tag:blogger.com,1999:blog-3915780766919279512024-02-07T16:33:39.138-08:00Futilidades LiteraisBlog destinado à publicação de crônicas e textos assinados pelo jornalista e escritor Marcos Fernando Kirst em jornais e revistas, além de textos aleatórios quando for o caso.marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.comBlogger1203125tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-75582899090935217342020-03-16T16:33:00.003-07:002020-03-16T16:33:50.684-07:00Tempo para ressignificar<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
O versículo 1
do terceiro capítulo do livro de Eclesiastes, no Velho Testamento, nos ensina
que “Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu”. O
que se aprende com a máxima é que nada é perene na vida, tudo tem um início e
um fim, e que as coisas se reciclam. Quem era, na infância, nosso
amigo-para-sempre, depois desaparece nas dobradas da vida de cada um e não raro
jamais voltamos a vê-lo, quiçá, esquecemos até seu nome. As carroças não vieram
para ficar, foram substituídas pelos automóveis, apesar dos lamentos dos cocheiros.
A sabedoria oriental também nos ensina que o germe do novo, que não vê a hora
de desabrochar, pulsa latente nas entranhas do velho, que, ao ser superado,
prepara o terreno para o contínuo processo de transformação que pauta a saga da
vida sobre o planeta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Assim também
se dá, madama, no mundo das crônicas e dos cronistas, inclusive na parcela que
toca os cronistas mundanos de segunda, como este que vos escreve. Esta, que
hoje a senhora lê, na companhia intangível de tantos outros generosos leitores
e dedicadas leitoras, é a última que publico neste espaço que venho ocupando
nas páginas do jornal “Pioneiro” desde 24 de dezembro de 2009. De lá para cá,
foram, contando com a de hoje, 1.156 crônicas, versando um pouco sobre tudo e
um nada sobre muito, às vezes semanalmente, em outros períodos, até de forma
diária. Mas, parafraseando o texto bíblico e ampliando seu alcance, reitero que
há tempo para ficar e tempo para partir, tempo para permanecer e tempo para ressignificar.
Chega agora um desses tempos, e o cronista se despede do espaço e do veículo,
mas não dos leitores.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Afinal,
escritor é escritor e escrever lhe é atividade vital. Se assim não fosse,
escritor não seria, e o mesmo se dá com o cronista, inclusive com os de
segunda. Se ao longo desta década meus textos aqui publicados colaboraram para
suscitar em alguns o prazer de ler e ajudaram em outros a aguçar o sentido da
visão sobre os pequenos detalhes do cotidiano, que, na verdade, representam a
complexidade encantadora da vida, então, me dou por satisfeito. Foi um grande
prazer exercitar esse gênero literário aqui neste espaço, recebendo o retorno
de tantas pessoas, cuja generosidade serviu para retroalimentar e incentivar o
prosseguir na labuta escritural, mesmo quando a inspiração decidia passar ao
largo. O que inspira, na verdade, é a vida, e essa, segue sempre,
independentemente das mudanças, que, via de regra, são excelentes incentivos ao
movimento e às reformatações. Abraços e boas leituras a todos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">- Última crônica publicada no jornal
Pioneiro, em 16 de março de 2020, após 10 anos como cronista do jornal
(iniciado em 24 de dezembro de 2009).<o:p></o:p></i></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-40485774018864712502020-03-09T03:52:00.003-07:002020-03-09T03:52:34.771-07:00O apagadouro da memória<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Furungando dia
desses em uma caixa de guardados antigos, atrás de alguma velharia qualquer,
pois que sou um guardador de memorabília pessoal, especialmente papeis, deparei
com uma lista compilada por mim no início da década de 1990, na qual eu elencava
o patrimônio adquirido por meio do meu trabalho jornalístico nos primeiros anos
de atividade profissional. Constavam ali o televisor 21 polegadas (sensação da
época, mesmo que ainda trouxesse o tubo acoplado às costas), o refrigerador com
freezer anexo em porta individual (uau!), o aparelho de videocassete (as idas e
vindas à locadora de fitas para disputar os melhores títulos no final de semana
e devolver a pilha com a metade não assistida na segunda-feira integravam o
ritual de tarefas perenes), o Chevette branco 1990 ainda em prestações após a
entrega do antigo Chevette 1982 como entrada (a título de informação: Chevettes
eram veículos automotores bastante populares naquela era, e cumpriam a função
de deslocar seus proprietários de um lugar ao outro, da mesma forma como os
automóveis atuais) e... uma enciclopédia!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Sim, a garbosa
enciclopédia, composta por 20 volumosos volumes encadernados em capa dura, que
ocupavam duas fileiras inteiras da prateleira da sala, integrava a lista do
patrimônio significativo adquirido com o suor de minha testa e de meus dedos
nas teclas da máquina de escrever ao longo dos anos, produzindo textos que
resultavam em salário. Foi uma aquisição longamente planejada, as contas na
ponta do lápis para verificar se as prestações caberiam dentro do orçamento
doméstico que já se comprometia com o pagamento do Chevette 1990 e o
videocassete (este, tão indispensável quanto os demais itens). A chegada dos
volumes, via caminhão de transportadora estacionado defronte à porta do prédio,
causou a mesma sensação de excitação que se apossava de nós, habitantes
daqueles tempos remotos, quando da entrega anual da nova lista telefônica.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Como não
guardei nenhum papelzinho a respeito, sequer lembro que fim levou minha tão
valorosa enciclopédia de 20 volumosos volumes encadernados em capa dura, que me
ensinava tudo sobre o reinado da Rainha Vitória e sobre as principais obras de
Machado de Assis. Sumiu-se no apagadouro que engole as coisas e os fatos que
vão perdendo relevância ao longo do tempo. Sua memória se mantém recuperada em
uma antiga lista guardada em velhas caixas, descoberta ao acaso. Mas onde terá
ido parar todo aquele patrimônio, tanto o físico quanto o intangível, que não
consta nas listas? Para permanecer, o segredo é manter a relevância.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de março de 2020)</span> </o:p></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-36727538062986826832020-03-02T03:19:00.002-08:002020-03-02T03:19:25.099-08:00Os quatro defeitos sociais<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Quatro são os
defeitos de personalidade que impedem as pessoas de serem agradáveis no mundo,
elenca a escritora britânica Jane Austen (1777 - 1817), na voz de Elinor, a
protagonista de seu romance “Razão e Sensibilidade”, levado ao público pela
primeira vez em 1811. Na condição de cronista mundano (mesmo que notadamente de
segunda), sempre atento aos aspectos aparentemente triviais que sutilmente
moldam a delicada tessitura do ato de (con)viver, me é impossível seguir batido
pela passagem e evitar de largar momentaneamente o livro de lado para dedicar
alguns minutos à reflexão sobre o trecho lido (pois não é exatamente isso o que
se espera da confluência astral entre um bom livro e um leitor esforçado,
madama minha?). <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Pois foi
assim, noite dessas, os pés achinelados relaxando sobre o pufe laranja que
adorna o centro da sala, o restante do corpo (sou composto por bem mais do que
um par de pés relaxados, madama, acredite) em decúbito absoluto sobre a
extensão do sofá, o livro aberto equilibrado sem dificuldades (a edição é
pocket, porém, com texto integral) entre as mãos e a barriga fazendo a base,
que eu afastava a mente das atribulações cotidianas e me deixava enfronhar no
mundo fictício erigido pelo gênio da autora, quando deparei com a tal passagem
reveladora. “Os quatro defeitos que impedem as pessoas de serem agradáveis”!
