O ser humano é um narrador por
natureza. Gostamos de narrar os fatos que preenchem o nosso próprio existir da
mesma forma como apreciamos usufruir as narrativas advindas das experiências
vividas pelos outros. Alimentamo-nos com o gosto da autoestima adulada sempre
que detectamos uma plateia (mesmo que modesta, composta por familiares, colegas
de trabalho ou amigos) hipnotizada com nossos relatos sobre algum incidente
prosaico do cotidiano que envelopamos com sabores de pequena tragédia ou
comédia da vida real. Temos prazer em nos tornarmos, por instantes, os
protagonistas da história, enfeitando a ação em favor da condução da trama a
bom termo, mesmo que, para isso, às vezes, precisemos passar a perna na
veracidade dos fatos. Afinal, como atesta o ditado, se não é verdade, pelo
menos, é bem contado.
Somos também bons ouvidores dos
relatos dos outros. Tanto é assim que nos dedicamos, desde tempos imemoriais, e
com prazer, ao papel de plateia e ouvidos até mesmo (e, talvez, principalmente)
às narrativas totalmente inventadas, por sabermos detectar nelas os elementos
que vão servir de conexão com aspectos fundamentais de nosso próprio existir. Apreender
narrativas amplifica nosso autoconhecimento, asfalta o caminho para a
compreensão do outro, destrava os cadeados do existir. É por isso que gostamos de
consumir ficção, seja ela na forma de livro, de teatro, de filme, de novela, de
seriado televisivo, de história contada pelos avós... Ouvir a narrativa do
outro é a ferramenta que possibilita estabelecermos nosso próprio processo de
autoescuta.
Fazemos isso desde tempos
imemoriais, quando ainda sequer a escrita havia sido inventada. Sentávamos ao
redor da fogueira à noite e doávamos os ouvidos aos relatos excitantes dos
bardos, dos menestréis, dos atores que, oralmente, nos transportavam, a bordo
do veículo mágico da imaginação, aos cenários das aventuras dos heróis, dos deuses
antigos, de reis longínquos, de princesas desamparadas. Aprendemos, desde
então, que nossa pequena vida cotidiana pode ser incrementada pela absorção de
mil e uma outras vidas diferentes da nossa, estendendo ao infinito os limites
de nossa própria existência. A narrativa, como base para a manifestação de
todas as artes (toda a arte narra uma história, mesmo uma música, uma tela, uma
escultura, uma arquitetura), embasa, ao longo dos milênios, a construção do
processo civilizatório. Felizes dos povos que sabem cultivar, valorizar,
preservar e incentivar a ação dos artistas. É a esses povos que cabe o
protagonismo na construção da saga do humano.
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 28 de outubro de 2019)
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