- Deixe-me explicar uma coisa, querida, para que você entenda: passado, presente e futuro são meras abstrações de nossa mente racional que insiste em tentar enquadrar o tempo dentro de um esquema funcional teórico que se adeque à necessidade que temos de compreender o incompreensível de nossa existência, sacou?
Espere, deixe-me continuar, ainda não terminei, baixe esse braço com o balde e tire a outra mãozinha da cintura. Esse cenho franzido é porque não entendeste nada do que eu disse, não é, amor? Pois deixa que eu explico como se você tivesse cinco anos. Senta aqui um pouquinho. É assim, ó: passado, presente e futuro não existem. O que há é um fluxo continuo da existência dos seres e das coisas. Existe o ser, e ao mesmo tempo existe o nada. O ser e o nada, pescou? Portanto, o passado não existe e nunca existiu, porque, quando o passado estava ativo, ele era o presente naquele momento, entende? Tampouco existe o futuro, porque quando aquilo que denominamos como futuro chega, ele se transforma automaticamente em presente. E o presente é outra abstração, porque ele flui continuamente, escorrega pelos nossos dedos no exato momento em que nossa mente se fixa nele, e imediatamente ele já é um passado transformando-se no futuro que se presentifica. Sem beliscar, sem beliscar, meu bem, para e escuta mais um pouquinho!
Olha só: seguindo a lógica do meu raciocínio, pois você sabe que os homens têm pensamento mais racional e as mulheres mais emocional (por isso que estás bravinha, meu amor, tudo é científico, vês?), seguindo essa lógica, fica claro que é injusta a acusação que você faz de que eu fico o tempo todo sentado no sofá comendo porcaria e olhando televisão enquanto você faxina a casa, porque você disse isso no passado, que não existe, e o presente não é este que você julga estar vendo. Quando eu digo que farei a faxina, você deve contabilizar essa promessa como algo já realizado, uma vez que acabo de te provar que... ei... benzinho... largue o chinelo... que é isso... tá bom, tá bom eu vou, eu vou, eu limpo. Me dá aqui esse balde e esse pano. Contra o chinelo, não há argumento científico que se imponha mesmo...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 4 de fevereiro de 2011)
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