Quais seriam? Aplicando aqui o poder contundente da síntese, que produz um
efeito mais profundo do que a prolixidade descritiva, Jane Austen classifica
assim os tais dos quatro maus elementos: a falta de sensatez, a falta de
elegância, a falta de inteligência e a falta de caráter. Na mosca, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sweet</i> Jane!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Fácil,
inclusive, de decorar a tabelinha do mau comportamento e portá-la mentalmente
quando transitamos pela vida e deparamos, com uma frequência maior do que
gostaríamos, com as desagrabilidades humanas produzidas por um ou outro desses
aspectos (ou vários deles combinados, quando não todos juntos): falta de
sensatez, de elegância, de inteligência e de caráter. De todos eles, credito
como o pior e o mais preocupante o último na ordem da lista: a falta de
caráter, porque é deliberada e consciente. De qualquer forma, são todos
igualmente deletérios ao ato civilizatório de conviver e de exercitar o
respeito mútuo em sociedade, que o processo civilizatório exige e prescinde
para se fazer viável. Grato à escritora imortal por nos presentear com essa
valiosa chave para, ao menos, podermos tentar compreender o incompreensível que
muitas vezes nos cerca nesse ato de existir juntos aos nossos semelhantes.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de março de 2020)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-37946196259340526312020-02-24T02:30:00.000-08:002020-02-24T02:30:02.264-08:00Na minha salada, não!<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Uma coisa a
gente precisa aprender na vida, madama: defender, com unhas, dentes e tamancos,
os nossos princípios norteadores de postura e de conduta pessoal. Precisamos
saber nos municiar de instrumentos que preservem e protejam as convicções, os
conceitos, as concepções, os ideais que vamos formatando ao longo de nossas
existências e que traduzem a nossa forma única, pessoal, inequívoca e singular
de sermos. Se eu sou eu e a madama é a madama, é porque alguns princípios e
posturas minhas obedecem às nuances da vivência obtidas pela minha experiência
pessoal. Já as da madama são as da madama e ninguém tem o direito de meter o
taco, tampouco dar pitaco, nem mesmo um mundano cronista, menos ainda um de
segunda. Respeitemo-nos em nossas convicções, e saibamos, nós mesmos, identificá-las
e preservá-las. Mas, para isso, é preciso estarmos sempre alertas. Sempre
alerta, madama minha!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Um exemplo, a
senhora pede? Um daqueles concretos, que ajudam a ilustrar com fatos e feitos
os ditos perfeitos? Sim, tenho um na manga, e bem recente. Lá vai. Tarde
dessas, flagrei-me com meia hora de folga entre um compromisso e outro, dos
tantos que abarrotavam minha agenda, no centro da cidade, e deparei com o dilema
centenário: o que fazer? Municiado de um livro companheiro para todas as horas,
tirei-o da pasta e nos dirigimos em comboio (livro, pasta e eu) até uma
confeitaria posicionada no meio do caminho. Frente ao colorido e sedutor balcão
das delícias, resisti bravamente ao apelo das coxinhas de frango, dos risólis,
das empadas saborosas, das quiches quentinhas, das paradisíacas fatias de
tortas, dos batalhões de quindins dispostos em ordem unida, dos tijolinhos lambuzantes
de massa folhada, dos milk shakes brilhosos, das embarcações de banana split adornadas
com tríades de bolotas sorvetais e... subitamente preocupado com minha saúde...
peguei um singelo, saudável e leve copinho de salada de frutas! <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Orgulhoso de
minha postura optante pelo equilíbrio da balança que habita meu banheiro,
dirigi-me ao caixa. Antes de o atendente faturar o pedido, possuído que estava
pelo demônio da tentação gulodícia, ele me perguntou: “o senhor gostaria de
acrescentar chantilly ou sorvete à sua salada de frutas”? Ato reflexo, ao ser
golpeado pela proposta, dei um passo atrás, atordoado, sem reação. Felizmente,
recuperei rápido o autocontrole e consegui fazer o bom senso seguir
predominando. “Não, obrigado”, respondi, e me afastei dali para uma mesinha,
ainda chocado. Afinal, não é fácil defender o território sempre pantanoso das nossas
convicções. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<o:p> (</o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 24 de fevereiro de 2020)</span></div>
marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-81220451722024066742020-02-17T01:53:00.002-08:002020-02-17T01:53:46.835-08:00Quem brinca com fogo...<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Olha só
madama, que coisa menos linda, que bela desgraça, é essa desdita que vem e não
passa, num triste balanço a caminho do mal. Sim, sim, estou me referindo a essa
onda que ancorou aqui nesse nosso Brasil nos últimos tempos e que insiste em
não ir embora: a de vira e mexe alguns aqui, outros acolá, acharem que têm o
direito de ditar censura a obras de arte, julgando que somos criancinhas que
devem ser tuteladas em suas capacidades de julgar o que é bom e o que é ruim, o
que é estético e o que não é, o que tem bom gosto e o que não tem. Mau gosto,
madama, é acharem que podem sequestrar o meu direito de acesso à cultura e às
artes, o meu poder de julgar e avaliar por conta própria, de acordo com meus
próprios parâmetros. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Hitler, aquele
do bigode e das raivas assassinas, mandou queimar livros. E onde se queimam
livros, né, madama, logo se passa a queimar pessoas. A História está aí, para
ensinar; a memória, para lembrar; e o bom senso, para nos ajudar a evitar que
se repitam barbáries. O andar do processo civilizatório não pode ter a opção da
marcha-a-ré. Cabe a nós darmos um freio naqueles que miram o retorno às trevas.
Mas é preciso estar alerta, porque sempre aparece um novo Torquemada ou um novo
Goebbels querendo extinguir os nossos direitos. Mas não passarão! Até porque,
já compilei uma listinha de livros que inspiram essa gente, a serem também
banidos de nossas prateleiras. Veja se a senhora concorda:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
O primeiro a
ir para a fogueira é o “Dom Picote”, aquela obra em que um censor anda a cavalo
pela região da Mancha Gráfica, de lança em punho, picotando livros de autores
consagrados, acompanhado de seu assessor acéfalo, o Sancho Tança. Outro é “A
Malvina Tragédia”, em que o autor, Dante Tristieri, percorre Inferno,
Purgatório e Paraíso destruindo todos os livros que encontra pela frente. Baniremos
o antigo “Maudisseia”, escrito pelo grego Maumero, que traz a saga de Maulisses
singrando mares e mundos a caçar escritores e livros. No âmbito da literatura
nacional, destruiremos o clássico “Dom Censuro”, de Mauchado de Assaz, que nos
lega a eterna dúvida sobre a conduta da personagem Vemcapitu: ela censurou ou
não cesurou? “A Censura Mágica”, de Thomas Mau, eliminaremos sem dó nem
piedade. Não escapará de nossa sanha piromaníaca o aclamado “Ensaio Sobre a
Fogueira”, de Josué Salamargo, e daremos fim ao “Fogueira Arcaica”, do Radão
Assar. Assim, madama, faremos uma limpa na biblioteca básica dos censores de
plantão. Claro, não sei se vai adiantar muito, porque, afinal... censorzinho ditatorial
sabe ler, hein?<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 17 de fevereiro de 2020)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-65890558889157681542020-02-10T15:27:00.002-08:002020-02-10T15:27:27.024-08:00Venha o pien ao prato meu<br />
<div class="MsoNormal" style="tab-stops: 185.3pt; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Meus olhos brilharam
no momento em que a travessa contendo meia dúzia de rodelinhas de pien atracou
na nossa mesa em meio à profusão de delícias que eram arremessadas pelo garçom
à nossa frente, ao ritmo da descrição automática que fazia de cada iguaria:
“bígoli ao molho de pomodori, frango à passarinho, polenta brustolada, polenta
frita, polenta recheada, maionese, radicci com bacon (ahhh, o radicci com
bacon!!), tortéi, costelinhas de porco, queijo à milanesa, linguiça frita...”.
Tudo isso após a première proporcionada pela panelona de sopa de agnoline al
dente (ou será que era capeletti?), guarnecida por fofas fatias de pão colonial
(aquela casca queimadinha...) e chuviscada com vigorosos arremessos de queijo
ralado. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Esse festival
de sabores, aromas, cores e texturas gastronômicas, tão comum nas cantinas
tradicionais e típicas da região da Serra Gaúcha, faz o deleite de turistas e
de nativos, que não se cansam de, de quando em vez, ou mesmo de vez em quando
(que representa uma frequência maior), proporcionarem a si mesmos esses rituais
de homenagem à gula, que, quando bem domesticada, pode se transformar em prazer
perene e não em perigo iminente. Mas nós, nativos emprestados, oriundos de
outras paragens e serranos por adoção e opção, também nos unimos a essa horda
de apreciadores da gastronomia regional, caracterizada pelo assemblage sutil
que mistura simplicidade com toques secretos especiais herdados de nona a nona.
