segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Nem alho, nem água benta


Não sou afeito a abordar temas de forma sequenciada neste espaço, madama, afinal, esse tipo de coisa me parece que não cai bem em mundanas croniquinhas de segunda. Mas, veja bem: quando menos se espera, pode surgir uma exceção no meio do caminho e, se isso acontece, o que se faz? Ora, excetua-se! Excetuemos, então, pois! Dias atrás tergiversamos aqui, a senhora e eu, sobre a questão da raiva e concordamos na necessidade de aprofundar conhecimentos sobre o tema, que nos parece muito pertinente nesses tempos que estamos vivendo na nossa pátria amada Brasil, não foi? Pois é. Tão pertinente e tão premente que daremos sequência a nossos autodidatas estudos sobre o assunto nesta mundana de segunda. Assim sendo, partiu exceção!
A raiva, essa doença comportamental altamente contagiosa que está grassando de forma epidêmica no país de cima a baixo, do centro à periferia, da esquerda à direita, começa a atingir proporções incontroláveis, haja vista a contaminação que se dá em todos os seres, independentemente de raça, credo, posição política, idade, grau de instrução, gênero, sexo, altura, peso, time do coração, naturalidade, profissão, cor dos olhos, comprimento do cabelo. Nada, mas nada parece servir de antídoto contra o alastrar da doença. Seres raivosos pululam nas redes sociais, na internet, no trânsito, nas calçadas, nos estádios de futebol, nos restaurantes, nas esquinas, nos clubes, nas famílias, nos bosques, nos aviões... Não existe abrigo, não há bunker capaz de manter afastada a moléstia, madama minha.
Mas como lidar com os raivosos? Vejamos. Vampiros, por exemplo, são seres muito raivosos. Mete-se alho e gruda-se uma cruz na testa deles para espantá-los. Lobisomens, raivosíssimos, escorraçamos com balas de prata. Demônio babão possuindo o corpo de jovem inocente? Tacamos um “vade retro”, aspergimos água benta e exorcizamos o raivosinho. Para deter cachorro raivoso, chamamos a carrocinha (ainda existe?) e damos injeção no pobrezinho, afinal, esse é vítima irracional, não adota a moléstia por opção, como o fazem seus primos mamíferos humanos.
E com pessoa raivosa, madama, o que se faz? Nada. Não há o que fazer. Se você tentar acalmar, a raiva dela só aumentará. Se tentar argumentar, ela espumará de raiva. Se tentar se defender, será o pretexto para ela atacar. A raiva, madama, é cega, é surda, mas não é muda. Raiva grita. Raiva é apavorante. E não só grita: mata. Mata a civilização, conquistada a árduas penas ao longo dos milênios. Frente à raiva humana, madama, só dou um conselho: fique longe, longe, longe...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 29 de outubro de 2018)

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Hidrofobia é coisa que pega


Em tempos espinhudos, é preciso redobrar os cuidados, não é mesmo, madama? Um cronista mundano que o diga, uma vez que, para ser mal interpretado, basta que leiam somente o título de seus textos para que o bombardeio agressivo venha de cima, de baixo, da esquerda e da direita, tudo na mesma intensidade e raiva. Não é fácil, madama, é preciso pisar em ovos, e ainda cuidar para não ser tachado de opressor de ovinhos pelas patrulhas pró-ovos, e vá a senhora tentar explicar que se tratava apenas de uma metáfora! Nada apazigua a ira e a cegueira de quem parte de bases fundeadas na raiva, madama, nadinha. Mas urge tentarmos ajudar a elucidar as coisas, pois isso faz parte das atribuições do cronista, ainda que mundano. Sendo assim, vamos tratar de ciências.
Falaremos de uma questão pertinente aos dias de hoje, que evoca um cruzamento das ciências psiquiátricas e biológicas. Falaremos da raiva. Nesses tempos raivosos, é importante compreender as coisas, a fim de obter instrumentos capazes de fornecer proteção contra elas. É preciso, pois, estudar a raiva. Chamada também de “hidrofobia”, a raiva, quando abordada pela psiquiatria, evoca um distúrbio caracterizado pelo temor doentio da água e dos elementos líquidos em geral. O personagem Cascão, criado por Maurício de Sousa, representa bem a parcela da população que sofre desse transtorno. Cascão não foge da água, da chuva e do banho porque é desasseado, mas, sim, porque, talvez, sofra de hidrofobia. Já pensou nisso, madama? Pois é, e a gente aqui, julgando o pobrezinho do Cascão. Somos rápidos no gatilho em julgar quando movidos por preconceito e raiva, né, madama? Aquela outra raiva...
Já biologicamente falando, a hidrofobia, também conhecida como raiva, é uma doença infecciosa que afeta os mamíferos, causada por um vírus que compromete o sistema nervoso central dos contagiados. Pode ser transmitida pelo ser infectado ao sadio por meio de mordidas (cães), arranhões (gatos), lambidas (morcegos) e xingamentos (seres humanos). Chama-se popularmente de “raiva” devido ao comportamento agressivo que os indivíduos adotam após infectados. Cães antes dóceis passam a morder indiscriminadamente e a ter alucinações. Gatos também. Seres humanos, então, manifestam os sintomas de formas variadas (todas perigosíssimas). E são difíceis de conter. Não dá para negociar com quem tem raiva, madama. Não há argumento. É preciso manter-se longe, longe, longe... E cuidado: é um vírus altamente contagioso. Depois, a senhora não venha dizer que essas crônicas de segunda não servem para nada...
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 22 de outubro de 2018)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Nem Haddad e nem Bolsonaro


