e derrotados no conflito, constam ali os países que se reergueram e se reinventaram após passarem pela pior guerra da História da Humanidade. E se reergueram e se reinventaram devido ao esforço conjunto de seus povos, calcados na construção de sociedades baseadas em valores comunitários e cidadãos cujos resultados vão bem além da boa performance esportiva apresentada pela conquista de medalhas. A conquista de medalhas tem de se dar no dia a dia dos povos, sabendo enfrentar com maturidade as suas mazelas, sem molecagens. Molecagem não conquista medalha.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 16 de agosto de 2016)

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Como vencer os Vingadores

O primeiro deles, de cinco anos de idade, imobilizou minha perna direita com um abraço apertado. Tratava-se do Homem-Aranha, segundo informações oriundas do próprio. A Mulher-Maravilha, prima do primeiro, um pouco maiorzinha, imobilizou minha barriga, no que me pareceu um ataque em grupo premeditado. A irmãzinha dela, menor ainda do que o Homem-Aranha, decidiu puxar minha perna esquerda, rosnando e mordendo, jurando ser o Hulk. Não sei se o Hulk morde, mas aquela Mini-Hulka ali mordia. Antes que houvesse um acidente, larguei o copo com o drinque em cima da mesa do restaurante que sediava o jantar comemorativo à formatura de uma integrante da família e dediquei-me a administrar o ataque dos Vingadores a que estava sendo submetido.
Primeiro, tentei dialogar, afinal, professo a teoria de que a diplomacia deve imperar na solução de conflitos. Gritei bem alto que eu era o Homem-de-Ferro, super-herói integrante da equipe dos Vingadores, bem como Hulk, Thor, Capitão América e Homem-Aranha. Ah, não, o Homem-Aranha não é um Vingador, bem lembrado. Mas, mesmo assim, procurei apresentar minhas credenciais de super-herói, mesma condição proposta por todos os três atacantes, porém, não fui muito convincente e logo a Mini-Hulka mordia com mais força, o Homem-Aranha e a Mulher-Maravilha prosseguiam em suas lutas de mentirinha. E riam. Riam muito. Especialmente quando o Homem-Aranha me premiava com jatos de sua teia imaginária e eu, agora inegociável e irremediavelmente travestido em minha condição de supervilão, via-me totalmente subjugado.

Uma menorzinha ainda, vendo a alegria incontida dos três primos à minha volta, começou a se aproximar lá do meio do salão, o vestidinho rosa balouçando sabe-se lá sob quais ideias super-heroísticas e percebi que não suportaria enfrentar um quarto superpoderoso unindo-se ao grupo. Era preciso pensar rápido para desmobilizar aquela situação. “Qual é a cor do Hulk?”, perguntei, de súbito. “Azul!”, gritou a Mini-Hulka, tirando os dentinhos de minha perna esquerda. “Não, é amarelo!”, bradou o Homem-Aranha, mais sabido de todos. “Mas não é verde?”, perguntei eu. “Verde, verde, o Hulk é verde!”, uniram-se todos, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha, Mini-Hulka e a pequeninha do vestidinho rosa, já desarmada de saída. “E quem corre mais, o Homem-Aranha, o Hulk ou a Mulher Maravilha?”, emendei, em uma estratégia genial. As respostas se deram por meio de uma desabalada carreira do fantástico quarteto pelo salão, para meu alívio. Nós, supervilões, temos como melhor arma a agilidade de raciocínio.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 15 de agosto de 2016)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Sobre golear a Dinamarca

