A solidão transportada pela
madrugada se estende mais rápido nos bairros em que os paralelepípedos revestem
as ruas. Neles, em seus perfis periféricos e arrabaldinos, o asfalto central
inexistente desconvida ao cruzar célere dos automóveis tardios, permitindo que
gatos pardos (como todos o são a essas horas adultas) agora exibam destemidos e
garbosos as suas felinices pelo centro das vias, transformadas em passarelas
das quais se apossam para desfilar suas empáfias, secretas e noturnas. A tênue
luz amarelada jorrada pelos postes de iluminação pública produz bolsões
ovalados de uma claridade opaca sobre fragmentos da rua, originando um
tabuleiro de xadrez intercalado entre claro e escuro a cada vintena de metros
ou dezena de apressadas passadas do transeunte ímpar que cruza o nada, vindo de
nenhures, mãos nos bolsos, rumando a lonjuras enquanto machuca o silêncio com o
fincar cadenciado da sola do sapato na pedra fria forte sólida da rua, ecoando
poesia concreta sem a intenção de ser.
Em horas assim, a companhia da
solidão da rua é o silêncio que dela emerge, quebrado de tempo em tempo pelas
lufadas do vento negro que sopra de longe, sacudindo fios de luz onde agora
nenhum passarinho se assenta. Também eles já se recolheram a seus ninhos ermos
e secretos, vitalmente afastados dos olhares da urbe que, enfim, adormece. Quem
cruza as ruas é o vento, ele só, dobrando esquinas sem dar sinal, avançando
semáforos, ignorando preferências, correndo livre a fazer inveja ao jovem, ao
tolo, ao imprudente e ao estranho que segue espetando sapatos agora lá longe,
bem longe, escuridão adentro, entregando-se ao engolfar aveludado da noite que
o suga para entranhas perenes. Quem era? Quem é? Ainda será, agora que foi-se? Dele,
restam os sons dos últimos passos que também evanescem no longe da cena.
Silêncio. Vento e silêncio. E um
novo gato que passa, talvez o mesmo, talvez outro, não há como saber, afinal, é
pardo, como qualquer um que habite essas horas tardas. Nessa cena deveria haver
lua, mas lua não há. Uma manta de nuvens age de escudo e impede o fluir do lume
das estrelas, dos planetas e de qualquer outro ente brilhoso que poderia
aliviar com cintilâncias a aura soturna que teima em imperar. A pouca luz que
vigora é essa, da rede de postes, pensada para alumiar solitudes e nadas
profundos de eus imprevistos tal gato solitário ou pardo passante. Serve também
para luzir a pouca inspiração de um cronista de segunda, mas isso, pelo menos,
não vem acrescido na conta da luz ao final do mês. Poesia noturna ainda nos
chega de graça.
(Crônica publicada no jornal "Pioneiro" de Caxias do Sul em 23 de julho de 2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário