Houve um tempo, lá na Rua dos Viajantes, onde eu morava na
infância e adolescência, em Ijuí, em que cultivávamos a estimação de dois gatos
e de dois cachorros, a saber: Pretinho e Fips (os gatos) e Balú e UFO (os
cachorros). Vou me ater à questão relativa aos gatos, nestas mal-digitadas
linhas de segunda (de segunda-feira, né, leitor atilado e leitora benevolente),
deixando a dos cachorros para uma próxima, caso seja de manifesto interesse. Se
não for, farei da mesma forma, sabe, né, madama.
Os gatos, então. Pretinho era o mais velho da dupla e compartilhava
com o novato Fips o privilégio concedido na casa aos da espécie felina, que era
o de transitarem livremente entre o ambiente doméstico e a rua, o pátio, as
redondezas. Eram livres. UFO e Balú, os cães, obedeciam às regras do regime
semi-aberto destinado aos caninos da casa: vida restrita ao pátio, sem
coleiras, dentro dos limites das cercas mas vetados às dependências da
residência. Detentora de claros privilégios, a dupla de gatos perambulava
soberba perante a mal disfarçada inveja dos dois cachorros, porém, a
convivência era pacífica, amistosa, desprovida de incidentes. Praticava-se
irracionalmente a tolerância com as diferenças, a aceitação mútua, o convívio
tranquilo.
Pretinho, o gato mais velho, era escuro como um carvão e
esperto e serelepe como um saci de quatro patas (e cauda). Brincava de
esconde-esconde comigo e minha irmã pelos corredores da casa, por onde saltava
detrás das portas e cortinas para nos dar sustos e sair em disparada porta
afora, dando risada, esperando que corrêssemos atrás dele. Subia nas árvores do
pátio, especialmente em uma frondosa timbaúva, e de lá de cima chamava o novato
Fips para com ele aprender escaladas. Fips ficava ao pé das árvores, admirando
seu mentor, reunindo coragem para avançar além do tronco de um magrinho
jacarandá. Não tinha vocação para aventuras radicais como Pretinho, e preferia
passar as tardes me fazendo companhia no quarto enquanto eu produzia, com lápis
de cor, minhas histórias em quadrinhos. Era um gato literato. Cada felino com
suas nuances, bem sabemos.
Um dia, Pretinho morreu, sabe-se lá exatamente de quê. Uma
vizinha telefonou avisando que o encontrara morto em seu pátio e fui lá com uma
caixa de papelão resgatar o corpinho duro do estimado felino. Peguei pá e
enxada e fui enterrá-lo num canto remoto do quintal de casa, sob o olhar atento
de Fips, deitado ao lado, na terra. Só ele e eu estivemos presentes às cerimônias
fúnebres de Pretinho. O primeiro amigo que se enterra, a gente nunca esquece.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 3 de abril de 2017)
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