Sim, eu assisti à partida entre Brasil e Dinamarca na noite de quarta-feira, em que a Seleção Olímpica Brasileira de Futebol Masculino entrou de novo em campo, desacreditada depois das amargas estreias sem gols contra as fracas seleções da África do Sul e do Iraque, que lhes custou críticas em todas as plataformas existentes e imagináveis: dos jornais às redes sociais, das cadeiras dos barbeiros às rodas de chope, dos salões de manicure às academias de ginástica. Ninguém perdoou, especialmente quando comparada a performance dos meninos com a das integrantes da Seleção Olímpica Brasileira de Futebol Feminino, que estreou em grande estilo, metendo goleadas e mostrando o que acontece quando se leva a sério um propósito.
Até poucos anos atrás, o futebol ainda resistia como campo eminentemente masculino, uma vez que a competência das mulheres já vem há tempos encolhendo o raio de ação exclusivo dos homens em várias frentes e não é mais novidade mulher caminhoneira, taxista, lixeira, executiva, empresária, juíza, frentista, delegada de polícia, brigadiana, editora, metalúrgica, carteira, roqueira, soldada, pilota de avião, mestre, doutora, pós-doutora, reitora, política, bandeirinha, juíza de futebol etc. O fato é que não há mais campo em que os homens reinem sozinhos, o que os força a abandonar a zona de conforto e a se reinventarem também, se não quiserem ser atropelados pela competência, pelo foco, pela abnegação com que elas se dedicam a tudo. As mulheres estão obrigando os homens a deixar de serem “mulherzinhas”. Até mesmo no futebol.
Os quatro a zero de quarta-feira sobre a Dinamarca foram bem-vindos, sim, era o que queríamos: um chacoalhão na Seleção Masculina e a devida reação. Passaram para a próxima fase, mas agora é que são elas. Ou melhor, eles. Porque as meninas ainda estão na frente: em três partidas, ganharam duas e empataram uma: sete pontos. Os meninos, empataram duas e venceram uma: cinco pontos. Elas convencem. Eles ainda estão sob análise. E tem mais: não há nada de humilhante em os homens serem comparados com o desempenho feminino, seja no âmbito que for. É preciso aprender com quem tem a ensinar. Só isso.

Não se trata de uma comparação entre gêneros, mas, sim, da demonstração na prática dos resultados que se obtém quando existe dedicação à causa, amor, entrega, foco, trabalho, suor. Os resultados vêm disso. Só disso. Sempre. No caso do futebol, quem está ensinando isso aos meninos são as meninas. Não interessa quem ganhará medalha no final. O que interessa é a forma como se luta por elas.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 12 de agosto de 2016) 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Sintonizado nas nuvens

Dia desses, levei meu computador a um profissional qualificado (membro da família, naturalmente) para que nele procedesse às devidas formatações, limpezas, becápes (“back ups”, para os puristas), dáunloudes, atualizações, faxinas e o que mais fosse necessário para que a máquina voltasse a funcionar condignamente, sem travar, sem desligar de súbito, sem emitir gargarejos esquisitos, sem brincar de esconde-esconde com textos recém-escritos, essas diatribes que computadores fazem quando ficam tempo demais longe das revisões e que exasperam os usuários, normalmente semianalfabetos virtuais, como este mundano escriba que vos cronica (“eu cronico, tu cronicas”, do verbo “cronicar”, combinados, madama?). Na volta, ao ligar o aparelho no escritório doméstico (“home office”, conforme já pactuamos que é mais chique), deu-se a surpresa.
Devido à atualização de vários programas operacionais, acabei brindado com um serviço extremamente ágil e competente de previsão climática, muito mais confiável do que todas as promessas que vinha escutando até então das moças do tempo em todos os canais televisivos e bem mais prático do que colocar o braço para fora da janela com a intenção de confirmar se chove ou se o tempo está firme, como me via obrigado a fazer antes de sair de casa. Agora viciei no programinha do tempo e consulto-o a toda hora, com o propósito de verificar se o que ele afirma na virtualidade anda condizendo com a realidade temporal verificada lá fora. E não é que anda acertando? Estou fascinado.
Meu previsor do clima chega ao ponto de informar como se dará a variação do tempo de hora em hora ao longo do dia. Agora, por exemplo, jura que choverá daqui a duas horas. Marquei no caderninho. Daqui a duas horas, quero ver se haverá chuva. Além do mais, ele me elucida dados que sequer sabia existirem. Claro, me dá a temperatura e a sensação térmica, me diz a velocidade do vento e a umidade relativa do ar, mas vai além, explicitando a pressão atmosférica, o alcance da visibilidade (veja só!) e até o ponto de orvalho! E ainda conversa comigo, dizendo: “O céu estará nublado. Estará fresco lá fora, com máxima de 11º C. Haverá chuva durante a manhã”. Quer algo melhor do que isso?

