segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Eis o sumo da caipirinha

Agora inventaram a caipirinha de melancia. Tudo bem, é preciso estar aberto às novidades que o andar do tempo faz surgirem (houve época em que sequer caipirinha de limão existia e alguém teve de inventá-la, um gênio dos coquetéis, por suposto), e assim os menus dos barmen vão sendo incrementados com caipirinha de abacaxi (que, admito, é uma delícia quando feita dentro da casca da fruta, desmistificando também a carga negativa da expressão “descascar o abacaxi”, que se transforma em prazer urgente quando o propósito é fazer uma caipirinha), caipirinha de maracujá, de morango e afins (lá vai o kirst-quiz da semana: qual a caipirinha mais esdrúxula que você já provou?).
Mas eu, dinossauro que começou a andar por sobre a Terra ainda no início da segunda metade do longínquo século passado (aquele, no qual música vinha de aparelhos três-em-um; no qual creme dental era pasta-de-dente; em que parecer descolado era usar calça boca-de-sino, tênis Bamba e chamar os caras de “bicho” e as minas de “mina”; em que era preciso esperar a válvula do televisor esquentar para assistir, em preto-e-branco, ao “Vila Sésamo” e outras cavernices), eu, que daquele tempo sou, ainda reluto em pedir ao garçom uma caipirinha que não seja a clássica, feita com limão esmagado, açúcar, gelo e cachaça (da boa). E isso que avancei: admito, no lugar da cachaça, uma vodka de qualidade, e, para agradar aos paladares femininos e pavonear gourmetices, uma pitada secreta de canela-em-pó, que fica docinho no copo delas e serve de desculpa para preparar outro, mais forte, “só para a homarada”.

A senhora minha esposa, com quem casei, é apreciadora do brasileiríssimo drinque. Na verdade, quase uma “expert”, dada a capacidade que desenvolveu de avaliar as qualidades de uma caipirinha bem feita, especialmente as tradicionais, sobre as quais traça tratados teórico-práticos. Aprendo com ela que existe uma lógica de consumo, que inclui saber bebericar a goles pequenos (na próxima encarnação, talvez, eu...) e, principalmente, impedir o garçom de recolher o copo quando o conteúdo parece ter sido totalmente consumido. Nãnãnã... Espera, deixa aí. O melhor reside justamente nos pedacinhos de limão que sobraram no fundo, encharcados do sumo caipirístico resultante do amálgama da polpa da fruta com a cachaça e o açúcar. É com propriedade profissional que ela saboreia aqueles nacos de limão. Deve haver poesia e metáforas profundas nisso. Fica a cargo do leitor e da leitora pescarem-nos. Afinal, é verão, tempo de férias e eu esqueci o que queria dizer... Garçom!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 30 de janeiro de 2017)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Porco, cão ou ovelha?

Quem é porco? Quem é cachorro? Quem é ovelha? Quem é humano? Quais as diferenças entre eles? Quais as semelhanças? De acordo com suas atitudes, um ser humano pode se assemelhar a um porco, a um cachorro ou a uma ovelha, se, para efeitos de comparação fabulosa e metafórica, forem levadas em conta algumas características atribuídas a esses animais. O porco é o ser que atropela tudo movido pelo incontrolável desejo de saciar seus interesses imediatos, resumidos a uma fome voraz (que, transposta para o universo humano, pode ser entendida como fome de poder, de riquezas, de fama etc). O cachorro é o bajulador inconsequente desprovido da proatividade do porco, mas que se alia a ele para também atender a seus interesses próprios e de ascensão. A ovelha é a grande população submissa, vampirizada pelos porcos e pelos cachorros, sem iniciativa de reação; os inocentes úteis; a massa ignara.
O escritor britânico George Orwell (1903- 1950) criou uma das mais icônicas obras da literatura contemporânea ao abordar a questão com seu aclamado “A Revolução dos Bichos”, lançado em 1945. No original, o livro intitula-se “Animal Farm” (“A Fazenda Animal” ou “A Fazenda dos Bichos”, em tradução livre deste cronista). Ali, os bichos da Granja do Solar resolvem se unir a fim de subjugar os humanos dominantes e assumir o controle da fazenda, irmanados em um propósito inicial de solidariedade traduzido pelo lema “Todos os bichos são iguais” (alterado mais tarde para “Todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”, à medida em que os porcos vão traindo o movimento e se aliam aos homens, pelo poder). Quarenta anos atrás, em janeiro de 1977, o grupo inglês de rock Pink Floyd lançava seu nono disco de estúdio, intitulado “Animals”. Era um álbum conceitual (como quase todos os da banda então liderada pelo baixista e compositor Roger Waters) claramente inspirado no livro de Orwell, composto por apenas cinco faixas (três delas com mais de dez minutos: “Dogs”, “Pigs” e “Sheep)”.

Nas letras das músicas de 40 anos atrás, Waters debruça-se a analisar as nuances das gentes que se assemelham a porcos arrivistas, a cachorros reacionários e a ovelhas submissas, e de como esses personagens humanos protagonizam as mazelas do mundo. Nesses dias estranhos em que vivemos, nada mais atual do que recolocar “Animals” do Pink Floyd para tocar no aparelho de som e folhear de novo as páginas de “A Revolução dos Bichos”, que encerra-se com a famosa frase “... mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do SUl, em 23 de janeiro de 2017) 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A resistência das rosas

Eu sei que é roubada comprar rosas no pico do verão, mas, quando percebo, já é tarde. Hábitos falam mais forte quando cultivados com zelo e isso vale para tudo: amizades, relacionamentos, restaurantes, bons e maus comportamentos, formas de pensar, maneira de escovar os dentes, leituras, churrasco de domingo, aquisição periódica de rosas e mais tudo aquilo que a amiga leitora e o estimado leitor quiserem acrescentar por conta de suas vivências. Quando vi, estava com o buquê deitado no banco do caroneiro, mais uma vez, como faço às sextas-feiras.
Flores trazem vida, cor e clorofila à casa, especialmente quando não se tem habitando nela nenhum gato, cachorro ou peixe de aquário. Às sextas-feiras, em uma esquina do bairro próxima daqui de casa, paro o carro ao lado da van do florista ambulante cujas portas escancaradas ofertam aos transeuntes diversos buquês de rosas com cores variadas. Tem de tudo que a imaginação e a palheta de cores possa criar: rosas vermelhas, rosas brancas, rosas cor-de-rosa, rosas lilás, rosas azuis, rosas verdes, rosas bicolores, rosas bege, rosas salmão, rosas amarelas. Gosto de variar e me divirto com as cores mais esdrúxulas, ciente de que são tingidas artificialmente, mas tudo bem, o que vale é o efeito.
Às vezes, adquiro dois buquês para mesclar as cores nos diversos vasos que depois a esposa espalha pelas peças da casa. Até os banheiros são brindados com a presença floral, porque, afinal de contas, aqui em casa, banheiro também é gente, se me permitem a metáfora pobrinha. E faço isso de caso pensado. Sei que a expectativa de vida das florezinhas não ultrapassa uma semana, período em que esperamos delas apenas que os botões se abram e preencham os ambientes com o perfume, as cores e a alegria de serem rosas. Depois, cumprem o seu destino: murcham, morrem, vão fora e dão espaço para os buquês da semana que vem. Assim é a vida das rosas, sobre as quais já aprendemos singelamente com o poeta que são rosas, são rosas, são rosas...

Mas no duro do verão a coisa é diferente. As rosas compradas sexta-feira passada não duraram sequer três dias e já estão flácidas nos vasos, murchas, tristes e acabadas. A rosinha amarela infiltrada no meio do buquê carmesim ainda que tenta manter a imponência, rainha em meio ao mar de murchismo protagonizado pelas demais. Efeito do calor, claro. Mas não desisto. É uma questão de honra não abandonar esse hábito. Afinal, se uma rosa é uma rosa, a poesia também será sempre poesia, apesar do calor abrasante. Contem comigo na sexta que vem!
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, em 16 de janeiro de 2017)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Cravados nas jugulares

