Conheci um peão de verdade em
meados da década de 1970, quando eu rondava os dez anos de idade, na fazenda
que meu pai e meus dois avós compraram em sociedade no interior de São Borja.
Como todos os três proprietários moravam na cidade, contrataram como capataz um
genuíno habitante daquelas campinas missioneiras, nascido ali mesmo e desmamado
cedo em meio a mato, vaca, chimarrão, mangueira, tabatinga, bugio, churrasco,
mandioca, carroça, pinga, torresmo, boi-tatá e jogo do osso. Chamava-se Donato,
o semblante sempre entrevisto sob a sombra do chapéu nunca arriado do topo da
cabeça, a pele esfumaçada pelo excesso de sol, lenço no pescoço, a bombacha
cinzenta presa pela guaiaca na qual reluzia o facão de mil e uma utilidades (do
descascar da laranja ao recado aos desafetos).
Donato palmilhava aquelas
paragens com a destreza de quem tem o mapa do mato impresso na sola dos pés
curtidos pela ausência de sapato. Nem botas e nem alpargatas: era de pés descalços
mesmo que troteava de lá para cá, pisando em toco de madeira, pedra pontuda, roseta,
espinho, rabo de cachorro, mandruvá, caco de vidro, prego, caroço de pêssego; o
que quer que fosse, calcava em cima e se tocava a encilhar a égua “Belina” para
que eu, o menino da cidade, pudesse dar uma volta. Donato, assim como a maioria
de sua gente, cultivava alma generosa e um analfabetismo crônico herdado de
família. Não sabia pronunciar as letras “r” e “l”, cujos sons transformava em
“i”, vertendo meu nome para “Seu Maicos”, o que nos enchia de espanto.
Donato era pai do Generi, um guri
xucro de franja na testa e olho baixo, de cerca de cinco anos, levado em rédea
curta como cabrito bravio. Certo dia, um dos peões foi picado por cobra e era
preciso levá-lo depressa até a vila, distante uns 20 quilômetros, para ser
medicado. Vi o entrevero de longe: meu pai pulou para a caminhonete, o peão foi
colocado na caçamba e Donato entrou pela outra porta do veículo de motor
roncante. Generi, curioso, implorava para ir junto. Donato abriu a porta, o
guri se encarapitou para cima e, naquela muvuca, teve os dedinhos da mão
direita esmagados na porta lacrada com força. Escutei o grito de longe e senti
em mim aquela dor de dedo quebrado. Donato fitou o filho e sentenciou: “Não
chora!”. Generi silenciou, engoliu o choro junto com a dor e as lágrimas e a caminhonete
partiu, me envolvendo em uma nuvem de poeira misturada com um ainda
indecifrável sabor de injustiça. Se não pudermos chorar nossas dores, o que
haverá de nos consolar? Generi, hoje adulto, talvez saiba a resposta. Ou não.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de setembro de 2019)
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