Outro dia, programei um acampamento no mato para o final de semana. Familiares e amigos se surpreenderam com minha iniciativa, mas fui firme: “acamparemos no sábado”! Na noite de sexta, sob chuvas e trovoadas, cancelamos a programação. Eu sabia há dias que choveria, mas, ao menos, fiz minha moral com a galera. Nada como estar em sintonia com o seu tempo!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 11 de agosto de 2016)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Fugindo dos mascarados

“De onde menos se espera, dali é que não sai nada mesmo”. Soa com uma aragem de renovado frescor a famosa frase do Barão de Itararé (codinome do humorista e jornalista brasileiro Apparício Torelly, 1895 - 1971) sempre que perco duas horas de vida doando minha preciosa atenção ao miserável, sofrível, constrangedor, fiasquento e mascarado “futebol” apresentado pela Seleção Masculina nas Olimpíadas. Uma vez que não é dali que obterei o prazer de torcer por brasileiros abnegados lutando verdadeiramente pela conquista de uma medalha e dando o melhor de si nessa busca, tenho me dedicado a acompanhar outras modalidades esportivas, algumas cuja existência sequer conhecia, para minha satisfatória surpresa.
“Não existe esporte chato, existe é esporte pouco conhecido”, disse algum apresentador televisivo, com o que a prática do controle remoto acionado a partir do sofá me tem feito concordar. Quem diria que eu me encantaria por assistir a uma competição de levantamento de peso, onde sequer havia brasileiros disputando? Detectei ali a presença de técnica; percebi o resultado prático dos treinos e dos esforços dos atletas; vibrei com a quebra de recordes e com os instantes de superação. Não sabia que era assim, e gostei. O desconhecimento me afastava da fruição daquele prazer.
O mesmo se deu com a esgrima. Que emoção acompanhar uma luta entre dois contendores empunhando floretes, espadas e sabres, empenhados em tocar, com a ponta de suas armas, o corpo do adversário, em um show de destreza, agilidade, técnica e treino, muito treino; dedicação, muita dedicação. Isso sem falar na natação, no futebol feminino, na ginástica artística, no tênis de mesa, no boxe, no rúgbi (até rúgbi!) e tantas outras modalidades, com ou sem brasileiros na disputa.

Em todas elas, a detecção de algo em comum, já dito lá em cima: a presença do esforço, da dedicação, do amor ao esporte, da vontade de se superar, do orgulho em defender sua bandeira, do treino, da humildade, do aprendizado com os erros e com as derrotas, tão importantes quanto as vitórias. Vencer é a meta de cada atleta, sim, mas não é o que o público exige deles. O que nós exigimos deles é a presença daqueles aspectos citados ali em cima. A vitória, se vier, será sempre aplaudida, claro. Mas o que aplaudimos ao longo de toda a Olimpíada é a verdade do esforço e da entrega na busca pelo objetivo, porque são esses os aspectos que simbolizam a vida diária, e com os quais nos identificamos. Afinal, batemos recordes pessoais todos os dias e nossa medalha é o sono reparador à noite.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2016)

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Dando asas à brasileirice

Existe uma gama de comportamentos gastronômicos estereotipados e padronizados que caracterizam a essência dos povos. Na Inglaterra, por exemplo, você pode ter a experiência de sentir-se um verdadeiro inglês ao encomendar, no restaurante do hotel em que está hospedado, o preparo de um típico chá das cinco (“five o´clock tea”) para degustar ao final do dia. Na Argentina, é fácil mesclar-se aos nativos ao decidir fugir das limitações ritualísticas do hotel pela manhã e se dirigir às “calles” das imediações, nas quais poderá optar pelo estabelecimento mais aprazível que lhe servirá, sentado a uma mesa no passeio, ao ar livre, o “desajuno” pontuado por crocantes medialunas, café “con leche” e suco de pomelo. Sem esquecer de solicitar ao atencioso garçom uma edição do jornal do dia, para ficar mais completo o quadro (e podre de chique).
Pelas ruas de Paris, é bacana sair de uma padaria e circular pelos boulevares até o quarto do hotel transportando encravado debaixo do braço (como fazem os franceses, porque já vi) um comprido pão baguete ainda quentinho, que será degustado com nacos de queijo (roquefort, gruyère, camembert, à escolha do passeante) e generosos cálices de um vinho nacional. No Egito, não sei, mas não me furtarei a equilibrar uma sopa de areia sobre a corcova de um camelo ao anoitecer no Vale dos Reis, se esse for o caso. Na China, se meus futuros imaginários anfitriões insistirem, devorarei ao ar livre um espetinho de escorpiões fritos adquirido de algum ambulante, caso antes presencie os nativos fazendo o mesmo e me convençam de que aquilo é realmente típico e não sacanagem para se divertir às custas de turistas ocidentais.

