Minha avó tinha um jeito peculiar de metralhar ditos populares. Digo que ela os metralhava para usar o verbo em dois sentidos metafóricos plenamente aplicáveis ao caso de minha avó com os ditos ditos. Ela os “metralhava”, primeiro, porque disparava vários deles durante o dia. Segundo, porque, abusando de uma liberdade de adaptação textual e conjuntural que ela mesma concedia a si própria, ela “metralhava” os ditados populares porque os destruía em seu formato original e os reapresentava renovados, por meio de uma singular e característica readaptação.
Recitando os ditos à sua própria maneira, ela involuntariamente os ressignificava, provendo-os de um alcance ainda maior em termos de uso metafórico do que aquele que o formato original da frase normalmente permitia. Vamos a um exemplo, que é o que o leitor está ansiosamente esperando, depois de tanta verborragia reteórica (uma mescla de retórica e teórica, para não dizer que não aprendi nada com a sabedoria de minha avó). Quando ela se deparava com alguém que não via há muito tempo, exclamava, sem pestanejar: “quem é vivo sempre desaparece”!
Não era exatamente isso o que ela queria dizer, como o leitor sábio e letrado pode de cara perceber. No entanto, a frase ganha novo significado, e tem lógica naquilo que acaba literalmente dizendo. É claro que quem está vivo um dia vai desaparecer. Só nunca foi necessário que minha avó o dissesse para que as pessoas o soubessem, lógico...
Quando retornava do instituto (porque no tempo de minha avó, as mulheres iam se embelezar era no instituto, não na manicure e muito menos na cabeleireira ou no hair stylist), abastecida das mais recentes fofocas cabeludas do bairro, vinha relatando alegremente os “causos” reforçando que, lá no bairro, “só se fala em outra coisa”, quando o que realmente queria dizer era que não se falava em outro assunto.
Na verdade, nunca soube se ela desvirtuava as frases feitas deliberadamente, motivada por algum secreto sarcasmo, ou se de fato se enganava, produzindo acidentalmente as expressões que eu tanto apreciava e que abriram as picadas de minha visão sobre o potencial infinito da linguagem. Também nunca ousei perguntar enquanto ela vivia. “Agora, Inês é torta”, como ela seguramente diria...
(Crônica publicada no jornal Informante, de Farroupilha, em 10/12/2010)
Um comentário:
Uma crônica interessantemente reminiscente. A recordação da avó (re)construindo ditos populares dá à narrativa belos ares de verossimilhança. E desde o título, estendendo-se pelo texto adentro e chegando até o fim do mesmo, os (re)ditos da matriarca são demarcados e evidenciados: “como dizia o velho deitado”, “quem é vivo sempre desaparece”, “só se fala em outra coisa”, “agora, Inês é torta”.
A leitura do relato dessa recordação (a qual o cronista, gentilmente, empresta ao leitor) trouxe também as minhas reminiscências, mas estas com relação ao livro de máximas e mínimas do Barão de Itararé, pseudônimo de Aparício Torelli. Neste livro, ele satiriza os ditados populares, fazendo um uso mordaz de expressões clichês. A notoriedade de “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” foi ironicamente transformado em “é preferível dois marimbondos voando do que um na mão”.
Então, eu vejo tanto nas transformações do Aparício quanto nas modificações da matriarca algo genial que nasce através do olhar atento ao cotidiano, nas manias de linguagem, nos ditos que vão nascendo e sendo simplesmente repetidos de geração a geração, sem que um olhar crítico seja destinado, com exceção de pessoas como essa sagaz senhora, como o Aparício Torelli...
“Na verdade, nunca soube se ela desvirtuava as frases feitas deliberadamente, motivada por algum secreto sarcasmo, ou se de fato se enganava (...)”.
Se ela enganava-se, então, ohhhh precisamos enganarmo-nos muito mais. Eu, ao menos, gostaria de viver enganado assim.
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