Certo, mas, o pien... Esse, um pouco mais raro de figurar na lista das delícias
dos restaurantes, sempre que aterrissa à minha frente, faz meus olhos
lacrimejarem. Mas não, madama, não chego a chorar de prazer. É a saliva mesmo
que, de tão abundante, procura outros lugares para se manifestar além da boca,
já totalmente inundada na antecipação do degustar da iguaria, que só vim a
conhecer pela aqui, desde que passei a habitar estas paragens, quase 28 anos
atrás. Ah, o pien!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Também foi ao
passar a viver na Serra Gaúcha que desenvolvi o gosto pela carne lessa, pelo
vinho doce oriundo das vindimas, pelo café preto pingado com graspa (há amigos
serranos que tentam me aliciar ao grupo dos que invertem as doses, pingando
sutis colherinhas de café preto nas generosas taças de graspa, mas minha finada
vesícula me recomenda, do além, a evitar tais excentricidades), o galeto al
primo canto e tantas outras atrações. Ainda não fui convertido ao crem e tampouco
ao codeguin, mas o pien, madama... Ah, o pien, é pérola em rodelinhas a povoar
de estrelas o céu de mina boca! Quem disse que não há poesia na hora de
mangiar?<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 10 de fevereiro de 2020)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-88454800465424828092020-02-03T03:39:00.003-08:002020-02-03T03:39:47.531-08:00Milagres na própria aldeia<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Se santo de
casa continua não fazendo milagre, prefiro concluir que o problema não reside
tanto no santo, mas mais na incapacidade dos fieis de detectar, reconhecer e se
beneficiar com os poderes e os talentos do santo local. Santos e artistas são
as categorias que mais sofrem com essa reincidente ideia de que tudo o que<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>vem de fora é melhor do que aquilo que foi
gestado dentro dos limites geográficos de nossa aldeia, como se nossa aldeia
não fosse capaz de reunir os elementos necessários para a emersão de
genialidades muitas vezes até superiores às dos santos e artistas de alhures.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Dia desses,
madama, presenciei <i style="mso-bidi-font-style: normal;">in loco </i>a
repetição do mantra. Estava eu a aguardar algumas pessoas para uma reunião ali
no Centro de Cultura Henrique Ordovás Filho e, como havia chegado antes do
horário, aproveitei para apreciar as duas exposições de artes plásticas que
ocupavam os espaços do ambiente. Uma, em um corredor, abrigava obras de
artistas de Vacaria, compostas por telas que me impressionaram pela
contundência, pela sensibilidade, pelo inusitado. A outra, ocupando a área da
galeria principal, exibia desenhos e telas de um artista carioca, em um
trabalho interessante, mas que me causou pouco impacto. Ao encontrar dois
amigos no saguão, comentei sobre as mostras e recomendei que visitassem
prioritariamente a de Vacaria, por julgá-la superior. Mal terminei de falar e a
dupla se dirigiu direto à mostra do artista carioca. Afinal, era “de fora”. Não
sei se de fato a qualidade dos artistas vacarianos era superior à do carioca,
conforme eu defendia, mas uma coisa é certa: minha credibilidade enquanto
crítico de arte está abaixo das polainas do cachorro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
De minha
parte, sigo convicto de que, em se tratando de arte, a Serra faz milagres, sim,
com a sucessão de talentos e genialidades que gesta em todas as áreas. Só para
embasar, lembremos de Antonio Giacomin com suas aquarelas; de Vasco Machado e
suas telas campeiras; de Rafa Schüler e sua guitarra falante; de Cibele Tedesco
e Alcides Verza com sua maestria na condução de corais; de Zica Stockmans,
Magali Quadros, Cleri Pelizza, João Tonus, Aline Zilli e Jonas Piccoli abrilhantando
nossos palcos teatrais; da música de Selestino Oliveira; dos quadrinhos de
Eduardo Cardoso; do olhar fotográfico de Mauro J. Bettiol e Liliane Giordano; da
escrita de José Clemente Pozenato. E tantos, tantos outros, que chego a me
empanturrar com os milagres que os talentos regionais são capazes de produzir
na minha alma. Tenho o privilégio de residir em uma região cujos artistas me
conectam com o mundo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de fevereiro de 2020)</span> </o:p></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-2462372389090401092020-01-27T03:05:00.005-08:002020-01-27T03:05:31.860-08:00O que não vem por download<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Incorporar uma
nova tecnologia à nossa vida, que encontre seu lugar entre nossos sempre enraizados
hábitos, não é algo assim tão simples. Por mais que prometam revoluções e mil
vantagens, nem sempre nos deixamos seduzir por um botãozinho e não são poucas
as vezes em que retornamos resignada, acolhedora e pacientemente aos nossos
velhos e bons chinelinhos de pano, só para usar uma imagem amigável e de fácil
entendimento, né, madama, porque nenhum de nós dois pensa em trocar as chinelas
por um par de patins...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Lembro,
milênios atrás, quando ainda morava com meus pais na sempre saudosa Rua dos
Viajantes, na Ijuí de minha infância, do presente esquisito que a família
ganhou certa feita: uma faca elétrica de cortar pão! Ora, bastava enfiar na
tomada o plugue, posicionar o aparelho (que se assemelhava a um aspirador de pó
portátil) com as lâminas sobre o pão d´água já devidamente imobilizado e apertar
o botão. As lâminas iam e vinham como um serrote, exigindo apenas que o hábil
provedor do café da manhã tratasse de ir aprofundando o encravamento sobre a
casca e depois o miolo, produzindo uma a uma as fatias que devoraríamos com o
mel, a manteiga, o schmier (que pronunciávamos “ximia”) de uva... Mas, ao fim e
ao cabo, não rolou. Muito mais fácil, rápido, ágil e eficaz meter a mão na
velha faca de cortar pão retirada da gaveta dos talheres e proceder aos cortes,
sem cabo elétrico, sem busca por tomada. Teve vida curta a faca elétrica, jazendo
esquecida para sempre em alguma das prateleiras da cozinha.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Da mesma forma
as escovas de dentes elétricas. Comigo, não vingaram. Descobri, dia desses, via
contatos internacionais, que fenômeno semelhante se deu nos Estados Unidos,
onde a promessa de uma vida doméstica melhor por meio da aquisição de abridores
de latas elétricos também foi por água abaixo. Claro que, nessa esteira, a saga
dos avanços tecnológicos apresenta, no geral, um “case” de sucesso: migramos
alegremente das charretes para os automóveis de câmbio automático; aposentamos
as máquinas de escrever pelos teclados de computador; as máquinas fotográficas
pelos fones celulares; a pena de pavão pela esferográfica; os telefonemas pelas
mensagens de whats; o estrogonofe pelo risoto de alho-poró com ervas finas; a
Divina Comédia pela nova edição do BBB.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
Mas o que
jamais será substituído por tecnologia alguma, madama, é o olho no olho em uma
conversa a dois; um aperto de mão caloroso; um bom livro no colo antes de
dormir; um churrasco em família e com os amigos... Ainda tem coisa na vida que
não se pode medir via megabites.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; text-align: start; text-indent: 0px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 27 de janeiro de 2020)</span></div>
marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-88639304414146686202020-01-20T02:44:00.002-08:002020-01-20T02:44:12.568-08:00O príncipe e o menino<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Enfrentando com um sorriso as
expressões de espanto exclamadas em todas as línguas do planeta, o príncipe
Harry não pestanejou, dias atrás, ao decidir chutar o balde, digo, a coroa da
realeza britânica e largar de mão sua participação no elenco capitaneado por
sua avó, a rainha Elizabeth II, para ir reinventar a vida de forma plebeia ao
lado da esposa, a atriz norte-americana Meghan Markle, no Canadá. Harry e
Meghan manifestaram o desejo de viver uma vida normal, ganhando seu próprio
sustento, desvencilhados do aparato advindo da ostentação (e dos impostos) da
coroa britânica, claro que entendendo-se por “normal” aquilo que se pode
antever de uma dupla que passa a enfrentar seus novos desafios já
confortavelmente ancorada em fortunas que nossas vãs filosofias e finanças
sequer sonham. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Mas vá lá: o (ex?) príncipe Harry
surpreende pela ousadia de quebrar uma tradição, enfrentar as adversidades e a
repercussão internacional de seu ato e mergulhar no sonho de ir em busca da
felicidade pessoal. Tudo fica mais fácil, repito, quando se tem uma conta
bancária capaz de ancorar qualquer loucura, mas pelo jeito a questão não era só
essa. Buscar a felicidade é uma prerrogativa lícita e um direito universal,
válida inclusive para príncipes e atrizes hollywoodianas, eu, você e a madama. Que
sejam felizes, então, longe da rainha e sua coroa encravada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Comungava com Harry o desejo de
buscar uma vida melhor também o menino africano Laurent Barthélémy Ani Guibahi,
de 14 anos, que na semana passada decidiu concretizar o desejo de abandonar seu
país natal, a Costa do Marfim, e reconstruir a vida na França, país que em seu
imaginário de garoto estudioso e bom filho, representava o paraíso na Terra, sabedor
que era da discrepância na qualidade de vida entre as duas nações. Determinado,
pôs seu plano em ação na primeira semana deste ano: fez a pé os 30 quilômetros
que separam sua casa do aeroporto de Abidjan e embarcou como clandestino em um
Boeing da Air France, escondendo-se perigosamente no trem de pouso. Laurent foi
encontrado após a aterrissagem, no Aeroporto Charles de Gaulle, na França,
porém, chegou morto ao destino de seu sonho. Os mundos internos de Harry e
Laurent convergiam no anseio genuinamente humano que pauta a busca pelos sonhos.