Aqui no Brasil, onde nasci e moro, várias são as ocasiões em que me sinto genuinamente brasileiro, irmanado aos usos e costumes do povo ao qual pertenço. Uma dessas ocasiões se dá nos domingos em que a programação é ficar em casa me dedicando ao nadismo, sem vontade sequer de cozinhar. Aí, o que faço? Brasileiramente saio de casa por volta de onze e meia da manhã, percorro duas quadras até o mercadinho da esquina e adquiro um frango assado escolhido a dedo entre aqueles mais douradinhos que arrodeiam em espetos na assadeira. Pago em moeda nacional, agradeço em bom português e volto para casa, refestelar a família em um domingueiro almoço verde-e-amarelo. À noite, minha brasileirice vai pro brejo quando desfio as sobras e preparo um saboroso escabeche, a verdadeira e secreta motivação da compra do frango assado. Afinal, não dá para ser típico do alvorecer ao crepúsculo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 9 de agosto de 2016)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Por uma linha de coerência

Confesso que peguei o bonde andando, o bolo assado pela metade, o peixe já enroscado na minhoca, mas, mesmo assim, bastou para extrair dali alguns interessantes elementos para a reflexão. E refleti. Estacionei no canal bem no momento em que a jurada do reality show de gastronomia (esses programas televisivos em que os competidores se carneiam entre si, puxam um o avental do outro, tascam pimenta no sagu do adversário a fim de vencerem as provas) avaliava o prato que havia sido esmeradamente produzido por um dos postulantes à Mescola de Ouro.
A jurada meteu na boca uma garfada das iguarias, sob a trilha sonora induzindo expectativa e apreensão ao fundo (tipo aquela do filme “Tubarão”, lembra, madama, dos sustinhos que levamos nos anos 1970?), mastigou, virou os olhinhos e, finalmente, sentenciou: “Está bien (ela não é brasileira), todo muy hermoso, pero... falta algo... falta en su prato una linha de coerência”. Oh! Então o que faltava ao prato do pretenso e aventalado futuro chef não era uma pitada a mais de sal, uma gota de angostura, uma polvilhada de cardamomo, uma folhinha de salsaparrilha. Não! O que faltava ali era uma linha de coerência, que proporcionasse uma ligação palatável entre o medalhão apresentado, o molho que o encimava e a guarnição que o guardava. Uma linha de coerência, ora, pois!
Fiquei a refletir, então. Se o requisito para que nos transformemos em chefs é que saibamos oferecer uma linha de coerência em nossos pratos, então, é passível exigir que apresentemos também linhas de coerência a pautarem vários outros aspectos de nossas existências. Há que se ter linha de coerência, madama mia, nos pratos que fazemos, nas roupas que vestimos, na forma como dirigimos no trânsito, no estilo de música que ouvimos, naquilo que dizemos, naquilo que fazemos, naquilo que pensamos, no jeito como tratamos as pessoas, na forma como reagimos aos imprevistos e às frustrações, na expressão ampla de nosso ser, em tantas coisas. A linha de coerência, pode-se deduzir, é o instrumento que nos confere credibilidade frente ao mundo, às pessoas, à sociedade.

Mas ela não nos impede de também sermos ativas e sadias metamorfoses ambulantes. Adotar linhas de coerência não significa passar a agir feito samambaias, imutáveis. Não. A dinâmica da vida requer que saibamos também tirar temperos inesperados do bolso do avental e assim subvertermos essa linha, ousando, experimentando, combatendo a inércia, reinventando-nos, revendo conceitos, aceitando o novo e o contrário. Não devemos deixar esfriar o prato da vida.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 8 de agosto de 2016)

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Sinceridade nas quatro linhas

