“O limpador de sapatos” é como
ficou conhecida e entrou para a História a primeira imagem registrada
fotograficamente de um ser humano. Na verdade, aparecem no retrato dois seres
humanos: o limpador de sapatos em si, agachado à direita, no canto inferior esquerdo
da composição, e o cliente que faz uso de seus serviços, o dono dos sapatos, à
esquerda, em pé, com uma perna alçada e apoiada sobre a caixa a partir da qual
os pisantes são lustrados. Na verdade, também, não se trata de uma fotografia
na concepção atual do termo, mas, sim, de um daguerreótipo, método inventado
pelo cientista francês Louis Daguerre (1789-1851), um dos precursores mundiais
dos sistemas de captura e fixação de imagens por meio de processos químicos.
O flagrante típico do cotidiano
foi obtido a partir da janela de um prédio em que Daguerre se instalou com sua
parafernália, nos subúrbios de Paris, há exatos 180 anos, em 1838. Naqueles
tempos de antanho, ele e outros inventores davam os primeiros passos para a
rápida criação dos processos fotográficos à base de filmes, que passariam a
registrar a saga da humanidade a partir de então, resultando décadas mais tarde
nas ultramodernas câmeras digitais e nos smartphones, que permitem o desvario
sem fronteiras da expressão da vaidade e do cultivo do narcisismo coletivo por
meio das adoradas selfies, de reprodução instantânea, porque, afinal, não faz
bem para o ego deixar a autoestima esperando. Vale aqui ressaltar e contrastar
o tamanho do anonimato a que estão relegadas para sempre essas duas históricas
figuras, que, sem jamais terem se dado por conta disso, acabaram se
transformando nos dois primeiros seres humanos a terem suas imagens eternizadas
por meio de um retrato fotográfico. Simplesmente estavam no lugar certo na hora
certa, pessoas comuns vivendo em Paris suas vidas comuns. Delas, nada mais sabemos,
sequer os detalhes de suas feições (apenas as silhuetas esfumaçadas pelo tempo).
O que sabemos é que, há quase
dois séculos, os humanos dominam a técnica de registrar e perenizar as imagens
de si mesmos e dos outros, de seus feitos e defeitos, sem mais precisar
recorrer aos pintores e aos escultores que, via de regra, só retratavam para a
posteridade a elite abonada e afamada. De Daguerre para cá, a possibilidade de
captura de nossas imagens próprias concorre para tirar qualquer um de nós do
anonimato e alcançar a perenidade visual. Mas a questão que permanece é: que
tipo de imagem andamos tratando de cultivar? E, dependendo da resposta, será
ela passível de ser revelada por uma selfie? Vai saber...
(Crônica publicada no jornal"Pioneiro" em 9 de julho de 2018)
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