segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A rica lição do pobre poeta


“Os poetas são pobres porque assim o querem, afinal, está em suas próprias mãos serem ricos”. A sentença foi colocada na boca de Tomás Rodaja, personagem de um conto concebido pelo gênio do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), estabelecido em eterna fama mundial pelo seu “Dom Quixote”, obra que encanta gerações de leitores desde que veio pela primeira vez à luz, no início do século 17. Entre a primeira e a segunda parte de seu livro sobre as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes levou a público uma coleção de 12 contos intitulada “Novelas Exemplares” (lançada em 1613), e é daquela conhecida como “O Licenciado Vidreiro” que emerge a frase aqui pinçada para servir de mote para esta derradeira crônica de segunda do ano de 2019.
Tomás Rodaja, o dito personagem, é um estudante de Salamanca que, devido a uma poção mágica, se transforma em um andarilho que se imagina feito de vidro e perambula a esmo pelas paragens espanholas, distribuindo frases de efeito e conselhos. É nessa condição que profere aquele dito a respeito da pobreza característica da maioria dos poetas de seu tempo, indo além: “É só eles saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se encontra nas mãos de suas namoradas, pois são todas riquíssimas”. Afinal, as namoradas dos poetas não possuíam, conforme eles cantam em seus versos, “cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde esmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente”, e suas lágrimas não eram “pérolas líquidas”, dando mostras de sobra de sua “imensa riqueza”? Ora, possuindo namoradas dotadas de tamanha formosura e fortuna, permaneciam pobres os poetas porque assim o desejavam, conclui o envidraçado filósofo criado por Cervantes, quatrocentos e tanto anos atrás.
O que o escritor pretendia, com a passagem, evidentemente, era criticar a pobreza de estilo e a sucessão de imagens literárias batidas usadas pelos maus poetas de seu tempo, e talvez não só os de seu tempo. Mas o que atravessa incólume as brumas dos séculos e permanece é a nova metáfora, criada por Cervantes com esta passagem, que nos leva a refletir sobre nossas próprias visões distorcidas da realidade, que muitas vezes nos impedem de alcançar nossos objetivos. Que “cabelos de ouro” não caiam sobre nossos “rostos de prata polida”, impedindo nossos “olhos de verde esmeralda” de ver a realidade como ela é, e que possamos, neste 2020, moldar nossas jornadas de vida de forma lúcida, criativa, colaborativa, cidadã, harmoniosa e tolerante. Bom Ano-Novo a todos!
(Crônica de Marcos Fernando Kirst publicada no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 30 de dezembro de 2019)

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