sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O que os olhos veem


CENA 1: Estou em um supermercado da cidade, concentrado na seção de hortaliças tentando diferenciar maços de espinafre de feixes de rúcula, quando sinto um leve toque nos ombros, acompanhado por uma vozinha infantil: “Nonnoooo”... Viro-me e me deparo com um menininho de pouco mais de um ano de idade empoleirado no carrinho de supermercado dirigido por sua jovem mãe. Minha surpresa é acompanhada instantaneamente pela decepção do garoto ao perceber que eu não era o avô ao qual ele carinhosamente se referia, e pelo rubor das faces da mamãe que pede desculpas pelo engano do filhote. A ramificação dos grisalhos por todos os lados de minha cabeça certamente confundiu o menino que me viu com cara de nonno, mesmo eu estando de costas.
CENA 2: Desço do carro rumo a uma entrevista napPrefeitura e cruzo apressado a área do estacionamento comum à Câmara de Vereadores e à sede do Executivo Municipal. Está frio, visto blazer e sapato social e carrego uma pasta recheada com material de trabalho. No meio do trajeto, vejo-me infiltrado, sem querer, em uma fileira de dezenas de alunos do ensino fundamental, conduzidos pelas professoras rumo à Câmara. Excitados, fazem comentários sobre os prédios dos poderes públicos, observando tudo o que se passa ao redor. Ao me avistar entre eles, um garoto, mochila às costas, puxa o braço do coleguinha à frente, aponta para mim e exclama: “Olha, Mateus, olha ali: um vereador!”.
O que acontece é que nós, seres humanos, julgamos pelas aparências. E isso, desde muito cedo, pois aprendemos a criar padrões cerebrais a partir da observação do mundo e vamos compartimentando tudo de acordo com nossas vivências pessoais, o que nos faz supor reconhecer mais tarde um avô a partir de uma cabeleira branca e um vereador no sujeito que anda apressado no pátio da Câmara. Somos assim. Precisamos diariamente domesticar o mundo e vergá-lo aos conceitos próprios que moldamos para ele. Isso nos dá uma segurança relativa, porém, facilmente nos induz ao erro.
Ou isso, ou os meninos vaticinaram meu futuro. Votem no Nonno Kirst em 2036...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2012)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Risco quilométrico


Zapeando pela tevê, descubro em uma reportagem que a carga de tinta existente dentro de uma caneta esferográfica é suficiente para traçar uma linha reta de três quilômetros de extensão. Puxa! Três quilômetros! Quanto caberá de escrita dentro de três quilômetros de tinta? O “Cem Anos de Solidão” do Gabriel García Márquez será que exigiria a carga de mais do que uma caneta de ponta-porosa para ser escrito? Quantos contos de Tchekhov? Quantos versos de Quintana? Quantos suspiros e rimas em cartas de amor para a amada distante, nos tempos em que se escreviam cartas de amor à mão em folhas sedosas e pautadas? Quantas assinaturas de cheque cabem em três quilômetros de tinta, ou quais cifras podem ser somadas em folhas de cheque preenchidas? Bilhões de dólares? Zilhões deles?
Será que em três quilômetros de tinta é possível reunir todas as desculpas que elencamos por escrito e em pensamento ao longo de nossas vidas, para justificar nossos atos e nossas esquivas? Três quilômetros de texto, afinal, é muito ou é pouco? Pode ser muito e sobrar tinta se formos enfileirar as vezes em que esquecemos os umbigos e praticamos a generosa arte de elogiar quem nos cerca e de externar-lhes, gratuitamente até, palavras de carinho, incentivo, conforto. Mas pode ser pouco para abarcar a extensão de nossas críticas, de nossas maledicências. Para essas, talvez sejam necessários três quilômetros de canetas carregadas de tinta, e os bons na matemática que calculem o quanto com elas seria possível grafar em jorros de fel.
Fico aqui pensando que talvez seriam necessários três ou até mais quilômetros de tinta para defender a humanidade perante as sazonais iras dos deuses, quando ficam eles lá no Olimpo pensando em acabar com a nossa existência, tamanhas as bobagens que aprontamos aqui por baixo. Porém, sabendo que as artes costumam aplacar a cólera dos titãs a ponto de postergarem o Armagedom por mais algum tempo, creio que até menos de uma carga de tinta baste para que alguém em algum canto do planeta crie mais um poema para louvar o Belo, mantendo firme o traçado de nossas existências. Pelo menos, enquanto não secarem todas as canetas...
 (Crônica publicada no jornal Pioneiro em 17 de agosto de 2012)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Civilidade felina


