(Em homenagem à vinda de Paul McCartney a Porto Alegre em 7 de novembro, reproduzo a segunda de três crônicas-Beatle que publiquei no site www.thebeatles.com.br)
Eu, na verdade, sou um beatlemaníaco tardio. Fruto, digamos, da “segunda safra” de contagiados pela doença Beatle, aquela que faz você despertar um dia para aquilo que descobre ser um conjunto genial de canções e nunca mais conseguir deixar de escutá-las mais uma vez, e mais outra, e uma vez mais, e de novo, e... Bom, mas é isto: quando fui me dar por conta de alguma coisa na vida, os Beatles já haviam se separado há muito tempo e John Lennon já tinha ido para o céu. Mas também não surgi de um ovo e tampouco fui expelido aqui para baixo de repente pela descarga de um disco voador... O fato é que foi assim, ó:
Eu vim ao mundo ainda na Era Beatle, ou seja, em 8 de julho de 1966, pouco depois do lançamento do álbum “Revolver”, enquanto provavelmente John, Paul, George e Ringo se recuperavam da traumática estada nas Filipinas (quero crer que não foi por causa de Imelda que ganhei o nome “Marcos”) e se preparavam para aquela que viria a ser a última turnê da banda, que aconteceria em agosto, nos Estados Unidos. Ou seja: enquanto meus pais escutavam meus choros e gritos que destranqüilizavam a até então pacata Rua dos Viajantes, a parte civilizada do mundo já começava a se deleitar com pérolas musicais que viriam a permanecer para sempre como “Eleanor Rigby”, “Taxman”, “Tomorrow never knows”, “Yellow submarine”, “I want to tell you” e outras. Lá em casa, enquanto isto, tentava-se combater a faixa número um do Top Ten da Família (“Marquinhos´screams”) contrapondo as faixas de “Rubber Soul”, conforme já explicitado na crônica anterior (“Gu-gu dá-dá be-beatles”).
Mas eu mal caminhava ou articulava frases quando o mundo maravilhou-se com “Sgt Pepper´s”, em 1967. Depois, passou-me completamente despercebido o lançamento de um álbum duplo com capa branca e, além disto, a única turnê mágica e misteriosa que eu fazia era em meio aos meus carrinhos de chumbo Matchbox e junto ao porquinho de pano que levava comigo para receber vacina no posto de saúde. Primeiro ele, depois eu, naturalmente. Devia ser “Piggies” já ecoando subliminarmente em meu cérebro, vai saber...
Quando cantaram “Let it Be” eu não estava nem aí e, quando o sonho acabou, no início de 1970, eu tinha três anos e meio e recém começava a ter capacidade para moldar os meus próprios sonhos. Fui crescendo e “Rubber Soul”, o único disco (disco mesmo, de vinil, bolacha preta a ser beijada pela agulha) que eu tinha do quarteto, se acotovelava entre outros na prateleira, jazendo ali, inócuo, incólume, insípido e inodoro. Cresci, alfabetizei-me, e assisti pelo Jornal Nacional a comoção mundial pelo assassinato de John Lennon, quando já não me eram estranhas composições como “Give Peace a Chance” e “Imagine”, mas não me uni ao pranto pela morte estúpida de um ex-Beatle. Não naquela ocasião, pelo menos. Eu já andava pelos 14 anos e me preparava para começar a formatar meu próprio gosto musical. Ganhava mesada e descarregava tudo em livros de Monteiro Lobato e de Agatha Christie, além de gibis dos super-heróis Marvel lançados aqui na época pelas editoras Bloch e Ebal. Mas, um belo dia, minha avó me deu de Natal um disco dos Secos & Molhados.
Ops! Minha avó me deu um disco dos Secos & Molhados?????!!!!!!?????!!!!!!!!!!!!!
Sim, mas péraí, isso foi bem antes, em 1974, quando eu tinha sete anos. Ela me deu o disco (minha avó! Me deu um disco dos Secos & Molhados!!! Os caminhos de Deus são inescrutáveis, todos sabemos disto, mas... putz... minha avó me dar um... bom, deixapralá...), aquele que tem na capa as quatro cabeças pintadas e servidas em bandejas. A imagem me assustava e deixei o disco guardado, meio que escondido, por um bom tempo, para evitar pesadelos. Daí, então, lá no final de 1980, vasculhando a prateleira dos discos depois da morte de John Lennon, encontrei este dos Secos & Molhados que minha avó havia me dado anos antes e coloquei-o na vitrola Telefunken para escutar. E gostei do que ouvi. Comecei a prestar atenção no arranjo de abertura de “Sangue Latino” (o baixo e o chocalho abrindo a música, as cordas que vêm do fundo e vão crescendo, preparando a entrada da voz andrógina de Ney Matogrosso...). Putz, aquilo era muito louco! Será que havia mais discos assim enfiados ali no meio, além dos disquinhos de historietas de Walt Disney, que já haviam sido abandonados junto ao babeiro e à mamadeira?