Hoje vamos falar de vampiros. Sei tudo sobre vampiros. Leio muito a respeito há séculos... Quer dizer... Há anos. Muitos anos. Com o passar das eras, ou melhor, dos anos, fui acumulando profundos e detalhados conhecimentos a respeito das mais variadas espécies de vampiros, seus hábitos, suas características, suas preferências, suas formas de manifestação e, sobretudo, a respeito de seus disfarces. Um dos mais poderosos artifícios dos vampiros é seu poder de se disfarçar e de se imiscuir anonimamente no seio da convivência com suas vítimas em potencial. Aterrador, não acha? E é mesmo.
Ao estudar o vampirismo, descobri que a pátria dos vampiros é a longínqua e nebulosa Transilvânia, encravada nos Cárpatos da Europa oriental. Ali, a vampirada deita e rola, ou melhor, suga e morde, ao sabor de sua insaciável sede de sangue. Vampiro quer sangue, cada vez mais e mais, e fica desesperado quando se vê impossibilitado de prosseguir encravado nas veias que lhe proporcionam o tão desejado fluido vital. Está escrito na testa do vampiro “quero sangue”. Observe bem e você verá. Pois bem. Lá na Transilvânia, a pátria dos vampiros, as diversas regiões do país são controladas por enormes e fabulosos gigantes. São gigantes imensos, colossais, descomunais, cujos organismos são constituídos por quilômetros infindáveis de veias e artérias pelas quais circulam milhares de litros de cobiçoso sangue para a vampirada.
E frente a isso, o que os vampiros da Transilvânia fazem? Ora, eles se reúnem em grupos de afinidades, que denominam “partidos vampíricos”, e se organizam para atacar, subjugar e vitimizar os gigantes para, assim, sugar-lhes o sangue em conjunto, unindo forças e garantindo a eternidade de suas vampiranças. O interessante é que todo o processo é muito democrático. Apesar de se odiarem entre si, os grupos fazem acordos estratégicos para imobilizar e sugar a seiva vital dos gigantes. O grupo de maior expressão e poder vampiriza a jugular e as principais artérias dos colossos; os grupos intermediários ficam com os órgãos secundários e as veias mais extensas; os grupelhos menores sugam os dedinhos, as orelhas, a ponta do nariz.
Enquanto houver gigante a ser sugado, os grupelhos de vampiros trotam juntos suas jornadas vampirais. Caso percam a boquinha – ou melhor, a gargantinha –, imediatamente as alianças se esfacelam como névoa e os vampiros brigam entre si, acusando-se uns aos outros e saindo imediatamente em busca de outro gigante para vampirizar. Um pesadelo a situação lá na Transilvânia.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de janeiro de 2017)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Nada do que foi, será

Pronto, 2016 é página virada. Ufa! Aos trancos e barrancos, cá estamos, rumo ao futuro, renovando energias para enfrentar o que estiver por vir. Pelo caminho, ficaram Carrie Fisher; Gene Wilder; Domingos Montagner; Elke Maravilha; Muhammad Ali; Leonard Cohen; Prince; Zsa Zsa Gabor; Umberto Eco; Ferreira Gullar; David Bowie; George Michael; Fidel Castro; o time da Chapecoense; o bom senso dos eleitores norte-americanos; o mandato da Dilma; o corpo fechado de Eduardo Cunha; a intocabilidade de Renan Calheiros; a credibilidade das instituições brasileiras; a exclusividade de prêmios literários para quem escreve livros; o jejum do Grêmio; o jejum da Seleção Brasileira nas Olimpíadas; os relacionamentos de William Bonner e Fátima Bernardes, de Luiza Brunet e Lírio Parisotto e de Angelina Jolie e Brad Pitt, e o leitor completa a lista a partir de suas próprias referências (ou traumas).
O importante, para quem chegou até aqui, independentemente do tamanho das sequelas, é seguir rolando a bola pra frente, como nos ensinam os técnicos de futebol, sejam eles estudados ou oriundos das praias de Copacabana. E o que se pode prever em relação ao ano que se inicia? Bom, não muito, conforme aprendemos desde o surgimento da futurologia, além de que morrerá uma nova penca de famosos, catástrofes varrerão certas partes do mundo e a NASA encontrará outro planeta semelhante à Terra que pode ser habitado, nos confins do Universo. Fora isso, somos regidos pela incerteza e a melhor receita para navegar sobre as ondas do bravio mar da existência ainda é a prudência.

O que se pode dizer de antemão a respeito de 2017 é que será um ano permeado por centenários importantes, a começar pelos 100 anos da Revolução Russa, no segundo semestre. Inegavelmente, foi o fato que deu o tom para o desenrolar da História ao longo do século XX. Antes disso, em maio, quem tem fé haverá de recordar as aparições que Nossa Senhora de Fátima fez a três crianças em Portugal, segredando a elas alguns mistérios. No Brasil, recordaremos os 100 anos de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba gravado no mundo, por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o “Donga”. Serão lembrados os centenários de nascimento como os de Will Eisner; David Nasser; Antônio Callado; Juan Rulfo; Arthur C. Clarke; Sidney Sheldon; Ella Fitzgerald; Dean Martin; Zilka Salaberry; Chacrinha; Jânio Quadros; John Kennedy; Indira Gandhi, entre outros. Fora o pouco que dá para prever, melhor mesmo é contar com nossos próprios esforços. Um bom 2017 a todos.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, em 2 de janeiro de 2017)