Aluado como sou, não sabia que algumas modalidades esportivas começavam a ser disputadas alguns dias antes da abertura oficial dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, cerimônia que acontece na noite desta sexta-feira. Imerso na mais olímpica ignorância, acreditava que os atletas só começariam a suar as camisetas a partir deste sábado, quando, então, eu passaria os olhos pela programação a fim de elencar as modalidades de minha preferência, para acompanhar pela tevê algumas disputas de medalhas. Mas uma zapeada fortuita pelos canais no final da tarde de quarta-feira me obrigou a rever meus planos relativos ao sofá da sala.
Pulando de um canal a outro com a intenção de espairecer do trabalho e ver o que rolava no mundo exterior, deparei com o andamento do segundo tempo do jogo de estreia da Seleção Feminina Brasileira de Futebol, mandando ver em cima das chinesas. Ainda tentava entender o que estava vendo (desconfiava ser um teipe de partida antiga) quando presenciei a desconcertante pintura que foi o segundo gol das brasileiras, com Marta recuando um passe dentro da área adversária para a conclusão de Andressa Alves para dentro do gol, de chulapa, batendo na bola ainda no ar. Coisa de gente grande. Coisa de futebol bonito, com arte, classe, categoria. Coisa de arregalar os olhos de torcida favorável e adversária. Tive de continuar assistindo até o final, com a vitória brasileira por três a zero na estreia.
E que delícia está sendo assistir às partidas de futebol feminino! Depois ainda assisti a partes (intercaladas com a retomada dos trabalhos) das disputas entre Alemanha e Zimbábue (seis a um para as alemãs) e França e Colômbia (quatro a zero para as francesas). E descobri que é no futebol feminino que vou renovar meu prazer em assistir à prática do tradicional esporte bretão, tão maltratado ultimamente pelos representantes masculinos brasileiros da modalidade. É ali, no gramado ocupado pelas jogadoras, que volto a encontrar a beleza, a graça e a plasticidade desse esporte tão amado em todo o planeta.

Mas não é devido ao charme inerente às representantes do gênero, nada disso. Mas, sim. porque ali ainda impera o frescor da garra, da determinação, da vontade de vencer e de se superar, a entrega, o espírito de equipe e, especialmente, o amor à camiseta e a empatia com as torcidas dos países (e dos clubes) que representam em campo. No futebol feminino ainda detecto a existência de sinceridade. E isso faz toda a diferença em qualquer atividade a que os seres humanos se dediquem. Vamos lá, meninas, estou na torcida!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2016)

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O valor de um porquinho

Nunca tive problemas em tomar injeções. Não tenho medo de agulha. Picadas não me assustam e nem tiram o meu sono (excetuando-se as de abelhas, vespas e congêneres). Exame de sangue, para mim, é procedimento banal semelhante a relaxar em poltrona de cinema (desde que não haja ninguém atrás chacoalhando o encosto com o joelho, gente tagarelando em volta, luzinha de celular acesa intermitentemente no assento ao lado e desde que o filme não seja a parte dezenove de “Invocação do Mal”, claro). Anestesia em cadeira de dentista? Sem problemas. Dispenso até o pré-anestésico em pastinha criado para anestesiar a gengiva contra a dor da picada da anestesia. Não precisa. Mete a agulha e vamos logo com isso. Há dores bem piores na vida do que agulhadas na carne, a madama concorda comigo, eu sei, está balançando a cabeça porque já sacou a metáfora da coisa, né madama?
Conheço gente que treme, empalidece, sua frio e bate o queixo só de pensar em ter de se submeter a algum procedimento em que uma agulha lhe trespasse a barreira natural da pele frente ao mundo exterior. Gentes das minhas relações (e não vou dizer quem, senão ela me mata) adotam imediatamente aquele olhar suplicante de cachorrinho acuado sempre que precisam se submeter a uma picadinha para tirar sangue em laboratório de análises clínicas. Adentram trêmulas as dependências dos laboratórios como se fossem gado no matadouro, prontas ao abate inegociável e cruel. Dizem as moças das clínicas (enfermeiras, auxiliares de enfermagem etc) que há quem desmaie de medo, ansiedade e tensão. Acredito. Só que, comigo, não. Sou destemido nesse quesito. Que orgulho!
Esse meu destemor deve ser oriundo das experiências de infância, quando era levado a tomar vacinas na Farmácia do Chico, lá na distante e saudosa Ijuí onde nasci, século passado. Acompanhava-me sempre, nessas incursões, um porquinho de pano que me era de estimação e o Chico (dono da farmácia e aplicador de injeções nas calipígias ijuienses) simulava primeiro vacinar o porquinho, que enfrentava a situação sem dar um pio (eu sei, madama, porcos não piam). Então, se no porquinho não doía, não doeria também em mim. A lógica era essa e crau a agulha no Marquinhos! Porquinho não vertia lágrima, Marquinhos também não. Mas que doía aquela coisa, ah, isso doía, madama, pois acho que o Chico não era lá muito jeitoso.