Será que existiam por ali músicas como “Imagine” e “Give Peace a Chance”, do John Lennon que havia morrido? Vasculhei todos os discos e não encontrei nada mais que me agradasse. O “Rubber Soul” estava lá, mas passou batido a estas primeiras audições ansiosas e desinformadas. Precisava, então, dar uma destinação mais ampla aos cruzeiros que compunham a mesada, além dos gibis do Homem-Aranha, das Caçadas de Pedrinho e de O Caso dos Dez Negrinhos. Resolvi comprar discos.
E lá vieram eles: Abba, Boney M., Gengis Khan, trilha internacional da novela Dancin´ Days... Uau! Mas, calma, não se desesperem, o final da história é feliz... Fui resgatado a tempo por um tio apenas sete anos mais velho do que eu que, em 1982, veio morar com a gente e trouxe consigo uma verdadeira parafernália musical: um aparelho de som modulado (até então eu só conhecia três-em-um), com equalizador, um par de caixas monstruosas e discos, muitos discos. Entre eles, “Let it Be”... As músicas misteriosas apreciadas por aquele tio invadiam o corredor e todos os aposentos da casa nas tardes quentúmidas em Ijuí, escapando por debaixo das frestas da porta do quarto que estava agora destinado a ele. E não é que as faixas daquele disco de capa preta com fotos de quatro cabeludos pareciam ter a mesma complexidade de composição que eu identificara pouco antes no Secos & Molhados presenteado pela minha avó (aliás, mãe deste tio)? Que coisa diferente aquela “I´ve Got a Feeling”... e “Get Back”, e “Two of Us”... Decidi que gostava daquele álbum, e passei a desejar conhecer mais sobre a banda. Que se chamava... The Beatles! Mas… como? Então eram os mesmos caras de “Rubber Soul”, que a vida inteira estivera esquecido ali em casa, na prateleira dos discos?
Ver com outros olhos, escutar com outros ouvidos... A psicologia chama de “insight” o momento em que você percebe algo por conta própria, o instante mágico e inesquecível em que alguma coisa se elucida... Como podiam os mesmos caras produzirem sons tão diferentes como os verificados em “Rubber Soul” e em “Let it Be?” E não é que aquele disco que era meu há anos continha músicas tão interessantes quanto as de “Let it Be” e as dos Secos & Molhados? “Michelle”... “Norwegian Wood”… “I´m Looking Through You”… Hummm… Havia um universo a ser descoberto ali....
O que mais existia entre aqueles dois álbuns, o que viera antes deles e o que acontecera e ainda aconteceria depois... bem, foram estas as motivações que me levaram a começar minha trilha por uma estrada mágica e misteriosa, em uma jornada repleta de sabores novos pelo inesgotável universo Beatle, que persiste e se renova até hoje.
“Follow Me”. Não é isso, Paul?
* Marcos Fernando Kirst é jornalista, gaúcho, e tem dois tios que o resgataram a tempo do lado escuro da era “disco”.
Eu vim ao mundo ainda na Era Beatle, ou seja, em 8 de julho de 1966, pouco depois do lançamento do álbum “Revolver”, enquanto provavelmente John, Paul, George e Ringo se recuperavam da traumática estada nas Filipinas (quero crer que não foi por causa de Imelda que ganhei o nome “Marcos”) e se preparavam para aquela que viria a ser a última turnê da banda, que aconteceria em agosto, nos Estados Unidos. Ou seja: enquanto meus pais escutavam meus choros e gritos que destranqüilizavam a até então pacata Rua dos Viajantes, a parte civilizada do mundo já começava a se deleitar com pérolas musicais que viriam a permanecer para sempre como “Eleanor Rigby”, “Taxman”, “Tomorrow never knows”, “Yellow submarine”, “I want to tell you” e outras. Lá em casa, enquanto isto, tentava-se combater a faixa número um do Top Ten da Família (“Marquinhos´screams”) contrapondo as faixas de “Rubber Soul”, conforme já explicitado na crônica anterior (“Gu-gu dá-dá be-beatles”).
Mas eu mal caminhava ou articulava frases quando o mundo maravilhou-se com “Sgt Pepper´s”, em 1967. Depois, passou-me completamente despercebido o lançamento de um álbum duplo com capa branca e, além disto, a única turnê mágica e misteriosa que eu fazia era em meio aos meus carrinhos de chumbo Matchbox e junto ao porquinho de pano que levava comigo para receber vacina no posto de saúde. Primeiro ele, depois eu, naturalmente. Devia ser “Piggies” já ecoando subliminarmente em meu cérebro, vai saber...
Quando cantaram “Let it Be” eu não estava nem aí e, quando o sonho acabou, no início de 1970, eu tinha três anos e meio e recém começava a ter capacidade para moldar os meus próprios sonhos. Fui crescendo e “Rubber Soul”, o único disco (disco mesmo, de vinil, bolacha preta a ser beijada pela agulha) que eu tinha do quarteto, se acotovelava entre outros na prateleira, jazendo ali, inócuo, incólume, insípido e inodoro. Cresci, alfabetizei-me, e assisti pelo Jornal Nacional a comoção mundial pelo assassinato de John Lennon, quando já não me eram estranhas composições como “Give Peace a Chance” e “Imagine”, mas não me uni ao pranto pela morte estúpida de um ex-Beatle. Não naquela ocasião, pelo menos. Eu já andava pelos 14 anos e me preparava para começar a formatar meu próprio gosto musical. Ganhava mesada e descarregava tudo em livros de Monteiro Lobato e de Agatha Christie, além de gibis dos super-heróis Marvel lançados aqui na época pelas editoras Bloch e Ebal. Mas, um belo dia, minha avó me deu de Natal um disco dos Secos & Molhados.
Ops! Minha avó me deu um disco dos Secos & Molhados?????!!!!!!?????!!!!!!!!!!!!!
Sim, mas péraí, isso foi bem antes, em 1974, quando eu tinha sete anos. Ela me deu o disco (minha avó! Me deu um disco dos Secos & Molhados!!! Os caminhos de Deus são inescrutáveis, todos sabemos disto, mas... putz... minha avó me dar um... bom, deixapralá...), aquele que tem na capa as quatro cabeças pintadas e servidas em bandejas. A imagem me assustava e deixei o disco guardado, meio que escondido, por um bom tempo, para evitar pesadelos. Daí, então, lá no final de 1980, vasculhando a prateleira dos discos depois da morte de John Lennon, encontrei este dos Secos & Molhados que minha avó havia me dado anos antes e coloquei-o na vitrola Telefunken para escutar. E gostei do que ouvi. Comecei a prestar atenção no arranjo de abertura de “Sangue Latino” (o baixo e o chocalho abrindo a música, as cordas que vêm do fundo e vão crescendo, preparando a entrada da voz andrógina de Ney Matogrosso...). Putz, aquilo era muito louco! Será que havia mais discos assim enfiados ali no meio, além dos disquinhos de historietas de Walt Disney, que já haviam sido abandonados junto ao babeiro e à mamadeira?
Será que existiam por ali músicas como “Imagine” e “Give Peace a Chance”, do John Lennon que havia morrido? Vasculhei todos os discos e não encontrei nada mais que me agradasse. O “Rubber Soul” estava lá, mas passou batido a estas primeiras audições ansiosas e desinformadas. Precisava, então, dar uma destinação mais ampla aos cruzeiros que compunham a mesada, além dos gibis do Homem-Aranha, das Caçadas de Pedrinho e de O Caso dos Dez Negrinhos. Resolvi comprar discos.
E lá vieram eles: Abba, Boney M., Gengis Khan, trilha internacional da novela Dancin´ Days... Uau! Mas, calma, não se desesperem, o final da história é feliz... Fui resgatado a tempo por um tio apenas sete anos mais velho do que eu que, em 1982, veio morar com a gente e trouxe consigo uma verdadeira parafernália musical: um aparelho de som modulado (até então eu só conhecia três-em-um), com equalizador, um par de caixas monstruosas e discos, muitos discos. Entre eles, “Let it Be”... As músicas misteriosas apreciadas por aquele tio invadiam o corredor e todos os aposentos da casa nas tardes quentúmidas em Ijuí, escapando por debaixo das frestas da porta do quarto que estava agora destinado a ele. E não é que as faixas daquele disco de capa preta com fotos de quatro cabeludos pareciam ter a mesma complexidade de composição que eu identificara pouco antes no Secos & Molhados presenteado pela minha avó (aliás, mãe deste tio)? Que coisa diferente aquela “I´ve Got a Feeling”... e “Get Back”, e “Two of Us”... Decidi que gostava daquele álbum, e passei a desejar conhecer mais sobre a banda. Que se chamava... The Beatles! Mas… como? Então eram os mesmos caras de “Rubber Soul”, que a vida inteira estivera esquecido ali em casa, na prateleira dos discos?
Ver com outros olhos, escutar com outros ouvidos... A psicologia chama de “insight” o momento em que você percebe algo por conta própria, o instante mágico e inesquecível em que alguma coisa se elucida... Como podiam os mesmos caras produzirem sons tão diferentes como os verificados em “Rubber Soul” e em “Let it Be?” E não é que aquele disco que era meu há anos continha músicas tão interessantes quanto as de “Let it Be” e as dos Secos & Molhados? “Michelle”... “Norwegian Wood”… “I´m Looking Through You”… Hummm… Havia um universo a ser descoberto ali....
O que mais existia entre aqueles dois álbuns, o que viera antes deles e o que acontecera e ainda aconteceria depois... bem, foram estas as motivações que me levaram a começar minha trilha por uma estrada mágica e misteriosa, em uma jornada repleta de sabores novos pelo inesgotável universo Beatle, que persiste e se renova até hoje.
“Follow Me”. Não é isso, Paul?
* Marcos Fernando Kirst é jornalista, gaúcho, e tem dois tios que o resgataram a tempo do lado escuro da era “disco”.
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