Porém, seus mundos concretos divergiam nas condições de que dispunham para viabilizar
esses sonhos. A busca da felicidade tem seu preço, cabe a cada um pesar a
relação entre custos e riscos. Para o pequeno africano, custou a vida. Para
Harry, pouco mais que sustentar o olhar torto da rainha. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
<o:p> </o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 20 de janeiro de 2020)</span></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-55479886140264140832020-01-13T02:28:00.000-08:002020-01-13T02:28:04.573-08:00O perigo da falsa autoria<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Venha
cá, madama, vamos falar sobre algo sério, senta aqui do lado. Pois é,
precisamos conversar sobre essa coisa do “diz que me diz que”. Isso! Hein? Não,
que é isso, não estou dizendo que a senhora disse que! Nada disso! Não disse
isso, e é exatamente sobre isso que desejo falar: sobre quem disse o que! Pois
é, a senhora veja, existe hoje muito dessa coisa de dizerem que Fulano disse
tal coisa, sendo que a coisa tal jamais foi sequer aventada pela mente de Fulano,
por mais imaginosa e criativa que ela seja, cabendo, na verdade, a Sicrano a
autoria do dito, que acaba passando batido. Precisamos atentar a essas coisas,
para evitar dizermos que disse o dito quem não o disse. Para fins de abertura
séria da crônica de segunda, direi que precisamos abordar a questão das falsas
atribuições de autoria.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
senhora veja, madama, como são as coisas. São de tal porte e envergadura que
sequer um cronista de segunda como eu se vê livre de incorrer no erro. Vida
inteira, por exemplo, atribuí a Borges (o escritor argentino, aquele), a bela
reflexão que segue: “Sonhei pelo menos algumas vezes que, no dia em que chegar
o Juízo Final e os grandes conquistadores, juristas e estadistas forem receber
suas recompensas – coroas, lauréis, nomes gravados indelevelmente no mármore
imperecível -, o Todo-Poderoso há de se virar para Pedro e dirá, não sem uma
ponta de inveja ao nos ver chegando com nossos livros debaixo do braço: ‘Veja,
estes não precisam de recompensa. Aqui não temos nada para lhes dar. Gostavam
de ler’”. Lindo, né? Só que a sensibilidade pertence à escritora Virgínia
Woolf, não a Borges. Da mesma forma, as frases erroneamente atribuídas a
Bertold Brecht, referindo-se à perseguição nazista na Alemanha: “Primeiro eles
vieram buscar os socialistas, e eu não disse nada, pois não era socialista.
Então vieram buscar os sindicalistas, e eu não disse nada, pois não era
sindicalista. Depois vieram buscar os judeus, e eu não disse nada, pois não era
judeu. Quando eles vieram me buscar, já não havia ninguém que pudesse
protestar”. Quem disse foi o pastor alemão Martin Niemöller, uma das raras
vozes a se levantar contra a psicopatia assassina hitlerista na Alemanha, na
época. Sabia? Nem eu!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Precisamos
cuidar com as pegadinhas das falsas atribuições de autoria, para não
incorrermos em injustiças e erros. Shakespeare nunca disse “Postar ou não
postar, eis a questão!”. Fernando Pessoa jamais poetou que “o amor é a coisa
mais linda do mundo”, apesar de ser, sim. Cuidado com as pegadinhas, madama!
Essa, a senhora pode atribuir a mim mesmo!<o:p></o:p></span></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 13 de janeiro de 2020)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-14659202351163727152020-01-06T04:07:00.000-08:002020-01-06T04:07:01.687-08:00O papa deu mais que palmadas<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Confessa, madama, que a senhora
também ficou escandalizada com a cena protagonizada pelo papa Francisco na
última noite de 2019, semana passada, às vésperas da virada do ano, quando ele
precisou dar dois tapinhas nas mãos de uma peregrina impertinente que o
agarrava pelo braço exigindo bênção, na Praça São Pedro, no Vaticano. Primeiro
lugar, né, madama, bênção não se exige, bênção se recebe (no máximo, se pede
com educação, o que faltou à peregrina, é verdade, porém, facilmente desculpada
devido à emoção que a possuía ao ver-se cara-a-cara com o sumo pontífice, de
quem acabou obtendo foi o privilégio único de receber sumas e santas palmadas).
Todos viram a cena, que rapidamente viralizou mundo afora, via redes sociais e,
depois, mídia tradicional (a senhora mesma já assistia ao episódio papal na
tela de seu smartphone poucas horas depois, em arquivo compartilhado pelas suas
amigas da hora do chá, confessa), gerando espanto devido à perda da paciência
por parte do papa, que, ali, descortinava seu lado humano e, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ipso facto</i>, falível (“<i style="mso-bidi-font-style: normal;">ipso facto</i>” significa “por isso mesmo”,
madama, a senhora sabe que não resisto a um latinismo ao abordar temas papais).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Mas o espanto generalizado frente
a um súbito arroubo de perda da paciência não se justifica em se tratando da
ação dos protagonistas do cenário do universo cristão, onde os episódios se
acumulam. A meu ver, todas as vezes em que isso aconteceu, a justificativa era
válida. Jesus Cristo, ele mesmo, perdeu a paciência bonito ao entrar em
Jerusalém e deparar com o templo sagrado tomado por vendilhões, aos quais
tratou de expulsar a chicotadas, viradas de mesa e xingamentos. Bem que fez.
Deus, no Antigo Testamento, perdeu a paciência várias vezes com a humanidade
pecadora que ele mesmo havia criado, com consequências trágicas, bastando
lembrar do Dilúvio e da destruição de Sodoma e Gomorra. Não há dúvidas de que o
mau comportamento dos seres humanos é capaz de tirar do sério até mesmo seu Criador.
Quem tinha paciência mesmo era Jó, mas daí já é querer demais de nós todos,
simples mortais, pecadores e papas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Mas se ao perder a paciência o infalível
papa demonstrou ser moldado pela mesma essência que rege todo o restante da
humanidade, foi ao reconhecer seu erro e vir a público pedir desculpas, já no
dia seguinte, que ele revelou o aspecto que o diferencia de todos nós, madama:
a senhora, eu e todos os bilhões de etceteras que nos cercam. Ele humanamente
errou, sim. Mas, depois, reconheceu o erro, mostrando o caminho, que é o que
esperamos de um papa. Quem de nós segue o exemplo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
<o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 6 de janeiro de 2020)</span> </o:p></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-43459791649835853712019-12-30T03:37:00.002-08:002019-12-30T03:37:29.846-08:00A rica lição do pobre poeta<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
“Os poetas são pobres porque
assim o querem, afinal, está em suas próprias mãos serem ricos”. A sentença foi
colocada na boca de Tomás Rodaja, personagem de um conto concebido pelo gênio
do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), estabelecido em
eterna fama mundial pelo seu “Dom Quixote”, obra que encanta gerações de
leitores desde que veio pela primeira vez à luz, no início do século 17. Entre
a primeira e a segunda parte de seu livro sobre as aventuras do Cavaleiro da
Triste Figura, Cervantes levou a público uma coleção de 12 contos intitulada
“Novelas Exemplares” (lançada em 1613), e é daquela conhecida como “O
Licenciado Vidreiro” que emerge a frase aqui pinçada para servir de mote para esta
derradeira crônica de segunda do ano de 2019.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Tomás Rodaja, o dito personagem,
é um estudante de Salamanca que, devido a uma poção mágica, se transforma em um
andarilho que se imagina feito de vidro e perambula a esmo pelas paragens
espanholas, distribuindo frases de efeito e conselhos. É nessa condição que profere
aquele dito a respeito da pobreza característica da maioria dos poetas de seu
tempo, indo além: “É só eles saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a
fortuna se encontra nas mãos de suas namoradas, pois são todas riquíssimas”. Afinal,
as namoradas dos poetas não possuíam, conforme eles cantam em seus versos,
“cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde esmeralda, dentes de
marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente”, e suas lágrimas não
eram “pérolas líquidas”, dando mostras de sobra de sua “imensa riqueza”? Ora,
possuindo namoradas dotadas de tamanha formosura e fortuna, permaneciam pobres
os poetas porque assim o desejavam, conclui o envidraçado filósofo criado por
Cervantes, quatrocentos e tanto anos atrás. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
O que o escritor pretendia, com a
passagem, evidentemente, era criticar a pobreza de estilo e a sucessão de imagens
literárias batidas usadas pelos maus poetas de seu tempo, e talvez não só os de
seu tempo. Mas o que atravessa incólume as brumas dos séculos e permanece é a nova
metáfora, criada por Cervantes com esta passagem, que nos leva a refletir sobre
nossas próprias visões distorcidas da realidade, que muitas vezes nos impedem
de alcançar nossos objetivos. Que “cabelos de ouro” não caiam sobre nossos
“rostos de prata polida”, impedindo nossos “olhos de verde esmeralda” de ver a
realidade como ela é, e que possamos, neste 2020, moldar nossas jornadas de
vida de forma lúcida, criativa, colaborativa, cidadã, harmoniosa e tolerante.
