Cem anos atrás, em 1918, o Museu
do Louvre, em Paris, passava a incorporar em seu acervo uma tela significativa
e importante pintada por um renomado artista holandês medieval. O pintor, autor
da obra-prima, chamava-se Hieronymus Bosch, nascido em 1450 e morto em 1516. O
nome esquisito não era nome de batismo, mas, sim, um pseudônimo inventado por
Jeroen Van Aeken, provavelmente para esconder sua verdadeira identidade e
escapar das garras da Inquisição, uma vez que o conteúdo temático de grande
parte de suas obras costumava retratar de forma alegórica e crítica os excessos
do clero europeu e o comportamento bárbaro da sociedade de sua época.
Previdente e esperto esse Von Aeken, conhecedor de técnicas básicas de
segurança e sobrevivência quando se está imerso em tempos intolerantes e insanos,
como eram aqueles dias.
A tela em questão, acolhida desde
então pelo Louvre (o quadro segue lá, pendurado na parede, para quem quiser e
puder conferir de perto), é conhecida pelo título “A Nau dos Insensatos” e mostra
um grupo de pessoas desprovidas de juízo e de lucidez reunidas em um festim
luxurioso a bordo de uma pequena e frágil embarcação. A atmosfera resultante da
interação dos inconsequentes personagens retratados na cena pintada pelo
talento de Bosch (aliás, um dos precursores do movimento Surrealista que, no
século XX, teria Salvador Dalí como um dos maiores expoentes no âmbito das
artes plásticas) induz o observador à incômoda sensação de estar testemunhando
um triste, perigoso e suicida processo de desagregação social que conduz direto
ao caos. O caos, por sinal, é o único destino plausível de ser alcançado por
uma nau composta por uma tripulação de insensatos (pleonasmo gentil para
“loucos” mesmo, ou “desmiolados inconsequentes”).
O que esperar de uma embarcação
dessa natureza? Ora, que eles próprios, os insensatos a bordo que usurparam o
leme, atendendo à cegueira ensandecida de seu surto indomável, acabem furando o
fundo do barco e com ele naufraguem, tragados ao abismo revoltoso para o qual
conduziam seu destino desde que se deixaram levar pelos instintos incivilizados
que os dominavam. Com essa tela contundente, Bosch procurava advertir, de forma
burlesca, contra a perda dos valores éticos e civilizatórios que abre as portas
para a barbárie e leva a sociedade ao caos. É estranho: 500 anos se passaram
desde que ele pintou o quadro e eu aqui, do outro lado do mundo, em pleno
século 21, me vejo balançando e sentindo enjoos como se estivesse, repentina e
inadvertidamente, a bordo da dita nau. Que insensatez!
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 4 de junho de 2018)
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