segunda-feira, 2 de março de 2020

Os quatro defeitos sociais


Quatro são os defeitos de personalidade que impedem as pessoas de serem agradáveis no mundo, elenca a escritora britânica Jane Austen (1777 - 1817), na voz de Elinor, a protagonista de seu romance “Razão e Sensibilidade”, levado ao público pela primeira vez em 1811. Na condição de cronista mundano (mesmo que notadamente de segunda), sempre atento aos aspectos aparentemente triviais que sutilmente moldam a delicada tessitura do ato de (con)viver, me é impossível seguir batido pela passagem e evitar de largar momentaneamente o livro de lado para dedicar alguns minutos à reflexão sobre o trecho lido (pois não é exatamente isso o que se espera da confluência astral entre um bom livro e um leitor esforçado, madama minha?).
Pois foi assim, noite dessas, os pés achinelados relaxando sobre o pufe laranja que adorna o centro da sala, o restante do corpo (sou composto por bem mais do que um par de pés relaxados, madama, acredite) em decúbito absoluto sobre a extensão do sofá, o livro aberto equilibrado sem dificuldades (a edição é pocket, porém, com texto integral) entre as mãos e a barriga fazendo a base, que eu afastava a mente das atribulações cotidianas e me deixava enfronhar no mundo fictício erigido pelo gênio da autora, quando deparei com a tal passagem reveladora. “Os quatro defeitos que impedem as pessoas de serem agradáveis”! Quais seriam? Aplicando aqui o poder contundente da síntese, que produz um efeito mais profundo do que a prolixidade descritiva, Jane Austen classifica assim os tais dos quatro maus elementos: a falta de sensatez, a falta de elegância, a falta de inteligência e a falta de caráter. Na mosca, sweet Jane!
Fácil, inclusive, de decorar a tabelinha do mau comportamento e portá-la mentalmente quando transitamos pela vida e deparamos, com uma frequência maior do que gostaríamos, com as desagrabilidades humanas produzidas por um ou outro desses aspectos (ou vários deles combinados, quando não todos juntos): falta de sensatez, de elegância, de inteligência e de caráter. De todos eles, credito como o pior e o mais preocupante o último na ordem da lista: a falta de caráter, porque é deliberada e consciente. De qualquer forma, são todos igualmente deletérios ao ato civilizatório de conviver e de exercitar o respeito mútuo em sociedade, que o processo civilizatório exige e prescinde para se fazer viável. Grato à escritora imortal por nos presentear com essa valiosa chave para, ao menos, podermos tentar compreender o incompreensível que muitas vezes nos cerca nesse ato de existir juntos aos nossos semelhantes.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 2 de março de 2020)

Nenhum comentário: