segunda-feira, 16 de março de 2020

Tempo para ressignificar


O versículo 1 do terceiro capítulo do livro de Eclesiastes, no Velho Testamento, nos ensina que “Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu”. O que se aprende com a máxima é que nada é perene na vida, tudo tem um início e um fim, e que as coisas se reciclam. Quem era, na infância, nosso amigo-para-sempre, depois desaparece nas dobradas da vida de cada um e não raro jamais voltamos a vê-lo, quiçá, esquecemos até seu nome. As carroças não vieram para ficar, foram substituídas pelos automóveis, apesar dos lamentos dos cocheiros. A sabedoria oriental também nos ensina que o germe do novo, que não vê a hora de desabrochar, pulsa latente nas entranhas do velho, que, ao ser superado, prepara o terreno para o contínuo processo de transformação que pauta a saga da vida sobre o planeta.
Assim também se dá, madama, no mundo das crônicas e dos cronistas, inclusive na parcela que toca os cronistas mundanos de segunda, como este que vos escreve. Esta, que hoje a senhora lê, na companhia intangível de tantos outros generosos leitores e dedicadas leitoras, é a última que publico neste espaço que venho ocupando nas páginas do jornal “Pioneiro” desde 24 de dezembro de 2009. De lá para cá, foram, contando com a de hoje, 1.156 crônicas, versando um pouco sobre tudo e um nada sobre muito, às vezes semanalmente, em outros períodos, até de forma diária. Mas, parafraseando o texto bíblico e ampliando seu alcance, reitero que há tempo para ficar e tempo para partir, tempo para permanecer e tempo para ressignificar. Chega agora um desses tempos, e o cronista se despede do espaço e do veículo, mas não dos leitores.
Afinal, escritor é escritor e escrever lhe é atividade vital. Se assim não fosse, escritor não seria, e o mesmo se dá com o cronista, inclusive com os de segunda. Se ao longo desta década meus textos aqui publicados colaboraram para suscitar em alguns o prazer de ler e ajudaram em outros a aguçar o sentido da visão sobre os pequenos detalhes do cotidiano, que, na verdade, representam a complexidade encantadora da vida, então, me dou por satisfeito. Foi um grande prazer exercitar esse gênero literário aqui neste espaço, recebendo o retorno de tantas pessoas, cuja generosidade serviu para retroalimentar e incentivar o prosseguir na labuta escritural, mesmo quando a inspiração decidia passar ao largo. O que inspira, na verdade, é a vida, e essa, segue sempre, independentemente das mudanças, que, via de regra, são excelentes incentivos ao movimento e às reformatações. Abraços e boas leituras a todos.
- Última crônica publicada no jornal Pioneiro, em 16 de março de 2020, após 10 anos como cronista do jornal (iniciado em 24 de dezembro de 2009).

