A jovem francesa Charlotte Corday
(1768 – 1793) nutria um ódio mortal por Jean-Paul Marat (1743 – 1793). Odiava-o
a partir das profundezas de seu coração e de suas convicções pessoais. Educada
em um convento católico e criada no seio da aristocracia, Charlotte via-se
diretamente atingida em seus valores pela Revolução Francesa, que fizera seu
mundo ruir a partir de 1789 com o movimento capitaneado por Marat e seus
principais parceiros, como Danton e Robespierre. Monarquista, sofria com as
notícias da morte do rei Luís XVI e das execuções dos contrarrevolucionários na
guilhotina. Ela era uma contrarrevolucionária e odiava Marat, em quem personificava
a manifestação do mal.
Marat era o mal e precisava ser
eliminado. Foi com essa convicção que Charlotte bateu à porta da casa dele em
uma noite de sábado, em Paris, 13 de julho de 1793, aviada de um punhal e de
uma convicção. Por meio de um subterfúgio, adentrou os domínios do poderoso e
afamado líder revolucionário, encontrando-o nu na banheira, onde obtinha alívio
imerso em banhos preparados para combater a doença dermatológica que o afligia.
Apresentou a ele uma lista contendo o nome de contrarrevolucionários e, ao
ouvi-lo dizer que os enviaria à guilhotina, não titubeou: apunhalou Marat no peito,
assassinando-o ali mesmo. Quatro dias depois, Charlotte era julgada e
guilhotinada por seu crime, entrando para a História.
François Ponsard (1814 – 1867),
poeta e dramaturgo francês, revisitou o drama real em uma peça intitulada
“Charlote Corday”, que estreou em Paris em 1850. Nela, a poderosa cena da morte
de Marat dá lugar à liberdade poética quando o autor atribui a Charlotte um
breve momento de hesitação frente ao ato que está prestes a cometer. Ao bater
na porta do endereço de Marat, pronta para matar aquele em quem via a
personificação da monstruosidade em pessoa, Charlotte é atendida pela esposa do
líder revolucionário. Chocada, ela recua e exclama para si mesma: “Meu Deus, é
a mulher dele, há quem o ame!”. Por perceber haver quem amasse aquele a quem
considerava um monstro, Charlotte quase abre mão de seu intento, mas acaba
levando-o a cabo ao ouvir Marat determinado a condenar à guilhotina os
desafetos da Revolução. O drama, no fim, obedece aos fatos históricos. Mas as
entrelinhas do texto artístico sugerem uma reflexão concernente: sempre há quem
ame os nossos desafetos, que, apesar de tudo, também são humanos. Precisam ser
combatidos no campo das ideias, claro, mas não podemos nos rebaixar a agir,
frente a eles, como os monstros que os
julgamos ser. Afinal, também sempre há quem nos ame.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 26 de novembro de 2018)