sexta-feira, 25 de março de 2011

O buquê abre-alas


O cenário urbano composto por passos ofegantes e veículos transtornados disputando primazia nos cruzamentos e calçadas é de súbito alterado ao cair da tarde de uma quinta-feira, nas quadras que formam a região central da cidade. Cotovelos que se esgueiram tentando evitar choques na multidão e pescoços projetados para a frente, abrindo caminho, repentinamente relaxam as tensões provocadas pelos horários e tarefas a cumprir para registrar a cena incomum que, por instantes, concede algumas gotas de humanidade a uma paisagem habituada à mecanicidade imposta pelo mundo moderno.
Trajando a indumentária típica do executivo metido em terno e gravata, o homem de meia-idade avança calçadas adentro sustentando em uma das mãos a pasta de trabalho e, na outra, o buquê de rosas vermelhas que, inesperadamente, vai abrindo passagens e arregalando olhares. Ele segue firme, rápido, determinado, o olhar fixo avante, pleno no desempenho de seu papel de cidadão apressado como tantos outros em meio à multidão. O que o distingue dos demais reside na doçura das formas e das cores das flores que na mão direita empunha. Todos abrem alas para o homem com flores.
As colegiais que debandam em grupos das escolas compartilham risinhos estupefatos represados pelas mãos. Os homens lançam e recolhem furtivos olhares que mal camuflam a surpresa. As mulheres de todas as idades sorriem por dentro julgando terem tido a rara sorte de detectar a existência de algum “último dos românticos” ainda à solta por aí. A moça em uniforme azul que monitora os parquímetros abre os braços lá adiante aguardando a aproximação do homem com flores e exclama, brincado: “muito obrigaaaada”. Ele cruza adiante com um meio-sorriso. Não são para ela, óbvio Vai saber se já recebeu flores antes. Vai saber se a brincadeira não lhe doeu na alma.
Não se sabe qual era o destino do buquê de rosas portado pelo homem apressado pelas calçadas do centro da cidade no final daquela tarde. Mesmo assim, cada uma daquelas flores tocou alguma parte da alma de quem presenciou a cena. Cai a noite, encerra-se outro ato de vida urbana. Um novo dia vem amanhã. Quem sabe se haverá rosas pelo caminho...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de março de 2011)

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