segunda-feira, 9 de março de 2020

O apagadouro da memória


Furungando dia desses em uma caixa de guardados antigos, atrás de alguma velharia qualquer, pois que sou um guardador de memorabília pessoal, especialmente papeis, deparei com uma lista compilada por mim no início da década de 1990, na qual eu elencava o patrimônio adquirido por meio do meu trabalho jornalístico nos primeiros anos de atividade profissional. Constavam ali o televisor 21 polegadas (sensação da época, mesmo que ainda trouxesse o tubo acoplado às costas), o refrigerador com freezer anexo em porta individual (uau!), o aparelho de videocassete (as idas e vindas à locadora de fitas para disputar os melhores títulos no final de semana e devolver a pilha com a metade não assistida na segunda-feira integravam o ritual de tarefas perenes), o Chevette branco 1990 ainda em prestações após a entrega do antigo Chevette 1982 como entrada (a título de informação: Chevettes eram veículos automotores bastante populares naquela era, e cumpriam a função de deslocar seus proprietários de um lugar ao outro, da mesma forma como os automóveis atuais) e... uma enciclopédia!
Sim, a garbosa enciclopédia, composta por 20 volumosos volumes encadernados em capa dura, que ocupavam duas fileiras inteiras da prateleira da sala, integrava a lista do patrimônio significativo adquirido com o suor de minha testa e de meus dedos nas teclas da máquina de escrever ao longo dos anos, produzindo textos que resultavam em salário. Foi uma aquisição longamente planejada, as contas na ponta do lápis para verificar se as prestações caberiam dentro do orçamento doméstico que já se comprometia com o pagamento do Chevette 1990 e o videocassete (este, tão indispensável quanto os demais itens). A chegada dos volumes, via caminhão de transportadora estacionado defronte à porta do prédio, causou a mesma sensação de excitação que se apossava de nós, habitantes daqueles tempos remotos, quando da entrega anual da nova lista telefônica.
Como não guardei nenhum papelzinho a respeito, sequer lembro que fim levou minha tão valorosa enciclopédia de 20 volumosos volumes encadernados em capa dura, que me ensinava tudo sobre o reinado da Rainha Vitória e sobre as principais obras de Machado de Assis. Sumiu-se no apagadouro que engole as coisas e os fatos que vão perdendo relevância ao longo do tempo. Sua memória se mantém recuperada em uma antiga lista guardada em velhas caixas, descoberta ao acaso. Mas onde terá ido parar todo aquele patrimônio, tanto o físico quanto o intangível, que não consta nas listas? Para permanecer, o segredo é manter a relevância.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 9 de março de 2020) 

segunda-feira, 2 de março de 2020

Os quatro defeitos sociais


Quatro são os defeitos de personalidade que impedem as pessoas de serem agradáveis no mundo, elenca a escritora britânica Jane Austen (1777 - 1817), na voz de Elinor, a protagonista de seu romance “Razão e Sensibilidade”, levado ao público pela primeira vez em 1811. Na condição de cronista mundano (mesmo que notadamente de segunda), sempre atento aos aspectos aparentemente triviais que sutilmente moldam a delicada tessitura do ato de (con)viver, me é impossível seguir batido pela passagem e evitar de largar momentaneamente o livro de lado para dedicar alguns minutos à reflexão sobre o trecho lido (pois não é exatamente isso o que se espera da confluência astral entre um bom livro e um leitor esforçado, madama minha?).
Pois foi assim, noite dessas, os pés achinelados relaxando sobre o pufe laranja que adorna o centro da sala, o restante do corpo (sou composto por bem mais do que um par de pés relaxados, madama, acredite) em decúbito absoluto sobre a extensão do sofá, o livro aberto equilibrado sem dificuldades (a edição é pocket, porém, com texto integral) entre as mãos e a barriga fazendo a base, que eu afastava a mente das atribulações cotidianas e me deixava enfronhar no mundo fictício erigido pelo gênio da autora, quando deparei com a tal passagem reveladora. “Os quatro defeitos que impedem as pessoas de serem agradáveis”! Quais seriam? Aplicando aqui o poder contundente da síntese, que produz um efeito mais profundo do que a prolixidade descritiva, Jane Austen classifica assim os tais dos quatro maus elementos: a falta de sensatez, a falta de elegância, a falta de inteligência e a falta de caráter. Na mosca, sweet Jane!
Fácil, inclusive, de decorar a tabelinha do mau comportamento e portá-la mentalmente quando transitamos pela vida e deparamos, com uma frequência maior do que gostaríamos, com as desagrabilidades humanas produzidas por um ou outro desses aspectos (ou vários deles combinados, quando não todos juntos): falta de sensatez, de elegância, de inteligência e de caráter. De todos eles, credito como o pior e o mais preocupante o último na ordem da lista: a falta de caráter, porque é deliberada e consciente. De qualquer forma, são todos igualmente deletérios ao ato civilizatório de conviver e de exercitar o respeito mútuo em sociedade, que o processo civilizatório exige e prescinde para se fazer viável. Grato à escritora imortal por nos presentear com essa valiosa chave para, ao menos, podermos tentar compreender o incompreensível que muitas vezes nos cerca nesse ato de existir juntos aos nossos semelhantes.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de março de 2020)