Eu possuía um binóculo e meu primo dispunha momentaneamente da chave do
carro de seu pai, meu tio. O pacto estava feito, afinal, tínhamos em mãos toda
a parafernália necessária para testemunharmos a passagem do Cometa Halley,
naquele fevereiro de 1986. Além do binóculo e do transporte, estávamos aviados
também do requisito que, talvez, se configurasse no mais determinante de todos:
a juventude de nossos 20 anos de idade, trasbordante de iniciativas e das proatividades
características. Aquele astro celeste não cruzaria os céus passando
despercebido por nossa observação daqui debaixo, não mesmo.
Éramos estudantes universitários gozando férias de início de ano e
gastávamos o tempo deambulando pela nossa compartilhada Ijuí natal naqueles
dias de atenções extraplanetárias. Morador da Rua dos Viajantes, acostumado a
trilhar viagens de todas as espécies, e frequentador assíduo do mundo da Lua
que era, cabia a mim a tarefa de descobrir a melhor data e o mais propício
horário para efetivar a observação do cometa que sazonalmente faz sua passagem
perto do nosso planeta, proporcionando uma experiência visual única a cada ciclo
de cerca de 76 anos. A última vez fora em 1910 e, agora, testemunharíamos sua
nova visita aos nossos domínios terráqueos.
Decretei o dia certo naquele
fevereiro e a hora madruguenta em que melhor poderíamos avistá-lo. À meia-noite,
limpei as lentes do binóculo, meu primo chegou pilotando o Corcel II de meu tio
e rumamos a um descampado nos limites da cidade, escuro, longe das luzes da
civilização. A temperatura era amena e o céu estava limpo, propício para o
avistamento de cometas. Estacionamos, saltamos para fora do carro e nos pusemos
a perscrutar o firmamento estrelado, em busca do astro errante. De repente, lá
estava ele. Longe, longe... Uma estrela com um rabinho reto luminoso em forma
de cauda. Era o Halley. Tímido, discreto, devido à distância. Mas era ele. Nossos
olhos pescaram para dentro das almas a sensação do avistamento e a consciência
do privilégio histórico que ambos vivenciávamos ali. Bastou.
Saciados, voltamos para nossas casas. Guardei meu binóculo, meu primo
devolveu a seu pai o carro intacto. Adormecemos, cada um em seu quarto. Ou não.
O retorno do Halley está previsto para 2061, quando eu acumular 95 anos, se
estiver vivo. Voltarei a vê-lo? E, se o vir, reconhecerei nele o reflexo de mim
mesmo, a mesma essência do Marcos que presenciou sua visita anterior? Pensei
essas coisas naquela noite de insônia excitada. Ainda penso. Afinal, precisamos
ser mais do que meros cometas de passagem.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 23 de outubro de 2017)
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