Bioy e Iggy, exercitando a arte da amizade felina

O décimo-segundo degrau da escada, o pufe alaranjado, a caixa repleta de exemplares de meu livro “Dois Passos Antes da Esquina”, o alto do roupeiro, o tampo da máquina de lavar roupas e o meu colo sempre que está dando sopa são os lugares da casa que, por usucapião, pertencem a Bioy, o gato que vive conosco. À medida que avançam as horas do dia, ele vai revezando o leito para seu insaciável sono entre esses diferentes locais, sem maiores variações, uma vez que, a exemplo do dono (se é que gatos admitem donos), transformou-se em um verdadeiro “homem de hábitos fixos”.
Dia desses, no entanto, sua mansa rotina foi súbita e profundamente alterada com a chegada de Iggy, um majestoso gato da raça chartreaux, pertencente (se é que gatos admitem pertencer) a um amigo que precisava viajar ao exterior durante um mês e meio. “Uma pata lava a outra”, havíamos anteriormente acertado entre nós (eu, o pseudo-dono de Bioy e ele, o pseudo-proprietário de Iggy), julgando ser apropriado deixarmos nossos felinos a serem cuidados por também apreciadores de gatos quando da necessidade de ausências prolongadas. Nem Iggy nem Bioy foram consultados a respeito dessa decisão e tiveram de se adequar à situação
Mas a desconfiança mútua inicial logo se transformou em amizade, especialmente devido à inesperada atitude de Bioy no quesito “capacidade de compartilhar”. Em nome da arte de bem anfitrionar, Bioy cedeu a Iggy a primazia na hora das refeições, bem como a preferência na ocupação de todos os lugares acima citados e tão caros a ele (em especial meu colo que, felizmente, não se transformou em campo de batalha). Ele foi um verdadeiro “gentlecat”, protagonista de uma pungente lição.
 Claro que os mais céticos supervalorizariam o fato de Iggy possuir quase o dobro do tamanho de Bioy, o que, crê-se, representa muito na escala de valores no mundo felino. Preferimos acreditar, minha esposa e eu, que Bioy na verdade optou por ser gentil com o novo amigo, transformando o limão em limonada. Adotando essa postura, manteve a harmonia no lar, ganhou um novo amigo e ampliou a admiração que nutrimos por ele. Usou de inteligência emocional. Sempre há o que aprender na convivência com os diferentes.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 10 de agosto de 2012)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Mistérios à vista


Quem não aprecia um mistério? Eu aprecio. Os mistérios conferem um tempero picante ao comum de nossas existências, quebra a monotonia da rotinização do cotidiano, instiga a curiosidade, excita a imaginação, desentorpece os sentidos, açula a inteligência, abre as cancelas para o livre fluir da adrenalina do espírito. Os mistérios produzem a saudável expectativa que move nossa ação no sentido de desvendá-los ou, na impossibilidade de fazê-lo, de passar a vida deliciando-se com a construção de teorias que os expliquem.
A repetitiva transmutação do dia em noite já foi mistério para os primevos seres humanos que rachavam os pés sobre os pedregulhos da Terra jovem e, para amansar o terror da incompreensão que aquela magia gerava no íntimo de suas nascentes almas, criaram os ritos, dos quais surgiram as religiões e a compreensão do divino. Os mistérios da natureza inspiraram mentes que gestaram as alquimias e depois as ciências, e os do espírito seguem gerando buscas que dão à luz as humanidades e as artes. Pobres dos que não cultivam mistérios, pois, repletos de certezas, colocam cadeados nas portas que lhes dariam acesso ao mundo infinito do maravilhamento.
De minha parte, ando há alguns anos duelando com um mistério que me alvoroça o espírito sempre que paro o carro em um dos semáforos que regulam o tráfego no acesso principal ao município de Veranópolis, no entroncamento da RST-470. Enquanto o sinal não abre, minha atenção invariavelmente é atraída pela placa que indica o nome de uma loja, situada à direita de quem segue rumo a Nova Prata, vindo de Bento Gonçalves, prometendo o ingresso em um universo inacreditável. Afinal, o que será que me espera quando eu finalmente tomar a coragem de mudar o rumo e adentrar as portas de “O Fantástico Mundo das Variedades”? Encontrarei ali tudo o que sempre busquei na vida e até hoje não encontrei? Objetos raros e perdidos? Lembranças apagadas pelo tempo? Amigos esfumaçados pelo desencontro? Ou isso e ainda mais tudo aquilo que o nome da loja permitir imaginar? Ainda não ousei desviar a rota e ingressar ali. Tenho achado mais prudente manter viva a chama de pelo menos esse mistério...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 3 de agosto de 2012)