segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Viver mil vidas e mais uma


O ser humano é um narrador por natureza. Gostamos de narrar os fatos que preenchem o nosso próprio existir da mesma forma como apreciamos usufruir as narrativas advindas das experiências vividas pelos outros. Alimentamo-nos com o gosto da autoestima adulada sempre que detectamos uma plateia (mesmo que modesta, composta por familiares, colegas de trabalho ou amigos) hipnotizada com nossos relatos sobre algum incidente prosaico do cotidiano que envelopamos com sabores de pequena tragédia ou comédia da vida real. Temos prazer em nos tornarmos, por instantes, os protagonistas da história, enfeitando a ação em favor da condução da trama a bom termo, mesmo que, para isso, às vezes, precisemos passar a perna na veracidade dos fatos. Afinal, como atesta o ditado, se não é verdade, pelo menos, é bem contado.
Somos também bons ouvidores dos relatos dos outros. Tanto é assim que nos dedicamos, desde tempos imemoriais, e com prazer, ao papel de plateia e ouvidos até mesmo (e, talvez, principalmente) às narrativas totalmente inventadas, por sabermos detectar nelas os elementos que vão servir de conexão com aspectos fundamentais de nosso próprio existir. Apreender narrativas amplifica nosso autoconhecimento, asfalta o caminho para a compreensão do outro, destrava os cadeados do existir. É por isso que gostamos de consumir ficção, seja ela na forma de livro, de teatro, de filme, de novela, de seriado televisivo, de história contada pelos avós... Ouvir a narrativa do outro é a ferramenta que possibilita estabelecermos nosso próprio processo de autoescuta.
Fazemos isso desde tempos imemoriais, quando ainda sequer a escrita havia sido inventada. Sentávamos ao redor da fogueira à noite e doávamos os ouvidos aos relatos excitantes dos bardos, dos menestréis, dos atores que, oralmente, nos transportavam, a bordo do veículo mágico da imaginação, aos cenários das aventuras dos heróis, dos deuses antigos, de reis longínquos, de princesas desamparadas. Aprendemos, desde então, que nossa pequena vida cotidiana pode ser incrementada pela absorção de mil e uma outras vidas diferentes da nossa, estendendo ao infinito os limites de nossa própria existência. A narrativa, como base para a manifestação de todas as artes (toda a arte narra uma história, mesmo uma música, uma tela, uma escultura, uma arquitetura), embasa, ao longo dos milênios, a construção do processo civilizatório. Felizes dos povos que sabem cultivar, valorizar, preservar e incentivar a ação dos artistas. É a esses povos que cabe o protagonismo na construção da saga do humano.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de outubro de 2019)

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