Bom Ano-Novo a todos!<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de dezembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-23585918938524621442019-12-23T02:48:00.001-08:002019-12-23T02:48:42.289-08:00Zelar pelo bem maior<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Meu sobrinho/afilhado, de nome
João, encarnou (com maestria, obrigo-me a dizer, descontada a corujisse irremediável
que se apossa do mundano cronista) o papel de José, esposo de Maria, na
apresentação de final de ano ofertada aos pais (e dindos infiltrados) pelos
aluninhos da escola em que ele estuda, erradicando de vez o analfabetismo que
até então o afligia, no alto de seus sete anos de (intensa, criativa e
encantadora) vida. No fim das contas, José era João, durante alguns minutos da
emocionante performance, pontuando o final do ano letivo em uma
confraternização entre escola, professores (alguns deles afogados em beijos e
abraços desferidos pela espontaneidade das crianças que com eles convivem todos
os dias), pais e penetras (que não se constrangeram em, depois, participar do
ataque à mesa de gulodices destinada à comunidade escolar, mas justificamos
nossa famélica atuação imaginando ocupar a lacuna deixada pelas crianças, que,
nessas horas, ignoram os comes e bebes para mergulhar nas brincadeiras e
correrias).<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
As crianças emocionaram a todos, oferecendo
um espetáculo repleto de surpresas ensaiadas (acrobacias, truques de mágica,
danças, cantos, encenações natalinas) capazes de ombrear as mais profissionais
montagens realizadas pela aí, nos quesitos dedicação, empenho, verdade e
entrega. Acompanhadas pelo violão do professor, uniram as vinte vozes infantis
em duas canções com letras complexas e intermináveis, surpreendendo (ao menos,
a mim) pela capacidade de segurar a atenção de um público adulto (composto por
corujas de várias idades, admito, mas corujas também têm coração, atesta a
biologia animal e os veterinários, permitindo até vislumbrar a existência de
alma em algumas delas). Em um canto do salão onde as encenações tinham lugar,
um estandarte exibia uma frase significativa, que, acredito, explicitava a
essência absoluta da experiência que ali vivenciávamos: “Família, nosso bem
maior”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Essa é a chave de tudo.
Precisamos saber zelar pelos nossos bens, a começar pela família, que, sim, é o
maior de todos. Nossa profissão, nossos relacionamentos, nossa saúde, nossa
comunidade, nossos projetos, nossa imagem, nossas vidas, são outros bens tão importantes
quanto, e precisam ser tratados com o mesmo zelo, 365 dias por ano, a fim de
que essa sensação sublime que nos invade nos natais seja repleta de significado
verdadeiro. Que era (e segue sendo), ao fim e ao cabo, a mensagem proposta pelo
filho da família formada pelo José bíblico interpretado por meu afilhado
naquela noite memorável. Feliz Natal a todos.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de dezembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-59441593228984575032019-12-18T04:21:00.001-08:002019-12-18T04:21:20.802-08:00Tudo começou após o térreo<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Levava como título “Embaraço após
o térreo” e, como data, o hoje longínquo 10 de novembro de 1985, que se perde
nas brumas do tempo, arremessando-nos de volta ao século passado, nos
estertores de um milênio ainda analógico. O texto versava, de modo bem humorado
(o que se tornaria uma espécie de marca registrada dali em diante, mas na época
as madamas, o Argentino, a Dona Esmeraldina, as senhorinhas da hora do chá,
ainda não circulavam pela aí nestes sempre mal-digitados, intermináveis e
asfixiantes períodos, tecidos impunemente por um autointitulado cronista mundano
de segunda), sobre a sempre constrangedora situação que se estabelece entre os
desconhecidos que, ao longo de alguns curtos e intermináveis segundos, se veem
obrigados a compartilhar o exíguo espaço de um elevador, submetendo-se a uma
intimidade física indesejada e constrangedora, apesar de breve. Dava-se, ali, a
minha estreia pública enquanto cronista, na edição daquela data do hoje extinto
jornal “A Razão”, de Santa Maria.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
O responsável por aquela situação
foi o professor de Língua Portuguesa do curso de Comunicação Social da
Universidade Federal de Santa Maria (que eu cursava, na época), Orlando Fonseca
(escritor consagrado e cronista fixo daquele jornal), que havia proposto a nós,
alunos, como exercício de aula, a produção de crônicas. Fi-la, entreguei-a e,
dias depois, ao receber de volta o trabalho com nota máxima (quem diria, após
anos com 5 em matemática e 6,5 em biologia!), o generoso professor me perguntou
se eu lhe permitia publicar meu texto na coluna semanal assinada por ele no jornal.
Estupefato, meu subconsciente gritou “sim”, antes que meu consciente,
anestesiado e boquiaberto, deixasse passar o cavalo encilhado. Publicado o
texto, comecei a achar que poderia ser cronista. Dali em diante, passei a
estudar os cronistas de verdade, o que se tornou um hábito cultivado até hoje,
na esperança de descobrir a fórmula da boa escrita e de um dia aprender o que
os mestres ensinam (entre eles, Luis Fernando Verissimo, Rubem Braga, Sérgio
Porto, Leon Eliachar, João Bergmann, Jimmy Rodrigues, Machado de Assis,
Fernando Sabino...). <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Agora, neste vindouro 20 de
dezembro, completo dez anos ininterruptos na condição de cronista do jornal
“Pioneiro”, período ao longo do qual publiquei, com esta de segunda, 1143
textos, o que muito me honra. Espelhar o espetáculo da vida cotidiana,
procurando refletir sobre ela a essência do viver, é o desafio que se impõe a
cada semana. Grato aos leitores pela generosidade da atenção e ao “Pioneiro”,
pelo espaço. Sigamos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; text-indent: 0px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 16 de dezembro de 2019)</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
<br /></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-69484500616457352972019-12-09T02:49:00.002-08:002019-12-09T02:49:58.753-08:00O segredo é a harmonia<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Em um de seus romances mais
significativos, “Cécile” (1811), o político, pensador e escritor franco-suíço
Benjamin Constant (1767 – 1830) – que não deve ser confundido com o militar e
político brasileiro homônimo (1836 – 1891), até porque o brasileiro recebeu o
nome em homenagem ao seu predecessor europeu –, induz um de seus personagens, o
senhor de Langallerie (que existiu na vida real), a refletir sobre um aspecto
crucial das questões filosóficas que afligem a humanidade desde que, oriundos
das cavernas, fomos iluminados magicamente pela consciência de nossa própria
existência. Diz assim, o senhor de Langallerie: “Não se poderá negar que existe
um poder, exterior a você, mais forte que você. Pois bem, a única maneira de
encontrar a felicidade neste mundo é estar em harmonia com esse poder”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
A compreensão e aceitação dessa
verdade universal está na base das religiões, cuja missão é promover uma
estreita ligação entre os seres humanos e esse poder superior. As religiões
antigas desmembravam os aspectos divinos em uma miríade de deuses antropomorfos
– as mitologias –, e caíram em desuso frente ao surgimento de um pensamento
mais moderno e poderoso, representado pelas religiões monoteístas, nas quais o
poder superior é imanente a um deus único. Agnósticos e ateus podem identificar
a manifestação dessa força naquilo que classificam como a própria Vida ou a
maravilha inexplicável do Universo e suas inter-relações entre tudo o que
existe. Cientistas de laboratório podem detectar vestígios desse poder nas
profundezas das galáxias e nas miudezas da atividade subatômica. Cientistas dos
divãs conseguem vislumbrar essa força nos conceitos com que trabalham, como o
self, o inconsciente, o subconsciente e outros. Independentemente da forma como
esse poder é decifrado, a verdade detectada pelo escritor francês parece criar
um elo entre todos esses conceitos: a felicidade só pode ser alcançada a partir
do momento em que entramos em harmonia com esse poder, seja lá como cada um o
conceba.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
De minha parte, vejo nas
manifestações culturais e artísticas, de todas as espécies, um dos caminhos que
possibilitam esse encontro, por meio da promoção do êxtase obtido da fruição do
sublime. Literatura, música, dança, cinema, teatro, fotografia, canto, escultura,
pintura, desenho e outros são instrumentos também válidos para gerar essa
epifania, daí a importância da defesa constante do valor da manifestação das
artes e da cultura, livres e amplas, em uma sociedade que queira permitir a
busca individual e democrática pela felicidade.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de dezembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-58142050774727337112019-12-02T02:23:00.002-08:002019-12-02T02:23:31.654-08:00Combustível da vida na sola<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Neste 2019 completei três décadas
de dedicação profissional ao jornalismo. A saga teve início em 1989, em
fevereiro, quando fui admitido no jornal “A Razão” (hoje extinto), em Santa
Maria. Eram outros tempos. Outro século, outro milênio, outras tecnologias,
outros hábitos. E eu, claro, era outro eu. Recém-egresso da universidade, cumpria
o papel de um “foca” típico: o tanque interno completado com o puro combustível
da vontade de fazer, disputando espaço com a inexperiência, que me levava a
encarar qualquer desafio como um universo a ser desbravado, repleto de
oportunidades para aprender. O que era, mesmo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
A barba espessa fazia um conjunto
desgrenhadamente harmônico com a cabeleira castanha e farta, fruto da
abundância capilar de quando se está nos vinte e tantos. O peso na balança
também era outro, o que permitia a agilidade do entusiasmado repórter iniciante
ao abraçar a missão de produzir os cadernos de bairros que o jornal encartava
mensalmente, cada vez uma região específica, com seus problemas, seus anseios,
suas gentes e sua voz. O motorista me largava no início da tarde na entrada do
bairro e combinava de me resgatar no mesmo ponto horas depois. Lá ia eu,
prancheta em punho repleta de laudas em branco, duas canetas Bic e uma pauta a
ser cumprida. De volta ao jornal, após alguns dias, era meter mãos às teclas da
máquina de escrever, após lambuzar os dedos trocando a fita, e produzir os
textos em meio a uma típica redação da época, engarrafada de jornalistas
gritando ao telefone (celular, nem se concebia), datilografando matérias
freneticamente (computador, só na Nasa), aparelhos de fax e telex vomitando
notícias vindas de todas as partes do planeta (internet, nem nos sonhos mais
bizarros) e colegas fumando no ambiente (coisa mais natural do mundo, no mundo
de então).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
O primeiro caderno de bairros sob
minha assinatura circulou um mês após minha admissão (“por Marcos Fernando
Kirst, da Equipe de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A Razão</i>”), indo
às bancas na mesma semana em que na minha conta pingava o primeiro salário via
carteira assinada. Com a grana no bolso, na manhã de sábado fui às Casas Eny,
tradicional loja de calçados da região, e comprei dois pares de sapatos de
camurça, pois o meu havia furado (meu primeiro “furo”?!) palmilhando as ruas
esburacadas do bairro reportado. Precisava de combustível para seguir percorrendo
os recantos da vida em busca de informação, o que faço até hoje. Os calçados,
claro, vão mudando, mas a vocação que orienta meus pés, segue firme. Afinal,
ainda há ruas da vida a serem palmilhadas e reportadas pela aí.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de dezembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-50621851054961607192019-11-25T03:00:00.002-08:002019-11-25T03:00:12.767-08:00Havia butiás naquele bolso!<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Quem foi que disse que bolso é o
lugar mais apropriado para o sujeito guardar butiás? Na verdade, até pode ser,
uma vez que, ali dentro devidamente empilhados, é difícil eles saltarem para
fora e virem a se espraiar pelas calçadas da urbe. A não ser que o solavanco
seja de grande monta. Só assim, para que os butiás pulem do bolso do vivente.
Pois semanas atrás fui alvo de um solavanco dessa natureza, que fez se espraiarem
longe os butiás que nem sabia vir portando no bolso, ao ser convocado para uma
reunião com colegas jornalistas representantes da ARI Serra Gaúcha, a seccional
local da Associação Riograndense de Imprensa, que representa os comunicadores da
região. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Os sorrisos largos e os apertos
efusivos de mãos provenientes dos colegas comunicadores e integrantes da
diretoria da entidade, Andreia Fontana (presidente da ARI Serra Gaúcha e
Gerente de Jornalismo da RBS Caxias) e os jornalistas Juliano Flores e Viviane
Somacal, anteviam a boa e inesperada surpresa, anunciada no momento em que eu
procurava equilibrar nas mãos uma recém-servida xícara de café preto: meu nome
havia sido escolhido para receber, na edição deste ano, o Troféu ARI na
categoria Jornalismo Digital e Impresso! Quanto butiá havia naqueles bolsos! E
que problema equilibrar aquela pequena xícara, frente ao tremor causado pela
emoção advinda da inesperada honraria! Fiquei e sigo emocionado. Juntamente com
os demais oito colegas comunicadores agraciados nas diversas categorias (Juares
Franco: Jornalismo Audiovisual; Celso Sgorla: Radiojornalismo; Lucinara
Masiero: Assessoria de Imprensa; Gilmar Gomes: Imagem; Jomba Salim: Propaganda
e Marketing; Neide Tomazzoni Michelon: Relações Públicas; Luís Antônio Giron:
Destaque Nacional e Guiomar Chies: Contribuição à Comunicação), flagrei-me
comovido com o reconhecimento advindo dos colegas de profissão e também da
comunidade, que, neste ano, foi instada a participar da escolha, por meio de
votação. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Dedicar a vida profissional à
atividade de ampliar as ferramentas de comunicação e de informação entre a
comunidade em que se atua é uma vocação que traz, junto aos desafios diários, a
plena convicção de se estar contribuindo para os processos de crescimento e
desenvolvimento regionais, bem como na formação vital da cidadania. Grato pela homenagem
e pelo reconhecimento, que se concretizam na entrega dos prêmios na
reunião-almoço da CIC (copatrocinadora do Prêmio) desta segunda-feira. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>E se alguém topar com butiás à solta por aí...
eram meus, mas que sigam livres, representando a realização de uma escolha
certa de vida!<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 25 de novembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-57426688115969943752019-11-18T01:15:00.002-08:002019-11-18T01:15:43.323-08:00O luto por um vaso partido<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
A situação que vou relatar se
assemelha à que acontece, às vezes, com aquele vaso antigo que está na família
há gerações e vem sendo herdado de forma compulsória por membros menos atentos,
no ritual de distribuir os pertences dos ancestrais que vão se retirando de
cena. O vaso é sem graça, ninguém sabe de onde veio, se possuía algum
significado sentimental para os bisavós, mantido em cena como um coadjuvante
silencioso ao longo das décadas, passível de ser identificado ao fundo de
alguma velha fotografia, refugado a um canto na prateleira. Por hábito,
respeito ou inércia, nunca foi jogado fora, acabou ficando, até o dia em que,
pelo manejo desastrado de algum cabo de vassoura, espatifa-se no chão e, daí
sim, finalmente, obtém a atenção que jamais conquistara em “vida”: lamentamos
sua perda, choramos sua saída de cena, mesmo que, antes, nunca tenhamos
prestado atenção à relevância de sua atuação silenciosa. Sentimos luto pela
perda do vaso insosso e discreto, pois é inerente à nossa <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>índole humana a necessidade de sofrer com o
processo de desapego.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Da mesma forma se dá, no momento,
com o desaparecimento de minha vesícula, órgão discreto, de papel importante
mas coadjuvante no funcionamento de meu organismo, que resolveu inflamar de
súbito, me lançar ao chão de casa miando de dor no início de uma madrugada e me
empurrar ao pronto-socorro, onde, após uma série de exames (eco, tomo e afins...),
obrigou-me a me ver baixado em um leito, aos cuidados zelosos de enfermeiras e
médicos, obedecendo a rituais de trocas de soro, aplicações de medicamentos via
intravenosa, aferições periódicas de sinais vitais, dietas líquidas, até a
apoteose final da saga, representada pelo ato sacrificial de retirada física de
sua presença no conjunto dos órgãos que compõem a orquestra das minhas
entranhas. Foi-se minha vesícula, já era, não nos reveremos jamais! Coração,
pulmões, rins, fígado, pâncreas, baço, bexiga e intestinos juram, de pés juntos
(com os meus pés, claro, que se solidarizam nesse momento delicado), que serão
capazes de seguir dando conta do recado apesar da deserção vesicular. Serve de
consolo, mas, além da dor dos pontos, sinto outra pontinha de dor pela perda de
uma parte de mim, mesmo que, até então, jamais tivesse me dado por conta de sua
sutil existência.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Minha vesícula acabou se revelando
tão dispensável quanto o velho vaso da tataravó. Porém, para a garantia de uma
sequência de vida saudável, é aconselhável não abandonar a memória de nenhum
deles, da dor que foi perdê-los e das razões que culminaram nas dolorosas separações...<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de novembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-8821673815390812522019-11-11T04:01:00.002-08:002019-11-11T04:01:20.360-08:00Por mais vida, por mais arte!<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Cem anos atrás, em março de 1919,
morria, em Criúva (hoje distrito de Caxias do Sul), uma bela e jovem moça de 26
anos de idade incompletos, que decidira fazer de sua vida (abreviada devido à
tuberculose, doença incurável e fatal em sua época) uma opção preferencial pela
cultura e pela arte. Proativa, vanguardista e criativa, temperava seu cotidiano
em Porto Alegre e na Serra Gaúcha dedicando-se ao cultivo do espírito,
consumindo e produzindo arte. Era poeta, de brilho e talento reconhecidos nos
meios intelectuais e literários da Capital e da Serra, mesmo não tendo tido
tempo de publicar livro contendo a obra que vinha lapidando com esmero e
dedicação. Chamava-se Vivita Cartier, e seu corpo segue sepultado no Cemitério
do Pontão, em Criúva, inspirando artistas de várias esferas de atuação, ao
longo das décadas, driblando o sempre ameaçador manto do esquecimento.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Vivita Cartier é lembrada e a
essência de sua alma artística é mantida viva porque sua vida e sua obra seguem
falando e inspirando aqueles que reconhecem a relevância vital do cultivo do
espírito humano (por meio das artes e da cultura) na formação da cidadania, na
consolidação de sociedades civilizadas e desenvolvidas e na transformação dos
seres humanos em plenamente humanos. Sua memória vem sendo cultivada por
historiadores, pesquisadores e entusiastas (conhecidos e anônimos, alguns já
falecidos, outros ainda ativos), como João Spadari Adami, Honeyde e Adelar
Bertussi, Mario Gardelin, Mario Vanin, Juventino Dal Bó e Rodrigo Lopes, entre
outros. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
A biografia de sua breve vida,
escrita por mim e lançada este ano, suscitou vários artistas a revisitarem sua
história, ampliando as formas de se relacionar com sua essência, como os