Passam-se já mais de quatro décadas dessas experiências ijuienses. Amanhã preciso tirar sangue para exames de rotina. Tudo muito bem, nem estou pensando nisso. Mas que fim terá levado aquele porquinho?
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 5 de agosto de 2016)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Desesperar na espera, jamais!

Ao longo de nossas existências, vamos acumulando horas e horas de nosso precioso tempo de vida a aguardar em salas de espera ou em filas em geral. Sempre que pacientes, aguardamos nas salas dos consultórios médicos, dentários, fisioterapêuticos, clínicos, psicológicos, estéticos. Sempre que impacientes, nas salas de órgãos públicos, estabelecimentos privados, filas de bancos, do pão na padaria, do caixa de supermercado, do barbeiro, da manicure, para a compra de ingressos, para a entrada em espetáculos e assim por diante, não me estendo nos exemplos porque a madama já entendeu o cenário que busco tecer nestas mal digitadas mundanas de hoje.
No que tange à administração de meu próprio tempo nessas ocasiões, aproveito, sempre que possível, para dar andamento às minhas leituras de livros, o que reveste o período de espera em prazer e exorciza a sensação de desperdício de vida. Experiente que sou no quesito “presença em salas de espera, filas e afins”, não deixo de deitar meu olhar observador ao avanço das tecnologias e às facilidades que também chegam à população nessas situações, bem como as transformações de comportamento que elas provocam. As televisões, por exemplo, hoje são presenças quase que absolutas nos ambientes em que se dá o fenômeno humano da espera, roubando as atenções que, até décadas atrás, dirigiam-se para as mesinhas de centro nas quais repousavam os jornais e revistas velhos.
Revistas e jornais, hoje em dia, jazem quase que intocados nesses locais, nos quais as atenções se dividem entre os smartphones carregados junto pelos esperantes e os aparelhos de televisão, via de regra sintonizados em canais que, no momento, estejam transmitindo programas culinários. Muito tenho aprendido sobre receitas gerais nos últimos tempos nas salas de espera, filas de banco e assemelhados, ao desviar os olhos das páginas de meus livros e cravá-lo na tela televisiva em que Ana Maria Braga despeja temerariamente o conteúdo pardo e viscoso de um liquidificador dentro de uma tigela que rapidamente mete dentro do forno. O que será aquilo? Não acompanhei o processo desde o início, portanto, não sei os ingredientes utilizados e tampouco o procedimento para obter aquilo que vi.

Mas o comentário da senhora ao meu lado, a respeito das ameixas utilizadas, me dá pistas. Tentarei algo em casa à noite. Afinal de contas, esse tempo não pode parecer desperdiçado. Ou, quem sabe, seja mais seguro dar sequência à leitura do livro. A receita de Ana Maria Braga entrará na fila dos projetos não cumpridos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de agosto de 2016)

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Nem Salvador e nem Bode

Neste longo período de conflagração política que estamos vivendo no Brasil, em que as ruas e praças das cidades são tomadas por grupos defensores de facções diversas (inimigas, inconciliáveis e intolerantes entre si), é interessante observar o alcance da imaturidade cívica que pontua a forma de agir, de pensar, de se posicionar e de se expressar de certas parcelas dos brasileiros, de lado a lado. Em que pese o fato louvável de os cidadãos decidirem se desacorrentar da inércia do sofá da sala e irem às ruas manifestar seus posicionamentos, ainda há muito a avançar em termos da civilidade necessária para conduzir essas manifestações a caminhos que resultem de fato no aprimorar da cidadania, da vida política e na conquista de melhores condições de vida no país.
Em resumo, não é jogando pedras nos outros que vamos convencer esses outros de que somos melhores ou diferentes do que eles, a quem acusamos de justamente jogarem pedras. O entusiasmo do abraço à causa parece levar certa parte dos brasileiros a esquecer que os fins nunca justificam os meios e que a intolerância, a raiva, a agressividade, o ódio, a demonização jamais servirão de alicerces para construir uma sociedade melhor, mais justa, mais fraterna, menos corrupta. Jamais. Quem rouba não me representa. Quem defende os que roubam não me representa. Mas quem prejulga também não me representa. Quem coloca todos na vala comum não me representa. Quem quer linchar o ladrão não me representa, porque está atropelando a seara das leis e da Justiça. Quem quer linchar acusados de crimes antes mesmo de terem sido julgados e quem não quer sequer escutar argumentos contrários não me representa. Quem odeia não me representa.

