A inveja é, entre todos os sete pecados capitais, possivelmente o mais
autodestrutivo dos sentimentos que se pode cultivar. Tudo bem, também há a
gula, conforme ressalta madama, essa sempre tão atenta leitora. Verdade: a
gula, quando exercida em sua plenitude pecaminosa, acarreta efeitos deletérios
irreversíveis ao corpo do pecador de maneira tamanha que talvez nem mesmo a
redenção por meio de dietas e horas de academia seja possível de ser alcançada.
Mas a inveja, madama minha, a senhora sabe: ela corrói por dentro, ela danifica
a alma, ela deteriora a lucidez, ela carcome a leveza e a alegria de existir,
ela infecta venenosamente a essência daquilo que somos em função da
inalcançabilidade do objeto invejado. Inveja mata aos capítulos, madama, e é
ruim.
Reflito sobre o poder da inveja ao longo desses dias turbulentos que vivenciamos
desde que a legítima e justa greve dos caminhoneiros nos foi privando
aceleradamente do poder de locomoção causado pelo desabastecimento dos
combustíveis nos postos, obrigando-nos a reduzir nossos deslocamentos
automotorizados na medida em que a consciência do problema passava a ser apreendida
ao ritmo do esvaziamento dos tanques de nossos carros. O desacelerar
compulsório do ritmo do cotidiano talvez ofereça como ponto positivo a
possibilidade de encontrarmos então aquele tempo tão precioso para refletir
sobre alguns aspectos da existência que moldam o que somos, individualmente e
também enquanto sociedade. Assim, pus-me a refletir sobre a inveja,
especialmente essa inveja ancestral humana, que se manifesta em sua plenitude
sempre que nós, terrenos seres humanos caminhantes, alçamos os olhos aos céus e
flagramos o voo de uma ave.
Ah, que inveja desse voo livre que aquele pássaro traça elegante e
levemente deslizando pelo céu. Em questão de segundos ele atravessa o bairro e
desaparece no horizonte por detrás da torre da igreja, vencendo sem esforço uma
distância que eu precisaria de penosas dezenas de minutos alçando um pé atrás
do outro, ou que só conseguiria cumprir em pouco tempo dirigindo o carro que
adormece desidratado na garagem. Veículos agora são incapazes de me mover daqui
rumo a meus compromissos e engulo o gosto amargo da inveja pelas asas de Ícaro,
pelas asas de anjos e arcanjos e pelas asas dessa delicada borboleta que não
sei como consegue batucar o vidro da janela de meu escritório no alto desse
décimo-primeiro andar. Melhor aterrissar de novo o devaneio, madama. Andamos
mesmo precisando nos alimentar de novos combustíveis nessa nossa maneira de
sermos brasileiros.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de maio de 2018)
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