O adormecer aqui em casa não tem nada de muito criativo, porém, às vezes
(na maioria das vezes, a bem da verdade), é na simplicidade e na repetição dos
padrões que reside a essência de nossa humanidade. Ao apagar das luzes após a
leitura noturna das derradeiras páginas dos jornais e dos livros que se
equilibram na cabeceira da cama, as palavras rotineiramente trocadas entre
minha esposa e eu, após o beijinho de boa-noite, pouco variam de “dorme bem,
amor, até amanhã” e plof!... desce o véu da restauradora inconsciência. Isso,
via de regra. No entanto (não houvesse os “no entanto”, haveria crônica?)...
Noite dessas, no entanto, logo após o ritual acima descrito, minha mulher
virou-se para seu lado e, de lá do meio do travesseiro, escutei-a dizer: “estou
com saudades de comer aquele feijão que você faz”. E plof... adormeceu. De nada
adiantou eu ter me sentado na cama, perplexo, em meio à escuridão, perguntando
a meia-voz “o que foi que você disse?”, pois imediatamente estava ela entregue
a um profundíssimo sono, naquele nível que só alguns gatos conseguem atingir. A
dúvida que passou a me corroer foi se ela dissera a frase antes de adormecer (o
que significaria a manifestação clara de um desejo consciente, plenamente
justificado devido à inegável qualidade do feijão que sei elaborar em dias em
que estou culinariamente inspirado) ou logo após cair no sono (o que então
representaria apenas o estágio inicial verbalizado de um suculento sonho gastronômico,
daqueles de babar toda a fronha do travesseiro).
E quem é que dormia após uma frase daquelas? Eu é que não, lógico. O
insone, a partir daquele momento, era eu, somente eu, eu apenas; provavelmente
o único ser em vigília na quadra inteira, fora um ou outro cachorro ladrador.
Por via das dúvidas, já ao raiar do sol, indormido que estava, botei a panela
de pressão a funcionar, exalando aroma de feijoada por todo o condomínio já às nove
horas da manhã. A frase dela, ao abrir os olhos, ouvir o apito da panela e
sentir o cheiro que invadia o quarto, foi: “que deu em você de fazer feijão a
essa hora, está maluco?”. Nunca se pode prever o que pode advir de uma simples
quebra de rotina...
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