O Planeta Livro é um lugar que não existe fisicamente. Ele não tem território definido, tampouco suas fronteiras são fixas. Seu tamanho é imensurável e sua órbita é impossível de ser rastreada pelo mais potente dos telescópios. No entanto, sabem-se algumas coisas sobre ele. Sabe-se, por exemplo, que ele é habitado por todas as pessoas que possuem alguma espécie de relação com o objeto livro e com o ato da leitura. Sabe-se que seus domínios são mentais e seu território é visitado sempre que alguém abre um livro para ler, ou visualiza com curiosidade uma lombada numa livraria, ou percorre as estantes labirínticas de uma biblioteca, ou escreve um poema, ou monta uma barraca numa feira de livros, ou inscreve um inédito num concurso literário, ou lê em voz alta para uma criança, ou comenta uma obra bacana, ou recomenda um autor para um amigo, ou participa de um sarau e outras coisas dessa natureza.
Recensear o Planeta Livro é uma tarefa difícil, pois o ato precisa levar em conta o número de livros existentes no mundo (além dos não mais existentes, mas que um dia foram publicados, e todos aqueles escritos e ainda engavetados, mais os que por enquanto só existem na imaginação de seus autores); todos os escritores que já publicaram e aqueles que desejam publicar; todos os editores e os livreiros e todos todos todos todos todos os leitores de livros do mundo, vivos e mortos, porque, nos domínios do Planeta Livro, ninguém morre de verdade, mas passa para a posteridade. Mesmo assim, existem os momentos de luto no Planeta Livro, como quando uma livraria fecha as portas ou quando um escritor muito querido passa a desexistir no plano físico para habitar para sempre a posteridade, não mais escrevendo novos livros.
Foi o que aconteceu em junho deste ano, por exemplo, quando morreu o escritor português José Saramago, único Nobel de Literatura em língua portuguesa até o momento. A notícia de sua morte aos 87 anos de idade, em 18 de junho, comoveu todos os habitantes do Planeta Livro, porque tratava-se de um dos mais renomados escritores vivos e em atividade no mundo nos dias de hoje. Saramago era um clássico em vida, e é raro coexistir em um tempo em que figuras desse porte caminham junto com a gente sobre a Terra. Independentemente de concordar-se ou não com suas posturas filosóficas e políticas ou com sua constante queda-de-braço com a religião, Saramago encarnava o escritor profissional de talento e de mão cheia, que vivia da e para a literatura, abrilhantando os domínios do Planeta Livro com o seu inquestionável talento.
Eu estava ministrando um bate-papo sobre literatura e crônicas aos alunos da oitava série de uma escola municipal em Farroupilha naquela mesma manhã em que Saramago morria. Eu encarnava meu lado escritor em Farroupilha enquanto o escritor de verdade desencarnava nas Ilhas Canárias, do outro lado do Atlântico. Fiquei sabendo da notícia ao chegar em casa, no final da manhã. Surpreendi-me e enlutei-me. A surpresa se deu porque eu não esperava sua morte (e quem, afinal, a espera?), uma vez que a imagem que tinha de Saramago era a de um escritor velhinho plena e constantemente ativo, escrevendo, publicando e concedendo entrevistas. Não sabia que andava adoentado nos últimos anos. Afinal, recém havia dado à luz a “Caim”, seu agora derradeiro romance.
Já o luto se deu pela pena em saber que da pena e do talento dele não mais teremos novidades literárias, restando-nos ler aqueles títulos que ainda não lemos e depois dedicarmo-nos aos prazeres das descobertas das releituras, tarefas que, aliás, são plenamente gratificantes e inesgotáveis. A gente desenluta rápido no Planeta Livro, porque se sabe que ter o privilégio de habitá-lo significa ter o direito a um constante estado de alegria, aquela alegria que só o mundo dos livros e da leitura pode proporcionar, e que Saramago, junto a tantos outros, soube florir como o jardineiro das letras que era e que para sempre será, agora na eterna posteridade.
(Texto publicado na revista Acontece Sul de agosto de 2010, na seção Planeta Livro)
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