Parecia que ele estava esperando já
há algum tempo que eu, enfim, alçasse os olhos das páginas do livro que lia,
sentado no terraço de meu apartamento no final da tarde, e o fitasse,
encarapitado que estava no topo do prédio vizinho, onde costuma ficar. Não é de
hoje que esse robusto urubu utiliza o alto do edifício em frente como heliporto
entre suas atividades aéreas diárias. Pousa ali, asas recolhidas junto ao corpo
coberto com a escura plumagem que o caracteriza, a cabeça arqueada como que em
uma corcunda, e me fita enquanto recupera o fôlego. Era como se saboreasse o
desconforto que sua presença me causava, incapaz que me via de exorcizar o
preconceito bobo ancestral que recai sobre a simbologia fúnebre e sinistra
injustamente associada a essa ave, tão ave quanto qualquer outra.
Reconheço, de súbito, minha
postura incivilizada e largo o livro no colo, permitindo, pela primeira vez,
que nossos olhares se cruzem, abrindo margem para o estabelecimento de alguma possível
conexão intangível entre ave e humano, entre o urubu e eu. Era como se ele
estivesse contando com que isso, um dia, se desse. Ato contínuo, ele lança seu
corpo do alto do prédio de onze andares e, antes mesmo que um indício de queda
vertiginosa se estabeleça, abre elegantemente as longas asas negras e navega no
ar, tomando impulso para cima, cruzando rente à vidraça do meu terraço, dando
início a um show que me soou premeditado. Levanto da cadeira e decido
acompanhar visualmente seu voo, até onde der, até que sua figura se transforme
em um pontinho contra o avermelhado do céu e se esvaneça na paisagem de sol
poente.
Mas ele opta por bailar. Bate as
asas, sobe alguns metros junto às nuvens, encontra correntes de ar e estende de
novo os membros plumados, entregando-se à coreografia do voo pautado pelas marolas
do vento. Tece desenhos imaginários no ar com sua dança voadora, que me encanta,
me hipnotiza, ofertando a mim um inesperado momento de fruição artística do
belo. Faz arte com seu voo, o urubu que até então eu sempre desdenhara. Não
está caçando, não está procurando uma companheira, está apenas entregue ao
prazer privilegiado que a natureza concedeu aos da sua espécie: voa por
deleite, pela entrega de si mesmo à essência de seu ser. Mal sabe o urubu que,
além do espetáculo, me proporciona inesperadas lições de vida que talvez ajudem
a me tornar mais humano. A principal delas é o endosso da convicção de que o
preconceito é o pior dos vícios. Passei a aguardar suas visitas com expectativa.
Gratidão pela lição que também me fez voar.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)