Sim, nem Haddad e nem Bolsonaro. Ao findar da campanha eleitoral deste marcante ano de 2018, o maior derrotado terá sido o processo civilizatório no Brasil, representado por um batalhão de vítimas. A primeira delas: a qualidade do debate de ideias. Morreu o debate de ideias. Discutir, de forma madura, propostas de governo e de sociedade entre os eleitores foi substituído pelo extravasar de veneno, de ódio, de fel, de amargor, de raiva e de violências. Convencer o outro que pensa diferente foi trocado por destruir o outro que ousa pensar diferente. Enterrou-se a civilidade, a grande perdedora das urnas em 2018.
O resultado final dessas eleições, seja ele qual for, trará embutido o recado de que os opostos se repelem e que a sociedade brasileira, em sua maioria (salvo as raras exceções de praxe), optou por acolher uma postura estranha de que é lícito endemonizar e massacrar os contrários. Conviver com a diferença é prática que vem sendo varrida para a lata do lixo no país pelos brasileiros. Ninguém está nem aí para qualquer espécie de ambiente, seja ele natural ou social ou emocional ou humano. O negócio é jogar no ventilador, se abaixar e ver no que dá. A molecagem tomou conta. Adotou-se a postura do gato malandro, que chacoalha a escada e é o primeiro a escapulir porta afora a salvar o próprio couro assim que a estrutura desaba, sem arcar com as consequências do que fez, eximindo-se das responsabilidades. Um país de gatos malandros, de todos os matizes, sob todas as bandeiras, camuflados em todos os discursos. Todos.
Nesse contexto, a multidão de perdedores é incontável. Perde o passado, que parece não ter mais relevância em seu papel de ensinar com os erros ancestrais. Perde o presente, em que o convívio fraterno está comprometido pelo espraiar do ódio e da intolerância. E perde o futuro, que se embasa em estruturas inumanas, incivilizatórias, carcomidas pelo cupim do rancor e das más intenções mútuas e recíprocas. O que esperar de uma sociedade que aposta na desagregação como alternativa? Que opta pelo ódio, pelo veneno, pelo desamor, pela arrogância, pela surdez coletiva, pela desarmonia, pela violência manifesta em todas as formas possíveis? O suicídio social é completo quando as nuvens pesadas vêm de cima, de baixo, da esquerda, da direita e do alto. Quisera poder ser mais leve nesta crônica de segunda. Lamento. Não deu. Depois dessas eleições, tentarei renovar meus votos, no Natal e no Ano Novo, pela retomada da convivência civilizada entre as gentes desse país, na esperança imorredoura de não brindar sozinho.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 15 de outubro de 2018)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