músicos da banda Rota Lunar, conduzidos por Selestino Oliveira, que arranjaram
e musicaram alguns de seus poemas, gravando um CD especial; as alunas da Escola
Estadual de Ensino Médio João Pilati, de Criúva, que levaram aos palcos a vida
de Vivita por meio de alguns de seus poemas mais significativos; a fotógrafa
Liliane Giordano, que produziu um ensaio fotográfico e uma mostra abordando
vislumbres da Noiva do Sol (como Vivita era chamada) e o Grupo Teatral Ueba
Produtos Notáveis, que encenou a vida da poeta em um trabalho magistral
protagonizado por Jonas Piccoli e Anile Zilli. A luta empreendida por Vivita há
mais de um século, por mais vida, se transforma em bandeira e símbolo nos dias
de hoje por quem batalha pela manutenção da essência da vida a partir do cultivo
das artes e do espírito, na guerra contra as névoas do obscurantismo.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 11 de novembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-23686547873589070752019-11-07T13:35:00.001-08:002019-11-07T13:35:11.040-08:00Alguém ajuste o despertador!<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Ser acordado em meio ao sono pelo
barulho de um despertador deveria ser proibido por lei. Algo a se pensar,
nesses tempos esquisitos em que o ato de proibir vem conquistando um ibope só
igualado ao que desfrutam as censuras nas ditaduras, mas deixemos os
obscurantismos de lado, por favor, que de pesadelos bastam os dos sonhos. Pois
é, exatamente isso: despertadores, mesmo que agora municiados com a
possibilidade de baixar aplicativos com musiquinhas suaves que nos encantam,
sempre acabam nos extirpando a fórceps das doces pradarias oníricas para a
aridez da realidade desperta em um piscar de olhos (a essas alturas,
semicerrados e ainda remelentos, confessemos). A mim, não faz bem, e, sempre
que sou acordado desse jeito, demoro alguns instantes para encaixar a alma ao
corpo, que se ergue de susto da cama e adentra o roupeiro em busca da tampa do
vaso a ser erguida com urgência matinal.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Ser trazido dessa maneira à
realidade deixa sonhos órfãos, inconclusos e a meio caminho, o que pode vir a
ser um problema. Manhã dessas, ao despertar de forma suave e natural, sem o
auxílio (e a imposição) de nenhum despertador, vi-me emergindo de dentro de um
jipe, chapéu australiano na cabeça, exclamando ao sujeito sentado ao volante:
“Adis Abeba fica para o outro lado!”. E puf! Saí do sonho! Adis Abeba? Onde
fica Adis Abeba? Teria de verificar no google maps, durante o café da manhã. Ao
saltar da cama rumo à porta correta do banheiro, recordava ainda do chapéu
australiano que também encimava a cabeça de meu parceiro de jipe, cuja
identidade não soube definir. Seria meu guia? Se fosse, era um incompetente, afinal,
Adis Abeba ficava definitivamente para o outro lado. Jamais contrate guias em
sonhos, fica a dica. Areia cercava o jipe por todos os lados, e seguramente não
era a de Torres. Em que deserto estávamos? No do Saara? No de Gobi? Indecifrável!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Mas senti alívio por ter acordado
de forma natural no justo instante em que percebi que Adis Abeba ficava para o
outro lado. Caso um despertador me tivesse arrancado do jipe minutos antes, eu corria
o risco de ficar eternamente perdido naquele sonho, em um deserto inominável,
desorientado em relação à posição real de Adis Abeba. Seria terrível, pois não
sei quanta água ainda tínhamos conosco nos cantis e tampouco conhecia as
intenções do chapeludo ao meu lado. Ver-se perdido e desorientado no mundo
desperto é uma coisa... Já, em sonhos, é excruciante. Mas, espera um
pouquinho... O que você disse? Onde fica Adis Abeba? Ora, é para o outro lado!
Não é?... Ei, alguém ajuste o despertador!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
<o:p><span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de novembro de 2019)</span> </o:p></div>
<br />marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-85277713021683386612019-10-28T04:26:00.002-07:002019-10-28T04:26:44.501-07:00Viver mil vidas e mais uma<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
O ser humano é um narrador por
natureza. Gostamos de narrar os fatos que preenchem o nosso próprio existir da
mesma forma como apreciamos usufruir as narrativas advindas das experiências
vividas pelos outros. Alimentamo-nos com o gosto da autoestima adulada sempre
que detectamos uma plateia (mesmo que modesta, composta por familiares, colegas
de trabalho ou amigos) hipnotizada com nossos relatos sobre algum incidente
prosaico do cotidiano que envelopamos com sabores de pequena tragédia ou
comédia da vida real. Temos prazer em nos tornarmos, por instantes, os
protagonistas da história, enfeitando a ação em favor da condução da trama a
bom termo, mesmo que, para isso, às vezes, precisemos passar a perna na
veracidade dos fatos. Afinal, como atesta o ditado, se não é verdade, pelo
menos, é bem contado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Somos também bons ouvidores dos
relatos dos outros. Tanto é assim que nos dedicamos, desde tempos imemoriais, e
com prazer, ao papel de plateia e ouvidos até mesmo (e, talvez, principalmente)
às narrativas totalmente inventadas, por sabermos detectar nelas os elementos
que vão servir de conexão com aspectos fundamentais de nosso próprio existir. Apreender
narrativas amplifica nosso autoconhecimento, asfalta o caminho para a
compreensão do outro, destrava os cadeados do existir. É por isso que gostamos de
consumir ficção, seja ela na forma de livro, de teatro, de filme, de novela, de
seriado televisivo, de história contada pelos avós... Ouvir a narrativa do
outro é a ferramenta que possibilita estabelecermos nosso próprio processo de
autoescuta. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Fazemos isso desde tempos
imemoriais, quando ainda sequer a escrita havia sido inventada. Sentávamos ao
redor da fogueira à noite e doávamos os ouvidos aos relatos excitantes dos
bardos, dos menestréis, dos atores que, oralmente, nos transportavam, a bordo
do veículo mágico da imaginação, aos cenários das aventuras dos heróis, dos deuses
antigos, de reis longínquos, de princesas desamparadas. Aprendemos, desde
então, que nossa pequena vida cotidiana pode ser incrementada pela absorção de
mil e uma outras vidas diferentes da nossa, estendendo ao infinito os limites
de nossa própria existência. A narrativa, como base para a manifestação de
todas as artes (toda a arte narra uma história, mesmo uma música, uma tela, uma
escultura, uma arquitetura), embasa, ao longo dos milênios, a construção do
processo civilizatório. Felizes dos povos que sabem cultivar, valorizar,
preservar e incentivar a ação dos artistas. É a esses povos que cabe o
protagonismo na construção da saga do humano.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de outubro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-88235424889670137482019-10-21T05:02:00.000-07:002019-10-21T05:02:02.468-07:00O conselho de Clementine<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Winston Churchill (1874 – 1965),
o primeiro-ministro que liderou o governo de coalizão formado na Grã-Bretanha
de 1940 a 1945 para enfrentar o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial,
assentou-se na História Universal pela porta da frente, envergando o manto dos
grandes líderes inspiradores que conduzem seus povos a destinos alvissareiros.
