A situação que vou relatar se
assemelha à que acontece, às vezes, com aquele vaso antigo que está na família
há gerações e vem sendo herdado de forma compulsória por membros menos atentos,
no ritual de distribuir os pertences dos ancestrais que vão se retirando de
cena. O vaso é sem graça, ninguém sabe de onde veio, se possuía algum
significado sentimental para os bisavós, mantido em cena como um coadjuvante
silencioso ao longo das décadas, passível de ser identificado ao fundo de
alguma velha fotografia, refugado a um canto na prateleira. Por hábito,
respeito ou inércia, nunca foi jogado fora, acabou ficando, até o dia em que,
pelo manejo desastrado de algum cabo de vassoura, espatifa-se no chão e, daí
sim, finalmente, obtém a atenção que jamais conquistara em “vida”: lamentamos
sua perda, choramos sua saída de cena, mesmo que, antes, nunca tenhamos
prestado atenção à relevância de sua atuação silenciosa. Sentimos luto pela
perda do vaso insosso e discreto, pois é inerente à nossa índole humana a necessidade de sofrer com o
processo de desapego.
Da mesma forma se dá, no momento,
com o desaparecimento de minha vesícula, órgão discreto, de papel importante
mas coadjuvante no funcionamento de meu organismo, que resolveu inflamar de
súbito, me lançar ao chão de casa miando de dor no início de uma madrugada e me
empurrar ao pronto-socorro, onde, após uma série de exames (eco, tomo e afins...),
obrigou-me a me ver baixado em um leito, aos cuidados zelosos de enfermeiras e
médicos, obedecendo a rituais de trocas de soro, aplicações de medicamentos via
intravenosa, aferições periódicas de sinais vitais, dietas líquidas, até a
apoteose final da saga, representada pelo ato sacrificial de retirada física de
sua presença no conjunto dos órgãos que compõem a orquestra das minhas
entranhas. Foi-se minha vesícula, já era, não nos reveremos jamais! Coração,
pulmões, rins, fígado, pâncreas, baço, bexiga e intestinos juram, de pés juntos
(com os meus pés, claro, que se solidarizam nesse momento delicado), que serão
capazes de seguir dando conta do recado apesar da deserção vesicular. Serve de
consolo, mas, além da dor dos pontos, sinto outra pontinha de dor pela perda de
uma parte de mim, mesmo que, até então, jamais tivesse me dado por conta de sua
sutil existência.
Minha vesícula acabou se revelando
tão dispensável quanto o velho vaso da tataravó. Porém, para a garantia de uma
sequência de vida saudável, é aconselhável não abandonar a memória de nenhum
deles, da dor que foi perdê-los e das razões que culminaram nas dolorosas separações...
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 18 de novembro de 2019)
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