O que parece é que os dois principais grupos estão polarizados na adoção de antigas crenças populares (antagônicas entre si) que reduzem o mundo à banalização das intenções. O Grupo A elegeu no Grupo B e seus representantes a figura do Bode Expiatório, contra o qual pesa a responsabilidade por todos os pecados do país. Acreditam que, sacrificando o Bode e seus representantes, o paraíso se instalará na Terra como que por milagre. Já o Grupo B idolatra a figura do Salvador da Pátria, que pode ser representado por determinada(s) pessoa(s) ou instituições, por meio da(s) qual(ais) o paraíso será conquistado. Ambos estão cegos e só passarão a enxergar a partir do momento em que perceberem a necessidade de promover a autocrítica pessoal interna, único caminho para a conquista da maturidade, da cidadania e da construção de uma sociedade menos doente.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 2 de agosto de 2016)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Bichos, saiam das gôndolas!

Fico a me perguntar aqui: quem precisa de filmes de terror para sentir a adrenalina invadindo a boca e o frio gelando a espinha de alto a baixo, se temos notícias do mundo real prontinhas para embalar nossos piores pesadelos à noite? Hein? Quem precisa? Semana passada, por exemplo, fomos todos, pobres mortais consumidores, aterrorizados com a informação de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (a Anvisa) proibiu a venda e distribuição de lotes de cinco marcas de molho e extrato de tomate que apresentam fragmentos de pelo de roedor acima do limite aceitável. Jesus, Maria, José! Durma-se à noite, especialmente depois de ter ido ao supermercado!
Saber que marcas tradicionais de extrato e molho de tomate, dessas que a gente compra semanalmente nos mercados e são velhas amigas das donas (como a madama) e dos donos de casa (como o mundano aqui), contêm fragmentos de pelos de roedores (a Anvisa é clara: os roedores proibidos, no caso, são ratos, ratazanas e camundongos; hamsters e chinchilas, pelo visto, estão liberados), já bastaria para extrair de nós gritos incessantes de horror infernal. Mas o pior de tudo, a meu ver, é o fato de haver um limite tido como “aceitável” da presença de fragmentos de pelos de roedores nas embalagens desses produtos. Ou seja, madama: comer extrato de tomate com muito fragmento de pelo de ratazana faz mal para a sua saúde. Mas um pouquinho só, aos olhos da Anvisa, não tem problema, é tempero. Tá bom, então.

Ah, e tem mais. A senhora sabe, uma informação assustadora nunca vem sozinha, né. Por causa disso, ficamos sabendo que existem limites aceitáveis de presença de matérias esdrúxulas em diversos produtos que gostamos de meter nos carrinhos dos supermercados e levar para casa. Exemplos de arrepiar fragmentos de pelos de pescoço de madamas: café torrado e moído pode ter até 60 fragmentos de insetos a cada 25 gramas; geleia de frutas pode conter até 25 fragmentos de insetos a cada 100 gramas. No caso de insetos proibidos, a Anvisa se refere a moscas, formigas e baratas, considerados prejudiciais à saúde. Se a sua geleia vier com alguns fragmentos de patinha de grilo ou de antena de louva-a-deus, tudo bem, isso pode, refestele-se sem receio. Ah, sabe o chá de camomila, aquele que a senhora e eu tomamos para ficarmos mais calminhos? Bom, nele, é aceitável a gente deparar com até cinco insetos inteiros mortos a cada 25 gramas. Quer mais? Chega? Certo. Vamos assistir ao “Exorcista” e “Invocação do Mal” para relaxar desses horrores. Ah, e rasgue a lista do mercado!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de agosto de 2016)