Havemos de concordar que poucas coisas se comparam em alvíssaras ao fato de
conseguir derrotar, às custas de sangue, sofrimento, suor e lágrimas, a
bestialidade psicopata representada pela visão deturpada de mundo capitaneada
por Hitler e sua gangue de degenerados. As capacidades de liderança, de
inspirar as massas, de analisar a conjuntura com lucidez, de tomar decisões
corajosas e determinantes, compunham, em Churchill, um conjunto de atributos
reconhecido por seus pares dentro e fora de seu país, e sua personalidade
incomum teve um peso importante no desfecho da guerra, que pendeu, felizmente,
para o lado civilizatório.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Churchill, dotado de uma presença
de espírito sagaz, de raciocínio rápido e do dom da oratória, foi um frasista
excepcional, e ele mesmo sabia disso. Tanto é que usava e abusava das tiradas
de efeito, e até hoje lembramos de algumas delas, proferidas no calor do
conflito, como: “Nós lutaremos nas praias, nós lutaremos nos campos, nós
lutaremos nas colinas, nós jamais nos renderemos”; “Se Hitler invadisse o
Inferno, eu faria uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”; “Uma
cortina de ferro baixou sobre a Europa”; “O que eu espero, senhores, é que
depois de um razoável período de discussão, todo mundo concorde comigo”. Pais
ingleses costumavam homenagear Churchill colocando seu nome nos filhos, como no
caso de um tal John Winston Lennon (1940 – 1980), que também faria História,
mas isso são outros acordes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Chucrchill, no entanto, também
tinha lá seus defeitos e falhas, pois era humano. Quem melhor as conhecia era
sua esposa, Clementine, que, certa feita, o aconselhou, por carta, dizendo-lhe
assim: “É para você dar ordens e, se eles não fizerem o serviço direito – com
exceção do rei, do arcebispo da Cantuária e do presidente da Câmara –, você
pode demitir qualquer pessoa, portanto, com esse poder terrível, você tem de
combinar urbanidade, gentileza e uma calma olímpica... Você não vai conseguir
os melhores resultados com irritabilidade e grosseria”. Churchill e suas frases
servem de inspiração para os povos em dificuldades homéricas. Mas Clementine
lega à História uma pérola de lucidez nas esferas da gestão e das relações
sociais e profissionais. <o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 21 de outubro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-76063561722205295342019-10-14T04:53:00.002-07:002019-10-14T04:53:54.188-07:00O trevo tinha era três<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
“Procurem lá fora um trevo de
quatro folhas. Quem achar, traz pra mim que eu dou um prêmio!”. Interrompemos a
algazarra, com que nosso bando de crianças preenchia o salão da festa do
casamento, para tentar decifrar a proposta inusitada feita pelo parente
distante. Esperto, conseguia ele, assim, fazer evaporar-se do salão a nossa
gangue infantil, liberando-o para as danças que deviam começar, recolhida já a
louça do farto almoço. Aquele domingo diferente, na comunidade do interior,
junto à parentada que mal conhecíamos, empilhava elementos para revestir-se da
aura de inesquecível. Não lembro quem estava casando, eu tinha uns oito anos de
idade e o que importava mesmo era a chance de vivenciar experiências ao ar
livre, diferentes daquelas extraídas da rotina citadina de meu quarto, junto à
criançada que ali enganchava amizade fácil. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Nosso foco agora, depois de
alimentar as galinhas pela cerca gradeada do galinheiro com folhas catadas no
pasto e de esfolar os joelhos trepando nos galhos da figueira, passava a ser os
trevos de quatro folhas. Voamos para fora e segui o rumo dos pequenos
habitantes daquelas paragens. Eles deviam saber o que eram trevos, e, de fato,
logo me vi mergulhado em um gramado atapetado por aqueles delicados raminhos
verdes tripartidos, cuja existência até então eu jamais notara. Logo percebi
que a natureza dos trevos consista em três folhas (daí seu nome), e que algum
eventual possuidor de um quarteto delas seria a raridade que o tio solicitava. Existiria?
Agachei-me junto aos demais e fui fuçando... três... três... três... “Puxa, que
difícil”! A brincadeira já começava a perder a graça quando o mais velho da
turma gritou “achei!”, e zarpou como um coelho rumo ao salão, portando um
trevinho na mão, que ostentava como se fosse um tesouro, à cata do tio.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Corremos atrás dele, ao mesmo
tempo excitados e decepcionados com nossa imperícia em toparmos com o dito
trevo de quatro folhas que, afinal, estava ali, à espera do mais esperto entre
nós. Mas a glória do colega mais velho não durou muito. Chegamos a tempo de
flagrá-lo sendo repreendido pelo tio, em função da fraude que cometera: em sua
mão, jazia o trevo, igual a todos os outros, apenas tendo uma das três folhas
partida ao meio pela unha fininha do menino metido a esperto, que agora chorava
de vergonha. Meu súbito herói se desfez em segundos. Ele não só falsificara o
troféu como, pior do que isso, tentara ludibriar a todos nós, seus parceiros de
brincadeira. Teve o azar de ser desmascarado e, nós, a sorte de aprendermos
cedo o valor da probidade.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 14 de outubro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-44145564379157309782019-10-07T02:54:00.002-07:002019-10-07T02:54:44.647-07:00O macaco era mais pra lá<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Súbito, desaprendi. Sabemos que o
aprendizado de uma atividade se dá primordialmente com a prática constante, com
o acumular da experiência, com o sedimentar do proceder. Apossamo-nos do
conhecimento e passamos a ter segurança em relação a ele; é assim que se dá. O
que não tem explicação, ao menos, não de forma tão instantânea, é o súbito
desaprender, a puxada de tapete da memória; o voo ingrato e sem aviso, para
longe, da habilidade até então tida como definitivamente apreendida e
integrante perene de nossa constituição pessoal, psíquica e prática. Ora, como
assim?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
O fenômeno se deu comigo dia
desses, semanas atrás, ao buscar minha esposa no trabalho, a noite de
sexta-feira já assentada nas horas, o frio de fim de inverno ainda presente, a
serração começando a baixar seu manto de invisibilidade sobre as poucas quadras
que ainda nos separavam do acolhimento da sala de casa. No meio do caminho, no
entanto, havia uma pedra - esta, nada poética, nada inspiradora -, transmudada
em um paralelepípedo desritmado de seus pares, a ponta agulhada empinada para
cima, à espreita do primeiro pneu desavisado que cometesse a imprudência de
cruzar sobre ela. Esse desavisado pneu foi justamente o do lado direito
dianteiro de meu carro: bunct! A ressonância do estrondo logo denunciou o
tamanho do estrago: pneu furado, obrigando-me a estacionar cem metros adiante. “Problema
zero”, sentenciei, apaziguando a esposa. “Troco em menos de dez minutos”, já
abrindo o porta-malas, sacando para fora o estepe, posicionando o macaco e as
ferramentas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Só que, não! No meio da noite,
sob a neblina, desaprendi a trocar pneu, após mais de 30 anos amigado da
tarefa, desde a primeira carteira de motorista. O macaco funcionou errado, mal
erguendo a roda poucos centímetros do chão (estava mal posicionado); as porcas
não frouxavam (eu as estava torcendo para o lado errado, afixando-as ainda
mais); no celular, esqueci a localização da lanterna, para que a esposa me
auxiliasse, iluminando minhas novas inaptidões. Quando da segunda oferta de
ajuda, vinda de motorista gentil, engoli o suor da testa e aceitei, depondo as
armas (macaco, chave-de-roda, estepe, celular e orgulho). O rapaz, motorista de
Uber, solícito, fez em cinco minutos o que eu passei a vida sabendo fazer.
Chegamos em casa sãos e salvos: pneu trocado e eu engraxado e sem graça,
pensando com meus botões: “o que houve comigo?”. Ainda não sei. O que detectei
é que nem sempre estamos preparados para enfrentar as surpresas que somos
capazes de ofertar para nós mesmos. A vida é mesmo uma graxa!<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de outubro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-391578076691927951.post-48417107409833559282019-09-30T04:13:00.001-07:002019-09-30T04:13:06.206-07:00O bailarino dos ventos<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Parecia que ele estava esperando já
há algum tempo que eu, enfim, alçasse os olhos das páginas do livro que lia,
sentado no terraço de meu apartamento no final da tarde, e o fitasse,
encarapitado que estava no topo do prédio vizinho, onde costuma ficar. Não é de
hoje que esse robusto urubu utiliza o alto do edifício em frente como heliporto
entre suas atividades aéreas diárias. Pousa ali, asas recolhidas junto ao corpo
coberto com a escura plumagem que o caracteriza, a cabeça arqueada como que em
uma corcunda, e me fita enquanto recupera o fôlego. Era como se saboreasse o
desconforto que sua presença me causava, incapaz que me via de exorcizar o
preconceito bobo ancestral que recai sobre a simbologia fúnebre e sinistra
injustamente associada a essa ave, tão ave quanto qualquer outra.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Reconheço, de súbito, minha
postura incivilizada e largo o livro no colo, permitindo, pela primeira vez,
que nossos olhares se cruzem, abrindo margem para o estabelecimento de alguma possível
conexão intangível entre ave e humano, entre o urubu e eu. Era como se ele
estivesse contando com que isso, um dia, se desse. Ato contínuo, ele lança seu
corpo do alto do prédio de onze andares e, antes mesmo que um indício de queda
vertiginosa se estabeleça, abre elegantemente as longas asas negras e navega no
ar, tomando impulso para cima, cruzando rente à vidraça do meu terraço, dando
início a um show que me soou premeditado. Levanto da cadeira e decido
acompanhar visualmente seu voo, até onde der, até que sua figura se transforme
em um pontinho contra o avermelhado do céu e se esvaneça na paisagem de sol
poente.<o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 70.9pt;">
Mas ele opta por bailar. Bate as
asas, sobe alguns metros junto às nuvens, encontra correntes de ar e estende de
novo os membros plumados, entregando-se à coreografia do voo pautado pelas marolas
do vento. Tece desenhos imaginários no ar com sua dança voadora, que me encanta,
me hipnotiza, ofertando a mim um inesperado momento de fruição artística do
belo. Faz arte com seu voo, o urubu que até então eu sempre desdenhara. Não
está caçando, não está procurando uma companheira, está apenas entregue ao
prazer privilegiado que a natureza concedeu aos da sua espécie: voa por
deleite, pela entrega de si mesmo à essência de seu ser. Mal sabe o urubu que,
além do espetáculo, me proporciona inesperadas lições de vida que talvez ajudem
a me tornar mais humano. A principal delas é o endosso da convicção de que o
preconceito é o pior dos vícios. Passei a aguardar suas visitas com expectativa.
Gratidão pela lição que também me fez voar.<o:p></o:p></div>
<span style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px;">(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)</span>marcos fernando kirsthttp://www.blogger.com/profile/00710679850753198745noreply@blogger.com0