E de sobremesa, um paradoxo

Nestes tempos bicudos, um cronista, por mais mundano que se apresente, não pode se furtar de oferecer a seus leitores alguns momentos de reflexão sobre temas relevantes para a compreensão do mundo que nos cerca, fazendo jus à essência do conceito “crônica”, oriundo do termo grego “chrónos”, usado para designar o tempo (o tempo cronológico, madama, não aquele volúvel e indisciplinado que tanto atazana os meteorologistas). Se a crônica induz a debruçar um olhar sobre as coisas de nosso tempo e de nosso mundo, urge que o cronista cronique reflexivamente vez que outra, a fim de manter viva a chama do interesse e justificar sua permanência no espaço que ocupa. Lá vamos nós, então, hoje, debater sobre um paradoxo que, sazonalmente, assola os pensamentos deste dedicado cronista de segunda.
O leitor pertinente e a leitora sagaz logo esperariam, frente ao anunciado, que o cronista estaria prestes a compartilhar alguma reflexão reveladora a respeito, por exemplo, do famoso “Segundo Paradoxo de Zenon”, que fascina a humanidade ao longo dos séculos, desde que o pensador grego Zenon de Eleia (490 a.C. – 430 a.C.) o enunciou, para queimar as pestanas de quem se dedica ao raciocínio lógico. O paradoxo tem como personagens Aquiles e a Tartaruga, ambos prestes a disputar uma corrida. Como Aquiles corre mais rápido do que a Tartaruga, os juízes posicionam o animal alguns metros à frente de Aquiles, para que tenha alguma vantagem. Dada a largada, o que Zenon propõe em seu Paradoxo é que Aquiles jamais alcançará a Tartaruga, porque, quando ele atingir o ponto de partida da Tartaruga, ela já terá se deslocado até um ponto mais adiante, e, quando Aquiles passar esse ponto, também a Tartaruga terá se deslocado, e assim até o infinito, configurando o paradoxo do movimento.

Mas não é nada disso, madama, o meu paradoxo é mais prosaico, serrano e caseiro, e intitula-se “O Paradoxo do Sagu Quente”. Pensador reflexivo que sou, fico sempre a me perguntar por que razão os serranos afirmam, em sua esmagadora maioria, preferir o sagu quente ao sagu gelado, se a iguaria nos é ofertada nos restaurantes e nos buffets a quilo sempre em temperatura ambiente? Como podem preferir quente se é servido frio? A preferência, madama, não se sustenta e não encontra amparo legal (no sentido de “bacana”). Exceto, pois, em Vila Flores, onde descobri, dia desses, um surpreendente restaurante que serve o sagu em uma panela posicionada sobre um réchaud, mantendo-o quente e deitando por terra a essência desse paradoxo de segunda. Tá, mas eu prefiro frio.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de outubro de 2018)

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Horas e horas pra burro!


Olha só, madama, vamos dar, juntos, uma pensadinha? Hoje este mundano cronista que vos escreve estas mal digitadas linhas de segunda está reflexivo, sofrendo da síndrome de espelho retrovisor, porém, pretendendo estender o olhar para adiante. Vamos nessa? Pois, então, veja só, vou apresentar alguns números, pois sei que medidas volumosas costumam deixá-la assombrada e causar-lhe espanto. Espante-se então, madama, com as que enfileirarei a seguir e, na sequência, una-se a mim, em reflexão.
Nosso incansável Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que conhecemos pela sigla IBGE, publicou recentemente um relatório apontando que a expectativa média de vida do brasileiro chegou aos 76 anos. Um grande salto quantitativo se pensarmos que, na década de 1960, a previsão de longevidade nacional esbarrava na faixa dos 54 anos, essa flor da idade em que a senhora e eu hoje navegamos lépidos e faceiros, às vezes mais faceiros do que lépidos, verdade. Pois bem. Adiante. A senhora, madama, parou para pensar que esses 76 anos possíveis, que é a expectativa (claro que almejamos ultrapassar em muito essa meta, naturalmente), representam 27.740 dias? É dia pra burro, não é mesmo? Quer dizer, não sei a expectativa de vida dos burros, quis só usar um clichê ilustrativo de espanto, a senhora perdoe o mau jeito. E se transformarmos esse montante em horas, os 76 anos de vida nos oferecem 665.700 horas, que vamos nos permitir arredondar para 666 mil voltas do ponteiro grande do relógio. É hora pra burro, né, madama? Ops, desculpe, de novo.
Pois se temos uma expectativa de dispormos de uma média de 666 mil horas de vida, das quais, a grosso modo e via de regra, destinaremos um terço (ou seja, 222 mil horas) ao sono reparador de oito horas por dia, então, madama minha, chegamos à cifra assombrosa de 444 mil horas a serem plenamente vivenciadas despertos, ao longo de nossa brasileira expectativa de existência. Claro, bem sabemos, a madama e eu, que quantidade não implica qualidade, e sabemos também que o tempo passa voando, quando vemos, záz, foi-se um milhar de horas, e o que estivemos fazendo esse período todo, além de organizar escalações de times fictícios no smartphone e torcendo pela melhor voz do Brasil frente ao aparelho de tevê? Quatrocentas e quarenta e quatro mil horas, madama! É bastante, sim, mas voa. Mesmo assim, é o suficiente para decidir viver uma vida plena, que faça a diferença de forma criativa, cidadã e positiva, e não se restrinja a ser apenas um número a mais na contagem das gentes. Bom dia, madama. E boas horas.

(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 1 de outubro de 2018)