segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O perigo da falsa autoria


Venha cá, madama, vamos falar sobre algo sério, senta aqui do lado. Pois é, precisamos conversar sobre essa coisa do “diz que me diz que”. Isso! Hein? Não, que é isso, não estou dizendo que a senhora disse que! Nada disso! Não disse isso, e é exatamente sobre isso que desejo falar: sobre quem disse o que! Pois é, a senhora veja, existe hoje muito dessa coisa de dizerem que Fulano disse tal coisa, sendo que a coisa tal jamais foi sequer aventada pela mente de Fulano, por mais imaginosa e criativa que ela seja, cabendo, na verdade, a Sicrano a autoria do dito, que acaba passando batido. Precisamos atentar a essas coisas, para evitar dizermos que disse o dito quem não o disse. Para fins de abertura séria da crônica de segunda, direi que precisamos abordar a questão das falsas atribuições de autoria.
A senhora veja, madama, como são as coisas. São de tal porte e envergadura que sequer um cronista de segunda como eu se vê livre de incorrer no erro. Vida inteira, por exemplo, atribuí a Borges (o escritor argentino, aquele), a bela reflexão que segue: “Sonhei pelo menos algumas vezes que, no dia em que chegar o Juízo Final e os grandes conquistadores, juristas e estadistas forem receber suas recompensas – coroas, lauréis, nomes gravados indelevelmente no mármore imperecível -, o Todo-Poderoso há de se virar para Pedro e dirá, não sem uma ponta de inveja ao nos ver chegando com nossos livros debaixo do braço: ‘Veja, estes não precisam de recompensa. Aqui não temos nada para lhes dar. Gostavam de ler’”. Lindo, né? Só que a sensibilidade pertence à escritora Virgínia Woolf, não a Borges. Da mesma forma, as frases erroneamente atribuídas a Bertold Brecht, referindo-se à perseguição nazista na Alemanha: “Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu não disse nada, pois não era socialista. Então vieram buscar os sindicalistas, e eu não disse nada, pois não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus, e eu não disse nada, pois não era judeu. Quando eles vieram me buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar”. Quem disse foi o pastor alemão Martin Niemöller, uma das raras vozes a se levantar contra a psicopatia assassina hitlerista na Alemanha, na época. Sabia? Nem eu!
Precisamos cuidar com as pegadinhas das falsas atribuições de autoria, para não incorrermos em injustiças e erros. Shakespeare nunca disse “Postar ou não postar, eis a questão!”. Fernando Pessoa jamais poetou que “o amor é a coisa mais linda do mundo”, apesar de ser, sim. Cuidado com as pegadinhas, madama! Essa, a senhora pode atribuir a mim mesmo!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 13 de janeiro de 2020)

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